Barbara Ehrenreich*
Há 50 anos, os estadunidenses, ou ao menos os não-pobres entre eles, “descobriram” a pobreza, graças a um livro de Michael Harrington, que falou sobre a existência de uma "Outra América". Cinquenta anos depois, uma nova descoberta da pobreza está muito atrasada. E se olharmos bem de perto, teremos de concluir que a pobreza não é, afinal, uma aberração cultural ou uma falha de caráter, como a "cultura da pobreza" sustentou nos EUA. A pobreza é a falta de dinheiro. O artigo é de Barbara Ehrenreich.
Faz exatamente 50 anos que os
estadunidenses, ou pelo menos os não-pobres entre eles, “descobriram” a
pobreza, graças ao envolvente livro de Michael Harrington, The Other America
(A Outra América). Se atualmente esta descoberta parece um pouco
exagerada, como a “descoberta” de Colombo da América, é porque os
pobres, de acordo com Harrington, estavam tão “escondidos” e
“invisíveis” que foi preciso a imprensa de esquerda fazer uma cruzada
para descobri-los.
O livro de Harrington chocou uma nação que até então se orgulhava de sua ausência de classes e até mesmo queixava-se dos efeitos da riqueza abundante. Ele estimava que um quarto da população vivia na pobreza – negros dos bairros pobres, brancos da região de Apalaches, trabalhadores agrícolas e os americanos idosos entre eles. Os estadunidenses não poderiam mais vangloriar-se, como o Presidente Nixon fez em seu “debate doméstico” com o primeiro ministro soviético Nikita Khrushchev em Moscou apenas três anos antes, sobre os esplendores do capitalismo americano.
Ao mesmo tempo em que deu seu soco no estômago, The Other America também ofereceu uma visão diferente da pobreza, que parecia destinada a confortar os que já estavam confortáveis. Os pobres eram diferentes do resto de nós, alegou. Radicalmente diferentes, e não apenas no sentido de que eles foram privados, prejudicados, mal alojados ou mal alimentados. Eles se sentiam diferentes, pensavam diferente, e buscavam estilos de vida caracterizados por uma visão estreita e pela intemperança. Como Harrington escreveu “Existe... uma linguagem dos pobres, uma psicologia dos pobres, uma visão de mundo dos pobres. Ser pobre é ser um estrangeiro em seu próprio país, para crescer em uma cultura que é radicalmente diferente da que domina a sociedade”.
Harrignton realizou um trabalho tão bem feito, ao fazer os pobres parecerem “diferentes”, que quando li seu livro em 1963 não reconheci nele meus próprios antepassados e familiares. Tudo bem, alguns deles levavam vidas desordenadas pelos padrões da classe média, envolvendo bebida, brigas e filhos fora do casamento. Mas eles também eram trabalhadores e em alguns casos ferozmente ambiciosos - qualidades que Harrington parecia reservar para os economicamente privilegiados.
De acordo com ele, o que distinguia os pobres era sua singular “cultura da pobreza”, conceito que pegou emprestado do antropólogo Oscar Lewis, que o obteve a partir de seus estudos a respeito de moradores de favelas mexicanas.
A cultura da pobreza deu a The Other America um toque moderno acadêmico, mas também deu ao livro uma mensagem dupla e conflitante: "Nós" - os leitores sempre presumivelmente ricos - precisávamos encontrar alguma forma de ajudar os pobres, mas também precisávamos entender que havia algo errado com eles, algo que não podia ser curado com uma simples redistribuição da riqueza. Pense em um liberal fervoroso que encontra um mendigo, e é movido por pena pela óbvia miséria do homem, mas se recusa a oferecer um trocado - uma vez que o mendigo pode, afinal, gastar o dinheiro em bebida.
Em sua defesa, Harrington não quis dizer que a pobreza foi causada pelo que ele chamou de tendências distorcidas dos pobres. Mas ele certamente abriu as comportas para essa interpretação. Em 1965, Daniel Patrick Moynihan – um liberal esporádico e um dos companheiros de bebida de Harrington na famosa taberna no Cavalo Branco em Greenwich Village – jogou a culpa da pobreza do centro da cidade no que ele viu como sendo a estrutura precária da “Família Negra”, abrindo caminho para décadas de culpabilização das vítimas. Poucos anos depois do Relatório Moynihan, Edward C. Banfield urbanista de Harvard, que passou a servir como um conselheiro de Ronald Reagan, sentiu-se livre para afirmar que:
“As vidas individuais de classe baixa cada vez mais... impõem ao governo seu comportamento. Ele é portanto radicalmente imprudente: o que ele não pode consumir imediatamente considera sem valor... [Ele] tem uma percepção frágil, atenuada de si mesmo.”
Nos casos mais difíceis, opinou Banfield, o pobre pode ter de ser cuidado em “semi-instituições”... E aceitar certa vigilância e supervisão de um semi-assistente-social-semi-policial.
Na era Reagan, a "cultura da pobreza" tornou-se o ponto nevrálgico da ideologia conservadora: a pobreza não foi causada por baixos salários ou pela falta de empregos, mas por más atitudes e estilos de vida defeituosos.
Os pobres eram imorais, promíscuos, mais propensos aos vícios e ao crime, incapazes de demonstrar gratidão, ou possivelmente até mesmo de ajustar um despertador. A última coisa que poderia ser confiada a eles era dinheiro. Na verdade, Charles Murray argumentou em seu livro Losing Ground, em 1984, que qualquer tentativa de ajudar aos pobres com as suas circunstâncias materiais só teria a consequência inesperada de aprofundamento da sua depravação.
Por isso, foi com um espírito de justiça e até mesmo compaixão que Democratas e Republicanos se uniram para reconfigurar programas sociais para curar, não a pobreza, mas a “cultura da pobreza”. Em 1996, a administração Clinton promulgou a regra “One Strike” banindo das moradias públicas qualquer pessoa que cometesse um crime. Poucos meses depois, o benefício foi substituído por Assistência Temporária a Famílias Carentes (TANF) que na sua forma atual fornece assistência financeira disponível apenas para aqueles que têm emprego ou são capazes de participar da política de trabalho imposta pelo governo.
Em mais uma concessão para a teoria da “cultura da pobreza” o projeto inicial de reforma do bem-estar destinou 250 milhões de dólares em cinco anos para o “controle de natalidade” para mães solteiras pobres. (Este projeto de lei, deve ser salientado, foi assinado por Bill Clinton).
Ainda hoje, mais de uma década depois e há quatro anos em um grave declínio econômico, como as pessoas continuam a cair das classes médias para a pobreza, a teoria mantém sua força. Se você é carente, você necessita de correção, supõe-se; portanto, os que recebem a Assistência Temporária são frequentemente instruídos a melhorar suas atitudes e os candidatos aos crescentes programas da rede de segurança são submetidos a testes de drogas.
Legisladores em 23 estados estão considerando testar as pessoas que se candidatam para tais programas de treinamento de trabalho, vale-alimentação, habitação pública e assistência de aquecimento doméstico. Com base na teoria de que os pobres são suscetíveis a abrigarem tendências criminosas, os requerentes de programas de segurança estão sendo cada vez mais submetidos à impressão digital e a investigações na web com padrões excepcionais de exigências de garantias.
O desemprego, com suas amplas oportunidades de “malandragem”, é outra condição obviamente suspeita, e no ano passado 12 estados cogitaram a exigência de testes de urina como condição para receber benefícios de desemprego. Tanto Mitt Romney quanto Newt Gingrich sugeriram teste de drogas como condição para todos os beneficiários dos programas do governo, inclusive, presumivelmente, o Social Security. Se a vovó insistir em tratar sua artrite com maconha, ela poderá ter de passar fome.
Como Michael Harrington julgaria os atuais usos da teoria da “cultura da pobreza” que ele tanto popularizou? Trabalhei com ele na década de 1980, quando fomos co-presidentes do Socialistas Democráticos da América, e suspeito que ele se sentiria desapontado, se não mortificado. Em todas as discussões e debates que tivemos, ele nunca dirigiu sequer uma palavra depreciativa para designar os necessitados e assim proferiu a expressão “cultura da pobreza”. Maurice Isserman, biógrafo de Harrington, disse-me que ele provavelmente agarrou-se a isso em primeiro lugar, só porque " não queria parecer um estereotipado agitador marxista preso aos anos trinta."
A artimanha – se é que se pode chamar assim – funcionou. Michael Harrington não protestou no anonimato. Na verdade, seu livro se tornou um bestseller e uma inspiração para a batalha de Presidente Lyndon Johnson contra a pobreza. Mas ele havia fatalmente remendado a “descoberta” da pobreza.
No entanto, o que os estadunidenses ricos encontraram em seu livro, e em todas as ásperas críticas conservadoras que o seguiram, não foi o pobre, mas uma nova forma agradável de pensar em si mesmos – disciplinados, cumpridores da lei, sóbrios e concentrados. Em outras palavras, não pobres.
Cinquenta anos depois, uma nova descoberta da pobreza está muito atrasada. Desta vez, teremos de levar em conta não só os estereótipos dos cidadãos sem-teto de Skid Row e Apalaches, mas o direito dos moradores de subúrbios privados de resgatar suas hipotecas, trabalhadores do setor de tecnologia desempregados, e o cada dia maior exército americano de trabalhadores pobres. E se olharmos bem de perto, teremos de concluir que a pobreza não é, afinal, uma aberração cultural ou uma falha de caráter. A pobreza é a falta de dinheiro.
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(*) Barbara Ehrenreich é a autora de Nickel and Dimed: On (Not) Getting By in America (agora em uma edição de aniversário de 10 anos com novo epílogo)
O livro de Harrington chocou uma nação que até então se orgulhava de sua ausência de classes e até mesmo queixava-se dos efeitos da riqueza abundante. Ele estimava que um quarto da população vivia na pobreza – negros dos bairros pobres, brancos da região de Apalaches, trabalhadores agrícolas e os americanos idosos entre eles. Os estadunidenses não poderiam mais vangloriar-se, como o Presidente Nixon fez em seu “debate doméstico” com o primeiro ministro soviético Nikita Khrushchev em Moscou apenas três anos antes, sobre os esplendores do capitalismo americano.
Ao mesmo tempo em que deu seu soco no estômago, The Other America também ofereceu uma visão diferente da pobreza, que parecia destinada a confortar os que já estavam confortáveis. Os pobres eram diferentes do resto de nós, alegou. Radicalmente diferentes, e não apenas no sentido de que eles foram privados, prejudicados, mal alojados ou mal alimentados. Eles se sentiam diferentes, pensavam diferente, e buscavam estilos de vida caracterizados por uma visão estreita e pela intemperança. Como Harrington escreveu “Existe... uma linguagem dos pobres, uma psicologia dos pobres, uma visão de mundo dos pobres. Ser pobre é ser um estrangeiro em seu próprio país, para crescer em uma cultura que é radicalmente diferente da que domina a sociedade”.
Harrignton realizou um trabalho tão bem feito, ao fazer os pobres parecerem “diferentes”, que quando li seu livro em 1963 não reconheci nele meus próprios antepassados e familiares. Tudo bem, alguns deles levavam vidas desordenadas pelos padrões da classe média, envolvendo bebida, brigas e filhos fora do casamento. Mas eles também eram trabalhadores e em alguns casos ferozmente ambiciosos - qualidades que Harrington parecia reservar para os economicamente privilegiados.
De acordo com ele, o que distinguia os pobres era sua singular “cultura da pobreza”, conceito que pegou emprestado do antropólogo Oscar Lewis, que o obteve a partir de seus estudos a respeito de moradores de favelas mexicanas.
A cultura da pobreza deu a The Other America um toque moderno acadêmico, mas também deu ao livro uma mensagem dupla e conflitante: "Nós" - os leitores sempre presumivelmente ricos - precisávamos encontrar alguma forma de ajudar os pobres, mas também precisávamos entender que havia algo errado com eles, algo que não podia ser curado com uma simples redistribuição da riqueza. Pense em um liberal fervoroso que encontra um mendigo, e é movido por pena pela óbvia miséria do homem, mas se recusa a oferecer um trocado - uma vez que o mendigo pode, afinal, gastar o dinheiro em bebida.
Em sua defesa, Harrington não quis dizer que a pobreza foi causada pelo que ele chamou de tendências distorcidas dos pobres. Mas ele certamente abriu as comportas para essa interpretação. Em 1965, Daniel Patrick Moynihan – um liberal esporádico e um dos companheiros de bebida de Harrington na famosa taberna no Cavalo Branco em Greenwich Village – jogou a culpa da pobreza do centro da cidade no que ele viu como sendo a estrutura precária da “Família Negra”, abrindo caminho para décadas de culpabilização das vítimas. Poucos anos depois do Relatório Moynihan, Edward C. Banfield urbanista de Harvard, que passou a servir como um conselheiro de Ronald Reagan, sentiu-se livre para afirmar que:
“As vidas individuais de classe baixa cada vez mais... impõem ao governo seu comportamento. Ele é portanto radicalmente imprudente: o que ele não pode consumir imediatamente considera sem valor... [Ele] tem uma percepção frágil, atenuada de si mesmo.”
Nos casos mais difíceis, opinou Banfield, o pobre pode ter de ser cuidado em “semi-instituições”... E aceitar certa vigilância e supervisão de um semi-assistente-social-semi-policial.
Na era Reagan, a "cultura da pobreza" tornou-se o ponto nevrálgico da ideologia conservadora: a pobreza não foi causada por baixos salários ou pela falta de empregos, mas por más atitudes e estilos de vida defeituosos.
Os pobres eram imorais, promíscuos, mais propensos aos vícios e ao crime, incapazes de demonstrar gratidão, ou possivelmente até mesmo de ajustar um despertador. A última coisa que poderia ser confiada a eles era dinheiro. Na verdade, Charles Murray argumentou em seu livro Losing Ground, em 1984, que qualquer tentativa de ajudar aos pobres com as suas circunstâncias materiais só teria a consequência inesperada de aprofundamento da sua depravação.
Por isso, foi com um espírito de justiça e até mesmo compaixão que Democratas e Republicanos se uniram para reconfigurar programas sociais para curar, não a pobreza, mas a “cultura da pobreza”. Em 1996, a administração Clinton promulgou a regra “One Strike” banindo das moradias públicas qualquer pessoa que cometesse um crime. Poucos meses depois, o benefício foi substituído por Assistência Temporária a Famílias Carentes (TANF) que na sua forma atual fornece assistência financeira disponível apenas para aqueles que têm emprego ou são capazes de participar da política de trabalho imposta pelo governo.
Em mais uma concessão para a teoria da “cultura da pobreza” o projeto inicial de reforma do bem-estar destinou 250 milhões de dólares em cinco anos para o “controle de natalidade” para mães solteiras pobres. (Este projeto de lei, deve ser salientado, foi assinado por Bill Clinton).
Ainda hoje, mais de uma década depois e há quatro anos em um grave declínio econômico, como as pessoas continuam a cair das classes médias para a pobreza, a teoria mantém sua força. Se você é carente, você necessita de correção, supõe-se; portanto, os que recebem a Assistência Temporária são frequentemente instruídos a melhorar suas atitudes e os candidatos aos crescentes programas da rede de segurança são submetidos a testes de drogas.
Legisladores em 23 estados estão considerando testar as pessoas que se candidatam para tais programas de treinamento de trabalho, vale-alimentação, habitação pública e assistência de aquecimento doméstico. Com base na teoria de que os pobres são suscetíveis a abrigarem tendências criminosas, os requerentes de programas de segurança estão sendo cada vez mais submetidos à impressão digital e a investigações na web com padrões excepcionais de exigências de garantias.
O desemprego, com suas amplas oportunidades de “malandragem”, é outra condição obviamente suspeita, e no ano passado 12 estados cogitaram a exigência de testes de urina como condição para receber benefícios de desemprego. Tanto Mitt Romney quanto Newt Gingrich sugeriram teste de drogas como condição para todos os beneficiários dos programas do governo, inclusive, presumivelmente, o Social Security. Se a vovó insistir em tratar sua artrite com maconha, ela poderá ter de passar fome.
Como Michael Harrington julgaria os atuais usos da teoria da “cultura da pobreza” que ele tanto popularizou? Trabalhei com ele na década de 1980, quando fomos co-presidentes do Socialistas Democráticos da América, e suspeito que ele se sentiria desapontado, se não mortificado. Em todas as discussões e debates que tivemos, ele nunca dirigiu sequer uma palavra depreciativa para designar os necessitados e assim proferiu a expressão “cultura da pobreza”. Maurice Isserman, biógrafo de Harrington, disse-me que ele provavelmente agarrou-se a isso em primeiro lugar, só porque " não queria parecer um estereotipado agitador marxista preso aos anos trinta."
A artimanha – se é que se pode chamar assim – funcionou. Michael Harrington não protestou no anonimato. Na verdade, seu livro se tornou um bestseller e uma inspiração para a batalha de Presidente Lyndon Johnson contra a pobreza. Mas ele havia fatalmente remendado a “descoberta” da pobreza.
No entanto, o que os estadunidenses ricos encontraram em seu livro, e em todas as ásperas críticas conservadoras que o seguiram, não foi o pobre, mas uma nova forma agradável de pensar em si mesmos – disciplinados, cumpridores da lei, sóbrios e concentrados. Em outras palavras, não pobres.
Cinquenta anos depois, uma nova descoberta da pobreza está muito atrasada. Desta vez, teremos de levar em conta não só os estereótipos dos cidadãos sem-teto de Skid Row e Apalaches, mas o direito dos moradores de subúrbios privados de resgatar suas hipotecas, trabalhadores do setor de tecnologia desempregados, e o cada dia maior exército americano de trabalhadores pobres. E se olharmos bem de perto, teremos de concluir que a pobreza não é, afinal, uma aberração cultural ou uma falha de caráter. A pobreza é a falta de dinheiro.
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(*) Barbara Ehrenreich é a autora de Nickel and Dimed: On (Not) Getting By in America (agora em uma edição de aniversário de 10 anos com novo epílogo)
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19795&boletim_id=1153&componente_id=18447
Tradução: Isabela Garcia e Lucia Dal Corso
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