quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Estado deve recuperar o sentido de segurança

Maria Clara Lucchetti Bingemer*
A violência urbana é um dos maiores problemas que, hoje em dia, atingem, não só o Rio, como a maioria das cidades brasileiras. Trata-se, além disso, de uma situação que acontece igualmente em nível mundial. No entanto, apesar da gravidade, sente-se que faltam luzes, perspectivas, no seu enfrentamento e, sobretudo, ideias que tenham uma dimensão prática e que possam ser traduzidas em ações concretas.

O Brasil tem uma memória na qual se encontra a temática dos direitos humanos, seus valores, operadores, e seus militantes formados em confronto com os teóricos, valores e operadores da segurança. A memória do tempo da ditadura militar coloca a militância dos direitos humanos em confronto com a da segurança pública, trocando acusações entre si, trocando, às vezes, até cadáveres.

Há uma forte dicotomia entre essas duas tradições: a dos direitos humanos e a da segurança pública, a ponto de o tema direitos humanos no Brasil com frequência ser associado, na opinião pública, a um discurso que ignora o problema da segurança e defende os bandidos e criminosos, sob alegação de motivos ideológicos. A origem de tal oposição vem do fato de que a afirmação dos direitos humanos foi feita num momento em que o Estado, não só no Brasil, estava numa situação de totalitarismo, como o nazismo, ou com o socialismo totalitário; ou em situações de regimes militares, ditaduras.

A afirmação dos direitos humanos era, pois, a afirmação de direitos, individuais ou de grupos, diante de uma autoridade do Estado. É como se fosse a defesa do indivíduo e dos grupos contra um poder que vem de cima. Foi nesse contexto que tudo se formou, com base nas denúncias de prisões arbitrárias, de tortura, do abuso da autoridade e da violência. Os direitos humanos se formaram nesse contexto, de defesa de direitos dos indivíduos diante de um poder externo, um poder autoritário de Estado.

O que percebemos, sobretudo nas comunidades pobres do Brasil e da América Latina, é que o fato de viverem em tamanha insegurança implica uma perda efetiva dos direitos básicos associados aos direitos humanos. Ou seja, numa situação de insegurança, as pessoas têm dificuldade de liberdade de expressão. Se alguém é violentado ou tem alguma pessoa próxima agredida hoje no Brasil, o mais comum é que as pessoas próximas, ou a família, perguntem-se e acabem concluindo que não é negócio, não faz sentido chamar a polícia, a Justiça para ajudar.

A última coisa que se faz numa situação dessas é pegar o telefone e chamar a polícia. Engole-se a dor, o sofrimento, porque a chegada da polícia, da autoridade do Estado para enfrentar a situação só pioraria o quadro, traria mais insegurança ainda, mais risco.

O direito básico, elementar de recorrer à Justiça, e de reportar uma violência da qual se foi vítima está eliminado pela insegurança. O direito de associação, por sua vez, é muito complicado em condições de insegurança. Em muitos bairros, vemos, até mesmo, dificuldade do chamado ir e vir. Temos, dentro de algumas das grandes cidades brasileiras, comunidades que, em certos períodos, vivem uma realidade de Estado de Sítio.

Chegamos a esse nível de interferência nos direitos elementares. E a experiência que viemos fazendo nos últimos 20 anos, desde o fim da ditadura, mostra claramente que a insegurança acarreta perda, de fato, dos direitos elementares que compõem a agenda dos direitos humanos.
É uma idéia que contraria a nossa memória recente, embora esteja na origem do pensamento político democrático. O grande debate dessa área de reflexão se dá sobre quem controla as armas. Essa fiscalização é realizada pelo Estado. Mas agora a pergunta é: Quem controla o Estado que controla as armas? Existe, portanto, todo um debate sobre as formas democráticas de participação de controle.

Por isso, o grande desafio hoje é conseguir integrar essas duas histórias, esses dois temas, e produzir uma dinâmica que é difícil, porque evidentemente o tema da segurança impõe o tema da força, o uso da força na sociedade, seus limites e seu controle. Mas há uma tensão inerente a essa relação, uma tensão constitutiva. Sem segurança, não se tem direitos humanos. Isso implica numa abordagem do tema da segurança pública inseparável do tema dos direitos humanos.

A dificuldade central é que se tem, de um lado, o uso da força, a imposição de limites e, de outro, o comportamento das pessoas. Sabemos que a autoridade da lei implica uma combinação: o uso da força, da capacidade de impor limites, que é uma capacidade distintiva da polícia, e a legitimidade dessa lei, dessa ação. Essa relação entre legitimidade e uso da força é difícil, mas é óbvio que, quanto maior a legitimidade, menor o uso da força, e vice-versa.

O que vivemos hoje no nosso país é um uso da força que, na maioria absoluta dos casos, aparece como ilegítima. O típico trabalho policial que encontramos na sociedade é um trabalho que só aparece quando alguma tragédia já aconteceu. É por causa disso que a polícia está associada à tragédia.

O que está em jogo é recuperar um sentido de segurança que seja reconhecido, e, portanto, legitimado, como um princípio viabilizador dos direitos e do desenvolvimento. Dos direitos num sentido bem pleno, não apenas daquele direito mínimo do exercício da liberdade individual, mas num sentido maior, de propiciador da superação de conflitos e contradições que são geradores de violência.

Não há dúvida de que há um trabalho a ser feito, e há muito espaço para a sociedade civil, a Universidade, as ONG's e a Igreja participarem dele.

* Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, além de autora de "A argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
Jornal do Brasil - 23:50 - 09/09/2009

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