terça-feira, 8 de setembro de 2009

O leito de Procusto

Claudio Moreno*

Não conheço quem não tenha imaginado, um dia, encontrar uma garrafa trazida pelas ondas, contendo a mensagem que algum desconhecido confiou aos imponderáveis caminhos do mar. É impossível ficar indiferente diante de um achado fascinante como esse, pelo simples mistério que aquela folha de papel enrolado pode esconder. Pois essa também é a magia dos mitos da Grécia, que vagam há milênios pela correnteza do tempo: embora sejam traçadas com uma tinta muito antiga, estas histórias sempre oferecem algum tipo de resposta valiosa, seja qual for a época ou o leitor.
Vejam a lenda de Procusto, salteador assassino que atuava nos caminhos que cruzavam a Ática. À primeira vista, parece uma história de puro terror, típica de homens que, como os gregos, acreditavam que os lugares ermos e as estradas desertas sempre ocultavam algum perigo monstruoso. Este bandido sanguinário oferecia pousada aos viajantes solitários e, à noite, depois de amarrá-los, deitava-os no leito mortal que até hoje leva seu nome. Tomado por uma sinistra obsessão, deixava todas suas vítimas exatamente do mesmo tamanho do leito: os homens mais baixos morriam com o corpo estirado pela força de roldanas, e os mais altos tinham o excesso decepado a golpes de machado. Teseu, um dos grandes heróis da mitologia grega, passou por ali e fez com que Procusto provasse de seu próprio veneno, e em dose dupla: obrigou-o a deitar atravessado, e não ao comprido, e atorou-lhe os pés e a cabeça.
Mais uma vez os mitos nos ajudam a conhecer melhor os recônditos mecanismos da natureza humana. Esta história nos previne contra o perigo embutido em todo regime autoritário, que, acreditando possuir a verdade absoluta, exige a nossa total adesão a seus princípios - é o leito de Procusto ideológico. Ela também condena aquela tendência conhecida de rebaixar os bons e hostilizar os que ultrapassam os outros em cultura e saber, tentando reduzi-los aos padrões da maioria - é o leito de Procusto cultural. Kempfer, viajante e cientista do séc. 17, relata que conheceu, na Pérsia, um funcionário que todos os anos media as mulheres do harém para descobrir as que não se enquadravam nas dimensões determinadas pelo sultão, obrigando-as a engordar ou a emagrecer, conforme fosse o caso – é o leito de Procusto da beleza. Nosso século, no entanto, tem no mundo feminino uma curiosa reversão deste mito: o Procusto original e todos seus seguidores tinham de obrigar as vítimas a deitar no leito terrível; hoje, basta publicar as fotos certas, com as pessoas certas, e todas as mulheres irão, por vontade própria, em fila nem sempre organizada, submeter-se a toda espécie de suplício que as faça ficar parecidas com a imagem que a Moda, este novo Procusto, definiu para elas.
* Professor. Escritor. Colunista. Ensaísta. Autor de vários livros na área de gramática e redação.
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