Rubem Alves*
Dizem – por favor não me perguntem “quem?” — que o filósofo Karl Jaspers não viajava. Eu, como psicanalista aposentado, acho que ele não viajava por causa de alguma fobia. Mas a explicação que ele inventou para sua recusa em viajar me encanta. “Não viajo porque todas as coisas dignas de serem conhecidas estão na minha casa...”
Ele deve ter morado numa mesma casa a vida inteira. Deveria ser uma casa muito velha. Nem era preciso dizer: em Heidelberg tudo é velho. Mas lá tudo o que é velho está em excelente estado de conservação. Lá o velho é antiguidade valiosa. Filho de uma sólida família, deveria morar numa casa muito antiga que fora passando de geração a geração e, à medida em que o tempo passava, somavam-se a ela livros, objetos de arte e todo tipo de tranqueiras fascinantes que ninguém tinha coragem de jogar fora.
Sei disso por experiência própria. O sobradão colonial do meu avô era assim. As tranqueiras velhas eram colocadas em dois quartos: o quarto de badulaques, aberto ao publico, e o quarto de mistério, de entrada proibida. Acho que os objetos velhos não eram jogados fora por respeito. Cada um deles tinha muitas estórias para contar. O sobradão do meu avô e a casa sólida em que viveu Jaspers em Heidelberg eram casas cheias de universos. Cada objeto que mora numa casa é um universo. Assim, a alegação de Jaspers de que todas as coisas dignas de serem conhecidas estavam na sua casa deve ter uma pitada de verdade. Sem sair de sua casa ele podia viajar por mundos distantes e diferentes. Objetos são tapetes mágicos: têm o poder de nos fazer viajar pelo espaço e o tempo.
Hoje isso não existe mais. No tempo de Jaspers as casas eram regidas pela soma. O que entrava, entrava para ficar. No tempo em que vivemos as casas são regidas pela subtração. Tudo fica velho e é jogado fora. Falta solidez às coisas. Não me refiro à solidez dos materiais. Refiro-me à solidez da sua presença no cenário humano. A presença da casa era definitiva. Para sempre. Demolir uma casa em Heidelberg para construir no seu lugar um shopping-center? Nem pensar.
Comovo-me ao ver casas velhas abandonadas, desabitadas, portas e janelas fechadas. O jardim onde cresciam rosas-chá, flor-do-imperador, manacá, hortelã, mexirica e romã, transformado naquilo que Guimarães Rosa batizou de “matagalzinho, sílvula, pequena brenha”, as plantas crescendo em desordem, as pragas abafando as delicadas, sem jardineiro pra reger as cores e os perfumes. Estão lá, as casas velhas, à espera de um trator que as derrube. E, no entanto, houve um momento em que elas foram sonho, houve pessoas que as sonharam e as construíram no definitivo.
O destino dos homens seguiu o destino das casas. Eles perderam seu parentesco com as árvores – já não têm raízes que os fixem no solo. São seres voantes que o vento sopra, como aquela flor silvestre esférica que alguém batizou de “amor de mulher”. Eu mesmo já morei em vinte casas. O que significa vinte enraizamentos efêmeros e dezenove desenraizamentos... E haverá um momento em que serei desenraizado dessa que é a casa onde moro...
Quando desfiz setenta e cinco anos mudei de casa mais uma vez. Minha mãe, se fosse viva, não teria aprovado. A experiência de mudar lhe causava medo. “Casa de morada”, nos tempos idos, era um lugar estável, seguro, para onde se podia sempre voltar. Ela estaria lá, onde sempre esteve. Em alemão existe a palavra “umheimllich” que significa, literalmente, fora do lar, “heim”= lar, perdido numa terra estranha. Mas ela tem um sentido existencial de coisa sinistra... Quando a minha mãe falava “lá em casa” ela não estava se referindo à casa onde nós morávamos. Estava se referindo ao sobrado colonial centenário, vidros coloridos, tábuas largas no chão, sólido e eterno como a casa de Jaspers. Quando ela se casou ela saiu da “casa” e foi morar no “umheimlich”. Acho que durante a vida toda ela sonhou com a volta... Se pudesse ela desfaria a mudança para deitar raízes na casa antiga... Todo desenraizamento é “umheimlich”.
Ela sempre repetia como certeza além de qualquer dúvida: “Velho não pode mudar de casa senão morre...” E essa lei anti-mudança valia para tudo, de canecas a casas. Uma vez, passando uns tempos na minha casa, recusou-se a tomar o café com leite matutino em canecas, como era nosso hábito. Como explicação ela disse simplesmente: “Não estou acostumada...” Mas, que diferença faz tomar o café com leite numa caneca ou numa xícara? Pra ela fazia. A xícara e o pires continham um lar. Providenciamos então a xícara e o pires: aí ela tomou com prazer o mesmo café que todos nós tomávamos na caneca. Estava em casa...
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educadorPostado CORREIO POPULAR, 20/09/2009
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1653257&area=2220&authent=774374344504727761741645267255
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