segunda-feira, 27 de junho de 2011

Aprender a negociar

José Tolentino Mendonça*


Tenho um amigo que diz: «o que os biólogos marinhos, a indústria de peixe e os compradores de mitos partilham, é simplesmente isto: ninguém realmente sabe o que é um peixe». Aceitemos o seu repto: nenhum de nós sabe o que é um peixe. Quer a ciência, a técnica, mas também o amor, a poesia e a fé nos conduzem à mesma evidência: ignoramos o que seja exatamente um peixe. Que é como quem diz: ninguém sabe, realmente, o que é uma mulher, o que é um homem, o que é uma árvore, o que é uma palavra, o que é um silêncio... E se aceitamos que não sabemos, temos que tirar daí uma elação: a urgência de trocar o nosso conhecimento muito assertivo pela negociação. Em vez de acharmos que já conhecemos, dizermos: – não, eu não conheço, eu ainda não sei o que é. Então como nos podemos avizinhar uns dos outros? Negociando, isto é, dispondo-nos a aprender, ouvindo, tentando estabelecer um pacto, um acordo, uma aliança, mas nunca a partir de etiquetas, de teorias fechadas. Precisamos, sim, de partir da manifestação da própria realidade, daquilo que é novo a cada instante.
Sobre o peixe, há também aquele conto extraordinário de Herberto Helder, no livro “Os passos em volta”. «Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe. O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor – sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar sobre as razões da mudança exatamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo».
O que vemos neste momento é apenas uma etapa e uma estação. Negociar é ouvir aquilo que é novo a cada momento. Negociar é acompanhar o fluxo do mistério do tempo. Não tenhamos dúvidas: estamos e continuaremos a estar rodeados de perguntas. Nós próprios somos uma pergunta. Aquilo que o teólogo São Justino expressava assim, há tantos séculos: “Magna quaestio factus sum me”. “Tornei-me para mim mesmo uma grande pergunta!”. Acho que na vida interior e na relação precisamos de acolher a necessidade de negociar.
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* Teólogo português. Escritor. Texto digitado em português de Portugal.

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