domingo, 12 de junho de 2011

O caqui

Rubem Alves*

Convidaram-me a fazer a palestra de encerramento num evento sobre a "Carta da Terra" na cidade de Brescia, na Itália. Pediram-me que falasse sobre os "Jardins", que são meu tema favorito. Não só meu. A se acreditar nos poemas bíblicos, o Criador criou o universo só para nele plantar um jardim, o Paraíso.
Lembrei-me das duas telas de Dürer, nas quais ele pintou Adão e Eva, os seres paradisíacos. São telas de rara beleza. Exceto por três equívocos do pintor. Primeiro, colocou umbigos na barriga de Adão e de Eva. Por isso ele poderia ter ido parar na fogueira. Porque esse detalhe é, claramente, uma blasfêmia, posto que nega o que diz o texto inspirado. Umbigos só existem em seres nascidos de mães. Mas Adão e Eva não nasceram de mães. Nasceram das mãos do Criador. Portanto, não tinham umbigo.
Segundo erro: Adão e Eva foram pintados ainda no seu estado de inocência. As maçãs que têm nas mãos ainda não foram mordidas. Portanto, como diz o texto bíblico, eles estavam nus e não se envergonhavam. Assim sendo, não existe razão alguma para que eles sejam pintados colocando o precário galho com uma maçã na ponta sobre as partes mais interessantes do corpo.
E, em terceiro lugar, o pintor pintou a maçã como sendo o fruto proibido. O que está errado. O fruto proibido tinha de ser um fruto de potência sedutora máxima. O que não é o caso da maçã. A maçã é fruta pudica. Não se despe por vontade própria. Só tira a roupa sob a violência da ponta da faca. E ainda geme quando é mordida. Comer uma maçã é sempre um estupro.
O fruto proibido, segundo entendo, foi o caqui. O caqui inteiro é tentação. É só olhar para ele para que ele diga: "Me coma..." E basta relar o dedo nele para que ele se dispa e seus sucos vermelhos comecem a escorrer.
Na minha fala diante do sério auditório e valendo-me da minha vocação para palhaço, eu fiz essa brincadeira. No dia seguinte recebi um telefonema de uma pessoa que eu não conhecia. Convidava-me a visitar um prédio que em tempos passados havia sido um mosteiro para duzentas freiras. Aceitei o convite e fui na hora marcada. Ele me levou então para o jardim interior do mosteiro e me contou a seguinte história: "Depois da bomba atômica que matou 200.000 pessoas em Hiroshima e torrou todas as coisas vivas, houve uma árvore que sobreviveu. Era um caquizeiro. Esse caquizeiro passou a ser, então um símbolo do triunfo da vida sobre a morte. Os japoneses cuidaram dele, colheram seus frutos, plantaram suas sementes e espalharam suas mudas por muitas cidades do mundo. Uma das cidades agraciadas com essa dádiva fora Brescia, onde estávamos. E a mudinha fora plantada naquele jardim. Estávamos diante dela. Eu estava diante de um caquizeiro descendente daquele de Hiroshima..."
Senti-me como Moisés diante da árvore que se incendiava sem se consumir... Com medo de esta fazendo um pedido impróprio, perguntei-lhe se me seria permitido apanhar três folhas do caquizeiro. Ele disse que sim. Apanhei as folhas. Coloquei-as dentro de guardanapos de papel para desidratá-las. Depois, pintei-as com verniz para preservá-las do contacto com o ar. A seguir levei-as a uma loja especializada e mandei fazer um quadro.
As folhas estão agora na minha parede. Quem só vê o quadro não entende: as folhas não têm nenhuma beleza especial... Então eu conto a estória...
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* Escritor. Teólogo e educador.
Fonte: Correio Popular on line, 12/06/2011
Imagens da Internet


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