Paulo Ghiraldelli Jr*
Hedonismo, internet e droga legalizada
As pessoas inteligentes e bem informadas sabem que a descriminalização das drogas é um bom caminho para eliminarmos parte considerável do banditismo e da violência nos centros urbanos. Algumas não têm dúvidas de que essa medida deve ser tomada. Acreditam que em algum momento da história, até por causa da capacidade finita de gastos em armamentos e energia humana, a legalização acabará por ocorrer. Mas há também pessoas, igualmente inteligentes e bem informadas, que apesar de concordarem sobre esse equacionamento entre descriminalização e paz urbana, recuam ao imaginarem um possível aumento do consumo da droga. Não haveria um comprometimento da vida social provocado por algo mais perverso que o uso atual do álcool e, enfim, menos capaz de ser realmente controlado?
Os favoráveis à descriminalização sabem que já temos a experiência positiva de controle do álcool e do tabaco. Mas os que possuem receio da descriminalização lembram que todos nós já usamos diariamente algum estimulante ou antidepressivo ou calmante (na classe média: café de manhã, uísque à noite, no mínimo!), ou seja, estamos propensos a nos drogarmos e, sendo assim, devemos nos considerar fortes candidatos ao status de novos viciados em novas drogas compráveis no mercado regular.
Esse debate não é só médico, psicológico ou econômico. Ele tem um lado filosófico. Percorre o fio no qual a filosofia política contemporânea questiona o utilitarismo. Falo do utilitarismo e, em seguida, volto às drogas.
O utilitarismo é uma doutrina em filosofia política que, embora moderna, tem um pé na antiguidade. O utilitarismo lembra a busca das éticas antigas pela eudaimonia. Segundo determinada faceta, mais restritiva, essa doutrina é afeita a um cálculo hedonista. Ou seja, genericamente o utilitarismo diz que o bem valioso que temos é a felicidade, que pode ser traduzida como bem estar ou como prazer. Sendo assim, a melhor organização política é aquela que respeita nossa busca de maximização do prazer para o maior número de pessoas. Bentham e Mill ensinaram isso e os filósofos atuais concordam que esse é um pano de fundo substancial da moralidade política do mundo atual.
Essa é uma teoria afinada com nossas intuições. De fato, tendemos a achar que, entre todos os lugares para viver, escolheríamos um em que a moralidade política se guiasse pela utilidade. Queremos o que é útil para nós. Vivemos bem em um lugar em que a moralidade política diz que o correto é buscarmos, para o maior número de pessoas, a maximização do prazer e a diminuição da dor. Sendo assim, não teríamos nenhuma dificuldade de colocar como bem maior o prazer ou bem estar. Quem poderia discordar que o objetivo de cada um de nós, no limite, é a felicidade, no sentido de (em termos gerais) não passar por dor ou desprazer?
Essa é uma verdade. Mas, o filósofo estadunidense Robert Nozick nunca acreditou nisso. (1) Aliás, ele fez questão de tentar mostrar que também nós todos nunca levamos a sério o hedonismo como afirmamos da boca para a fora. Para nos revelar isso, ele criou a ideia da “máquina de experiência” e, com ela, quis deixar claro que talvez o utilitarismo, tão próximo de nossa intuição do que é certo, não pudesse realmente ser a moralidade política de nossos sonhos. A “máquina de experiência” nos conectaria a terminais nervosos que nos levariam a ter estados mentais e, portanto, vivências psíquicas, somente prazerosas. E elas seriam escolhidas por nós. Seria como que viver drogado, mas de uma maneira a poder, previamente, selecionar todas as experiências prazerosas – de dois em dois anos – com requintes de sofisticação. Nozick afirma que essa maravilha jamais seria utilizada por nós. Renunciaríamos a entrar na máquina. Segundo ele, não queremos ter a experiência de escrever poesia, mas escrever poesia de fato, não queremos ter a experiência de comprar uma casa, mas efetivamente comprar a casa, não desejamos ter a experiência de nos apaixonar, mas nos apaixonarmos realmente. Nozick diz que, apesar de nosso desejo por estados mentais agradáveis bem específicos, rejeitaríamos com força toda proposta de frequentar a máquina, pois não horroriza gastarmos nossas vidas com os estados mentais e não com as realizações efetivas de toda a situação correspondente aos estados mentais.
Nozick achou que ninguém teria dúvidas a respeito de sua conclusão. E então seguiu em frente, propondo sua teoria, uma vez que o utilitarismo (e seu hedonismo intrínseco) estaria derrotado. Mas, de fato, a máquina de Nozick seria rejeitada?
Será verdade isso? Será que, em certos dias, quando tudo dá errado, não toparíamos entrar na máquina de Nozick? Não toparíamos até abdicar de nossos corpos, para ficarmos eternamente com o “cérebro numa cuba”, recebendo estímulos que nos garantissem sensações prazerosas correspondentes a realizações que, enfim, não saberíamos que não possuem correspondente no mundo físico? Será que, na falta desses dispositivos, já não temos isso nas drogas? Não poderíamos, nós todos, vivermos uma época sombria e, então, nos retirarmos todos para o mundo das drogas, ambiciosos de ficarmos protegidos em uma coisa equivalente à máquina de Nozick? Por que Nozick acha que não poderíamos endossar um hedonismo radical e, então, em um mundo com certa tecnologia, nos retirarmos da vida, parcial ou mesmo totalmente?
Que eu saiba Nozick não deu uma resposta a uma pergunta desse tipo. Não creio que ele levaria a sério essa minha pergunta. Sua máquina foi lançada em seus livros para impactar o leitor. Deveria levá-lo a compactuar com a tese de que o hedonismo não tem tanto a ver conosco quanto quiseram mostrar os utilitaristas e, enfim, nosso senso comum. Mas, em alguns momentos, não há como não imaginar tal argumento funcionando ao contrário: podemos muito bem, em grande número, diante de catástrofes, nos retirarmos da vida. Nada nos impede imaginar que não hesitaríamos em fazer como Ulisses no Mar das Sereias, ou seja, ter a sensação da experiência sem de fato sucumbir à realização dela na vida.
Em um livro chamado O corpo, defendi a tese – contra Breton e outros – de que a Internet não é a fuga da vida, ela é o encontro com a vida sem os perigos reais da vida. (2) O que é o sexo virtual? Ora, é exatamente isso: você pode ter sexo de todo tipo, inclusive com violência, sem sair de seu quarto e sem se expor aos perigos reais. Isso não é atrativo? Claro que é. Tanto é que isso sustenta muitas das atividades da Internet e envolve milhões de pessoas. Queremos usar do nosso corpo, ter todo tipo de sensação do mundo, mas não nos arriscaríamos a busca-las na rua de modo algum. Ora, poderíamos então partir para um tipo de hedonismo tecnológico. Ou seja: associaríamos as drogas alucinógenas à vida no mundo virtual e, então, potencializaríamos nosso prazer, sem o medo do risco real que, certamente, passaríamos se fôssemos satisfazer nossos desejos no mundo real. Nossos desejos – inclusive os patológicos – mais sofisticados poderiam ser satisfeitos em um grau inimaginável com tal associação entre droga e tecnologia de Internet. Ora, receio que não ficaríamos nessa nova máquina, a minha e não a de Nozick, somente em tempos sombrios, mas talvez optássemos por entrar nela agora mesmo, caso nos fosse garantida a alimentação para ficarmos ali, durante dois anos, na associação entre drogas e mundo virtual.
É esse o quadro que apavora os mais conservadores, mas ainda assim inteligentes e bem informados, que receiam em apoiar a descriminalização das drogas. Poderíamos ter filas diante da minha máquina neonozickiana. Eu cobraria caro dos usuários. Mas, em determinado momento, eu abandonaria o caixa às moscas e também entraria nela. Ou não? Talvez não, talvez eu quisesse viver solitariamente, no mundo real. (*)
Nozick, R. Anarchy, state and utopia. N. York: Basic books, 1974.
Ghiraldelli Jr., O. O corpo – filosofia e educação. São Paulo: Ática, 2006.
* Digo solitariamente, sim, pois imagino que o Pitoko não hesitaria em entrar na minha máquina, o que faria a Fran também seguir esse caminho.
PS 1: Eu continuo defendendo a descriminalização. Mas não tenho nenhuma dúvida de que a máquina neonozickiana será criada antes mesmo de podermos ter gerado um sistema produtivo que funcione completamente sozinho, para nos alimentar no sono e sonhos eternos, todos ligados às máquinas. Por isso, entrar na máquina será um privilégio dos ricos. Como sempre. Por sua vez, os pobres serão comandados por robôs guardiões e continuarão “na vida”, trabalhando.
PS 2: OK, eu concordo que o texto apresenta uma ficção pouco criativa. Todo mundo já inventou isso tudo na imaginação antes mesmo dos filmes do Flash Gordon. Mas o objetivo do texto era só mostrar que Nozick, ao chutar o utilitarismo de modo fácil, não deu tantos argumentos para a descriminalização das drogas quanto poderia parecer à primeira vista.
---------------------*Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2011/06/26
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