Cioran -Imagem da Internet
Foi durante a Segunda Guerra, num contexto histórico complicadíssimo, que Cioran começou a escrever o “Breviário dos vencidos”. Exilado numa Paris ocupada, vivendo de bolsas e sem nenhuma perspectiva de vida, resolveu deixar de lado o manuscrito final, que considerava apenas um amontoado de “divagações juvenis”. O seu lançamento tardio, em 1993, jogou luz sobre um período menos conhecido do “pensador crepuscular”, em que ele ainda se mostrava profundamente influenciado pelas paixões que lhe conferiam a cultura alemã e romena. O que ninguém sabia, na época, é que o livro tinha uma série de capítulos não aproveitados, muito peculiares dentro de sua obra. Espécie de retalho do retalho, o livro sai do limbo pelas mãos dos tradutores Vincent Piednoir e Gina Puica, com o título de “Le bréviaire des vaincus II”, publicado pela L’Herne. Piednoir, que conversou por e-mail com o GLOBO, também é organizador da recém-lançada correspondência entre Cioran e o poeta suíço Armel Guerne, a mais completa dedicada até agora. Nas cartas trocadas entre 1961e 1978, aprende-se alguns segredos sobre a vida íntima do recluso autor, que surpreende por sua humanidade e compaixão.
“Breviário dos vencidos” é o último livro que Cioran escreveu em romeno. É possível notar alguma mudança no estilo de Cioran , como se ele se preparasse para adotar o francês?
VINCENT PIEDNOIR: Quando começou a escrever o “Breviário”, Cioran tinha a impressão, creio eu, que seu país nunca entraria para a História. Sua relação com a Romênia era de amor e ódio extremo. Na França, durante a guerra, sua pátria é o romeno. E é nessa língua que ele faz um painel repleto de amargura, pressintindo que alguma coisa em sua identidade fora rompida. A linguagem do “Breviário” continua muito próxima de seus livros anteriores: o estilo é muito instintivo, e segue o ritmo imposto pela inspiração e a necessidade vital de se expressar. Alimentado pela filosofia e a literatura alemã, o jovem Cioran sentia o mundo pelo prisma de um romantismo incendiário. Estava fascinado pela loucura, por aquilo que chamava, em seu primeiro livro, de “as fundações íntimas da vida”. Suas concepções eram puramente fatalistas, rejeitavam o recuo racional. A razão era associada ao declínio, à morte do espírito. Quando mais tarde passou a escrever em francês, assumiu uma distância enorme de tudo isso, assumindo, não sem dificuldades, o seu estatuto de consciência.
O que a segunda parte do “Breviário” acrescenta à primeira?
PIEDNOIR: Eu diria que Cioran continua a explorar suas obsessões. A continuação do “Breviário” é interessante naquilo que sublinha a sigularidade do escritor: a de que ele não é apenas um pensador ou um filosófo, mas também um ser disposto a acolher as revelações que gratificam a verdade. É um “pensador de ocasião”, alguém que só toma a palavra quando pode investir em sua intuição. Mas a segunda parte do “Breviário” acresenta à primeira o tema do amor, algo surpreendente em relação a toda a obra de Cioran. Isso dá a seu discurso um lado adolescente muito curioso. Ao contrário da primeira, que foi bastante retrabalhada, essa segunda parte foi escrita de uma só vez. Há uma espontaneidade na escrita que confere ao texto um frescor maravilhoso, mas que também o torna às vezes muito obscuro.
A correspondência com Armel Guerne dá pistas sobre as razões em adotar um outro idioma?
PIEDNOIR: Em determinada carta, ele diz a Guerne que faz meses que não lê em alemão. E explica que se arrepende de ter sido tão fascinado por esta língua. Para ele, falta ao alemão a retidão que Rivarol atribuía ao francês. Cioran mudou de língua porque, uma vez instalado na França, não poderia continuar a ecrever em um idioma que não ultrapassa as fronteiras da Romênia. Mas, ao mesmo tempo, é mais profundo do que isso. É uma mudança de identidade. Ele não quis traduzir para o francês o seu antigo Eu, mas sim repensar esse Eu e sua inscrição histórica pela transparência obrigatória do francês. Mesmo que a correspondência com Guerne não mostre exatamente as razões dessa mudança, podemos compreender em diversas passagens que Cioran encarava o romeno e o alemão como ameaças. Porque as duas línguas inspiravam nele um desejo profundo de se reintegrar à vida. Desejo com o qual lutava usando as armas do ceticismo, sem nunca, porém, reduzir a sua intensidade.
Guerne tem uma trajetória engajada, deixou momentaneamente a literatura para lutar na Resistência. Já Cioran, ao contrário, defende o ócio e a inação. Mesmo assim, mostram na correspondência uma profunda cumplicidade, como se fossem lados diferentes de uma mesma moeda...
PIEDNOIR: Cioran é um ser de pulsão; mesmo que ele defenda o ócio, não consegue se acostumar a ideia de não fazer nada. A raiva qualifica esta atitude no que ela guarda de violência, de descontinuidade, de capricho também. O assalto, na ideia de Guerne, é diferente da raiva no que tem de continuidade, certeza, de irremediavelmente voltado a um objetivo. Entre Cioran e Guerne há muitas diferenças. Um não sabe direito o que pensa de Deus, enquanto o outro carrega uma fé indestrutível. Mas, no fundo, ambos encarnam duas maneiras extremas de viver a condição humana.
Na correspondência, Cioran está sempre reclamando do seu próprio ócio. A inpressão que se tem é que sofria para manter a inatividade que tanto defendia. No fim das contas, não fazer nada pode ser ainda mais laborioso do que uma vida repleta de ações e projetos?
PIEDNOIR: Depois da guerra, Cioran não consegue mais justificar a agitação dos homens, mesmo sendo capaz de compreendê-la. Ele vê nela a fonte do mal — ancorada metafisicamente no pecado original. No entanto, é verdade que ele sofre para permanecer nesse estado de inatividade que considera “sábio”. Isso mostra que o autor estava dividido entre o seu desejo de retirar-se definitivamente do mundo da ação e a sua incapacidade de assumir plenamente esse desejo. Retirar-se da ação, é confrontar-se ao tempo imenso do retiro, é correr o risco de morrer de tédio. Cioran tinha consciência disso. Reprovava a agitação dos homens, mas não ignorava o perigo que é recusar qualquer projeto. A inação não é suficiente, e aceitar as consequências disso exige uma força sobre-humana, que é a de um sábio. Só que Cioran não era um sábio, e sim um ser humano impotente, embora forte e corajoso por assumir este desejo de ser sábio, contra tudo e contra todos. Pouco importa que não tenha alcançado plenamente o seu objetivo. O importante é que tenha agido para nós como um espião das coisas transcendentes — ao mesmo tempo em que permanecia humano, humano até demais...
Embora procurasse a sinceridade em seus textos, o personagem Cioran nem sempre correspondia ao escritor. Sua correspondência nos ajuda a identificar melhor as diferenças entre o homem íntimo e o mito?
PIEDNOIR: Com certeza! Cioran se revela muito diferente daquele personagem que uma leitura apressada de seus livros pode supor. É uma figura de surpreendente empatia com os seres e as coisas, preocupa-se permanentemente com Guerne. É o oposto de um misantropo, partindo do princípio que um misantropo é impermeável à piedade. Cioran, tão violento, às vezes, em relação ao homem, tão disposto a blasfemar e a desejar a destruição de tudo que é forma, se mostra atingido em seu ser pelo sofrimento que constata no indivíduo.
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Reportagem por Por Bolívar Torres, Especial para O GLOBO, de ParisFonte: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2011/06/25/entrevista-com-vincent-piednoir-sobre-cioran-388399.asp
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