sexta-feira, 24 de junho de 2011

Hemingway - O escritor de todo escritor

Eric Nepomuceno*


García Márquez, que põe Hemingway ao lado de Faulkner
como mestre: ele foi "o que mais teve a ver com meu ofício,
pelo seu assombroso conhecimento do aspecto artesanal
da ciência de escrever"

Em 1957, Paris teve uma primavera chuvosa. Certa manhã, um sul-americano jovem, magricela, de bigodes rebeldes e cabelos revoltos caminhava pelo boulevard Saint-Michel, quando avistou, na calçada do outro lado, um casal evidentemente estrangeiro. O homem era alto, usava jeans gastos, uma camisa xadrez e um boné de jogador de beisebol. "Seus óculos de armação metálica, redondos e minúsculos, não pareciam dele. Tinha a aparência de um avô prematuro", lembraria ele tempos depois, quando já não era mais jovem nem magricela.
A descrição minuciosa e precisa, passados tantos anos, mostra como foi forte aquela impressão: "Havia cumprido cinquenta e nove anos, e era enorme e demasiado visível, mas não dava a impressão de fortaleza brutal que sem dúvida ele teria desejado, porque tinha as cadeiras estreitas e as pernas um pouco esquálidas." E diz mais: "Parecia tão vivo entre as bancas de livros usados e a torrente juvenil da Sorbonne que era impossível imaginar que faltavam apenas quatro anos para que morresse."
Naquela tarde, o jovem ficou subitamente dividido entre seus dois ofícios rivais, o de jornalista e o de escritor. Seu primeiro livro, "La Hojarasca", lançado dois anos antes, recebera boas críticas. Mas era também o repórter estrela do "El Espectador", na época o jornal mais importante de seu país. O grandalhão, por sua vez, era o escritor mais admirado do mundo. Três anos antes havia ganhado o Nobel de Literatura.
Na dúvida entre pedir uma entrevista ou atravessar a rua e falar de sua admiração, o jovem limitou-se a gritar em castelhano: "Maestro!" O grandalhão, com a certeza de que não podia haver outro mestre no meio da multidão, virou-se e, acenando, gritou de volta: "Adiós, amigo!"
Essa foi a visão fugaz que Gabriel García Márquez guardou da única vez em que viu Ernest Hemingway. Essa espécie de fervor, que Hemingway causou em muitos escritores, sobretudo quando jovens, perdurou pelos tempos. "A obra daquele homem efêmero que tinha acabado de me cumprimentar lá da outra calçada havia me deixado a impressão de que algo havia acontecido na minha vida, e havia acontecido para sempre", lembrou García Márquez anos depois.
Sua influência é palpável em autores de todas as latitudes, das mais visíveis, que vão de J.D. Salinger em seus contos e nos diálogos de "O Apanhador nos Campos de Centeio" e Raymond Carver em praticamente tudo o que escreveu, a autores nos quais essa marca é apenas perceptível. Muitas vezes, não aparece de forma direta, mas através de escritores sobre os quais ele, em determinado momento, causou impacto. Truman Capote disse que "em termos de estilo, Hemingway influenciou, em escala mundial, mais escritores que qualquer outro".
Hemingway - Imagem da Internet
Francis Scott Fitzgerald, amigo e contemporâneo de Hemingway, chegou a dizer que ele era "o maior escritor vivo de língua inglesa". O mais curioso é que durante anos e anos leitores travaram uma disputa acirrada para determinar qual dos dois era o maior escritor de seu tempo.
John dos Passos foi muito amigo de Hemingway. Entre as suas lembranças, uma é especialmente interessante. Contava que durante uma época os dois liam, um para o outro, trechos da "Bíblia": "Ele é que começou. Líamos pequenos trechos isolados. Não entendíamos nada, mas Hemingway, naquele tempo, falava muito do estilo". E foi precisamente nesse aspecto - estilo - que Hemingway se notabilizou. Com ele, tornou-se possível escrever uma literatura muito diferente da que se fazia na época. O rigor na construção, a secura do texto, a precisão dos diálogos, tudo isso formou a marca que vem sendo transmitida a outros autores tempos afora.
Mesmo quem não gostava muito de sua obra, como William Styron, reconheceu: "Hemingway mudou todo um estilo literário. Não o considero tão bom, mas reconheço que foi revolucionário, que mudou a percepção de uma geração inteira". Mais justo seria observar que mudou a percepção de várias gerações. A Prêmio Nobel sul-africana Nadine Gordimer, por exemplo, admitiu: "Hemingway deve ter influenciado todo mundo que começou a escrever no fim da década de 40, como eu. Ele me influenciou através de seus contos, e também pela forma de construir os diálogos". Evelyn Waugh deixou de lado seu humor corrosivo - bem, mais ou menos de lado - para observar: "Hemingway fez algumas verdadeiras descobertas sobre o uso da linguagem em seu primeiro romance, 'O Sol Também se Levanta'. Eu admirava o modo com que ele fazia os bêbados falarem".
García Márquez diz que dois de seus grandes mestres foram William Faulkner e Ernest Hemingway: "Faulkner foi o que mais teve a ver com a minha alma, e Hemingway o que mais teve a ver com meu ofício, pelo seu assombroso conhecimento do aspecto artesanal da ciência de escrever".
J.M. Simmel, autor de "Nem só de Caviar Vive o Homem", afirmou que "faria qualquer coisa para ter escrito um livro como 'Por Quem os Sinos Dobram', um romance genial". Curiosa observação a de Simmel: afinal, poucos escritores consideram que Hemingway tenha escrito romances geniais. Contos esplêndidos, sim. Romances, nem tanto. Saul Bellow, também Prêmio Nobel, dizia que Hemingway inventou uma linguagem que, para a sua geração, criou um estilo de vida. "Nunca o considerei um grande romancista." Há os que, como o italiano Alberto Moravia, acharam que até determinada altura Hemingway havia sido, sim, um bom romancista: "Escreveu livros ótimos, como 'Adeus às Armas', 'Fiesta' ou 'Morte no Entardecer', até o desastre que foi 'Por Quem os Sinos Dobram'. A partir desse livro, passou a imitar a si mesmo, e assim foi até o fim".
Curiosamente, Moravia deixa de lado um pequeno romance chamado "O Velho e o Mar", o único de admiração quase unânime entre escritores das mais diversas gerações. Um deles, Mario Vargas Llosa, diz que nunca antes, como nesse livro, Hemingway havia alcançado "a perfeição que atingiu nesse relato, escrito num estilo diáfano, com uma estrutura impecável".
Sim, existe de tudo, quando se busca a opinião de autores sobre Hemingway. Anthony Burgess deu uma definição estranha: "Foi um grande romancista que jamais escreveu um grande romance". E Gore Vidal, sempre eficiente na busca de polêmicas, declarou: "Detesto Hemingway, mas não há dúvidas de que fiquei encantado com ele. Achava sua prosa perfeita". A lista é longa. No fundo, pode ser que todos tenham razão. (EN)
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* Eric Nepomuceno é escritor, autor, entre outros, de "Antologia Pessoal" (contos, Record, 2008) e "A Espanha de Hemingway: a Outra Pátria" (perfil biográfico, L&PM, 1991).
Fonte: Valor Econômico on line, 24/06/2011

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