segunda-feira, 13 de junho de 2011

Meu irmão Kierkegaard

LUIZ FELIPE PONDÉ*


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Somos um nada que ama.
Tanto a angústia como o amor
são "virtudes práticas"
 que demandam coragem

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QUANDO VOCÊ estiver lendo esta coluna, estarei em Copenhague, Dinamarca, terra do filósofo Soren Kierkegaard (1813-1855), pai do existencialismo. Ao falarmos em existencialismo, pensamos em gente como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, tomando vinho em Paris, dizendo que a vida não tem sentido, fumando cigarros Gitanes.
O ancestral é Pascal, francês do século 17, para quem a alma vive numa luta entre o "ennui" (angústia, tédio) e o "divertissement" (divertimento, distração, este, um termo kierkegaardiano).
O filósofo dinamarquês afirma que nós somos "feitos de angústia" devido ao nada que nos constitui e à liberdade infinita que nos assusta.
A ideia é que a existência precede a essência, ou seja, tudo o que constitui nossa vida em termos de significado (a essência) é precedido pelo fato que existimos sem nenhum sentido a priori.
Como as pedras, existimos apenas. A diferença é que vivemos essa falta de sentido como "condenação à liberdade", justamente por sabermos que somos um nada que fala. A liberdade está enraizada tanto na indiferença da pedra, que nos banha a todos, quanto no infinito do nosso espírito diante de um Deus que não precisa de nós.
O filósofo alemão Kant (século 18) se encantava com o fato da existência de duas leis. A primeira, da mecânica newtoniana, por manter os corpos celestes em ordem no universo, e a segunda, a lei moral (para Kant, a moral é passível de ser justificada pela razão), por manter a ordem entre os seres humanos.
Eu, que sou uma alma mais sombria e mais cética, me encanto mais com outras duas "leis": o nada que nos constitui (na tradição do filósofo dinamarquês) e o amor de que somos capazes.
Somos um nada que ama.
A filosofia da existência é uma educação pela angústia. Uma vez que paramos de mentir sobre nosso vazio e encontramos nossa "verdade", ainda que dolorosa, nos abrimos para uma existência autêntica.
Deste "solo da existência" (o nada), tal como afirma o dinamarquês em seu livro "A Repetição", é possível brotar o verdadeiro amor, algo diferente da mera banalidade.
É conhecida sua teoria dos três estágios como modos de enfrentamento desta experiência do nada. O primeiro, o estético, é quando fugimos do nada buscando sensações de prazer. Fracassamos. O segundo, o ético, quando fugimos nos alienando na certeza de uma vida "correta" (pura hipocrisia). Fracassamos. O terceiro, o religioso, quando "saltamos na fé", sem garantias de salvação. Mas existe também o "abismo do amor".
Sua filosofia do amor é menos conhecida do que sua filosofia da angústia e do desespero, mas nem por isso é menos contundente.
Seu livro "As Obras do Amor, Algumas Considerações Cristãs em Forma de Discursos" (ed. Vozes), traduzido pelo querido colega Álvaro Valls, maior especialista no filósofo dinamarquês no Brasil, é um dos livros mais belos que conheço.
A ideia que abre o livro é que o amor "só se conhece pelos frutos". Vê-se assim o caráter misterioso do amor, seguido de sua "visibilidade" apenas prática.
Angústia e amor são "virtudes práticas" que demandam coragem.
Kierkegaard desconfia profundamente das pessoas que são dadas à felicidade fácil porque, para ele, toda forma de autoconhecimento começa com um profundo entristecimento consigo mesmo.
Numa tradição que reúne Freud, Nietzsche e Dostoiévski (e que se afasta da banalidade contemporânea que busca a felicidade como "lei da alma"), o dinamarquês acredita que o amor pela vida deita raízes na dor e na tristeza, afetos que marcam o encontro consigo mesmo.
Deixo com você, caro leitor, uma de suas pérolas:
"Não, o amor sabe tanto quanto qualquer um, ciente de tudo aquilo que a desconfiança sabe, mas sem ser desconfiado; ele sabe tudo o que a experiência sabe, mas ele sabe ao mesmo
 tempo que o que chamamos de experiência é propriamente aquela mistura
 de desconfiança e amor... Apenas os espíritos muito confusos
e com pouca experiência acham que podem julgar outra
pessoa graças ao saber."
Infelizes os que nunca amaram. Nunca ter amado é uma forma terrível de ignorância.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.ponde.folha@uol.com.br
Fonte: Folha on line, 13/06/2011

2 comentários:

  1. Faltou dizer que o pensador e teólogo Soren Kierkegaard, embora fosse crítico das instituições religiosas, era um cristão convicto, informação esta que não identifiquei no texto acima. Lembremos que o verdadeiro cristão deve ser um templo vivo e semelhante a Jesus, segundo as palavras do próprio Cristo.
    Em toda a sua obra, ou através dos estágios citados, Kierkegaard deixa claro que é a fé em JESUS CRISTO que proporcionará a libertação do sujeito moderno de sua angústia e desespero, culminando no AMOR.
    No prefácio das "Obras do Amor", Kierkegaard diz que este livro é composto de "Considerações cristãs, por isso não sobre 'o amor', mas sim sobre 'as obras do amor'. [...] O que em toda a sua riqueza é essencialmente inesgotável, é também nas suas obras mais pequenas essencialmente indescritível, justamente porque ele essencialmente está presente todo em toda parte, e por essência não pode ser descrito."
    Logo, vejo que o comentário acima distorce equivocadamente o conceito cristão do amor defendido por Kierkegaard - e corroborado por Álvaro Valls, inclusive na orelha e na apresentação da supracitada edição, basta conferir, quando Álvaro diz que este livro "exuma os conceitos do cristianismo soterrado por mais de 1800 anos de cistandade -, quando Pondé afirma que o amor tratado por Kierkegaard é o 'amor pela vida', assinalando uma 'tradição que reúne Nietzsche, Freud e Dostoiévski."
    Ora, talvez eu até enxergue certa pertinência na comparação com Dostoievski, considerando a fé cristã presentes, sobretudo em Crime e castigo, por exemplo, mas com Nietzsche e Freud, isto me parece um absurdo delirante, uma cegueira intoxicada pelo mal estar da civilização ou por um ditirambo desafinado, ou ainda uma intenção clara de reduzir ou desqualificar toda essência do amor cristão nas considerações de Kierkegaard, deslocando-o da angústia e desespero até a elevação da alma através das relações cotidianas e do amor ao próximo, filtradas pela espiritualidade cristã.
    Portanto, não vejo qualquer relação com a tragicidade e o paganismo de zaratustra, uma vez que Nietzsche foi aquele que condenou o idealismo platônico e o ascetismo cristão, escrevendo e autoproclamando-se 'anticristão', inclusive, e do psiquismo desejante e reprimido de Freud que, depois de o Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, virou estorinha de ninar para surdos. Creio que Freud deveria ter lido “O Alienista”, de Machado. E deveria saber que Machado tinha as Escrituras Sagradas como seu livro de cabeceira, ainda que não fosse convicto como Kierkegaard, mas talvez seduzido pela eternidade das palavras que giram em torno da essência amorosa de Cristo, tal como nos versos do apóstolo Paulo em sua primeira Carta aos Coríntios, que diz assim:

    "Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.
    E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.
    E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.
    O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece.
    Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal;
    Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
    Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
    O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá;
    Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos;
    Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado.
    [...]"
    A paz.
    Sergio Assunção

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    1. Caro Sergio, permita-me uma sugestão de leitura: Jesus - Um Retrato do Homem. Autor: A. N. Wilson. Paz e bem!

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