sexta-feira, 10 de junho de 2011

Borges, sentimental

Literatura:
Biógrafo tenta mostrar que o escritor argentino é
diferente de sua imagem oficial de intelectual frio,
 hermético, encastelado na biblioteca.
Borges na Sicília, no fim dos anos 1970, com sua então
 "secretária literária" María Kodama, que se
 casaria com ele em 1986: "Toda literatura é autobiográfica,
em última instância"


Libertar Jorge Luis Borges da imagem racional em que está encarcerado: esse é o objetivo de Edwin Williamson em "Borges, uma Vida", biografia do escritor argentino traduzida por Pedro Maia Soares para a Companhia das Letras. Borges é, hoje, uma lenda aprisionada em uma coroa de clichês. Escritor frígido, indiferente ao mundo, deliberadamente críptico, preso em uma biblioteca. Livros sobre livros, ideias que remetem a novas ideias, diálogos com os mortos, jogos intelectuais refinados. Esse é o Borges oficial, reverenciado nas academias, nas livrarias e nos gabinetes intelectuais. Contra esse Borges, de seu coração secreto, Williamson arranca um novo escritor. Um surpreendente Borges sentimental.
Ouçamos o próprio Borges: "Sou um sentimental, diria que desagradavelmente sentimental, muito sensível e vulnerável. O que acontece é que, quando escrevo, faço-o por meio de símbolos. Nunca me confesso diretamente". Pode ser só mais uma máscara, mais um lance de mestre do incansável jogador. Diz-se sempre que, para Borges, a literatura se assemelhava não só a um jogo, mas à matemática ou, mais especificamente, à álgebra. Ramo da matemática que se refere às operações, aos sistemas e ao cálculo, a álgebra seria o território da frieza e da abstração, do qual o humano estaria definitivamente banido.
Para contrapor-se a essa ideia, Williamson retorna às palavras do próprio Borges: "As pessoas supõem que a álgebra corresponde a uma frieza interior, mas não é assim, é o contrário: essa álgebra é uma forma do pudor e da emoção". O biógrafo nos apresenta um inesperado Borges sentimental, que faz do jogo intelectual um discreto, mas eficaz, manto de proteção. Para entender o papel das emoções na obra de Borges, Williamson sugere que sigamos pistas guardadas em "O Jardim de Veredas Que Se Bifurcam", um de seus contos mais célebres. Escreve Borges: "Numa adivinha cujo tema é o xadrez, qual é a única palavra proibida? A resposta é: a palavra é xadrez". Também a palavra sentimental Borges estava proibido de pronunciar e, no entanto, ela é a chave que nos falta.
"Tudo é poético na medida em
que confessa um destino, na medida
em que nos dá um vislumbre dele",
disse o autor de
"A Rosa Profunda"
Também nós, seus leitores, não devemos pronunciá-la. Talvez seja mais prudente. Williamson nos adverte a respeito do conjunto de hiatos, incongruências, descontinuidades, contradições que compõem não só a obra, mas a figura de Jorge Luis Borges. Não existe outro nome que dê conta desse emaranhado, a não ser esse mesmo: Borges. Podemos, sim, e é o que Williamson faz com brilho, repuxar do interior da obra alguns fios que nos permitam - como nos fantoches - manipular o homem chamado Jorge Luis. Lembra o biógrafo que, em um ensaio de 1926, "Profissão de Fé Literária", o próprio Borges nos autoriza essa operação. Escreve: "Toda literatura é autobiográfica, em última instância. Tudo é poético na medida em que confessa um destino, na medida em que nos dá um vislumbre dele". A ênfase, aqui, está na palavra "vislumbre": apesar de seu esforço, nem o melhor dos biógrafos consegue ver mais do que uma luz tênue e frouxa, só um brevíssimo clarão em meio ao escuro. É na escuridão que se guarda, como um segredo jamais revelado, como diz Borges, a "substância autobiográfica". Só em partes muito frágeis a alcançamos e ela lá permanece, "como um coração que bate na profundeza".
Para ocultar esse coração, Borges protegeu-se com uma muralha de livros. Sua literatura é essa muralha. No ensaio "A Biblioteca Total", recorda Williamson, o escritor fala de um pesadelo com "milhões de insensatas cacofonias, barafundas verbais e incoerências". Enquanto a maioria dos homens nele afunda, uns poucos - como Borges - o transformam em escrita. No fecho de um de seus contos mais festejados, "O Duelo", narrativa da amizade secreta entre duas mulheres rivais, Borges nos fornece uma síntese para o destino humano, que o torna inacessível, mas, por isso também, sedutor: "A história que se desenrolou na sombra acaba na sombra".
O livro de Williamson não pretende explicar "o mistério Borges". Ao fim da leitura, de fato, o mistério continua intocado e Borges, inacessível. Ele mesmo falava da inexistência do indivíduo como um ser com limites claros e porte preciso. Nós, humanos, somos mais parecidos com o abismo de imagens superpostas que se abre nos espelhos paralelos dos elevadores. Quanto mais imagens se desdobram, mais estamos distantes de nós mesmos. A regra vale também para as biografias, que não passam de tentativas, parciais e precárias, de capturar um homem. Borges denunciou, com vigor, a fraude do realismo. A questão do escritor não é refletir ou dizer a verdade; mas não é também falsificar e mentir. Sua função é despertar no leitor aquilo que ele chamava de "fé poética", na qual pedaços da verdade, distorcidos e incompletos, são moldados pela solda da imaginação.
O biógrafo está certo quando afirma que a obra de Borges "amplia o alcance da ficção". Nas mãos de Borges, a ficção deixa de ser só jogo intelectual e arbítrio, mas também espelho e verdade, para se tornar um intervalo aberto entre o sujeito e o mundo e no qual, podendo enfim respirar, ele se conserva de pé.
Falando da morte de Borges, um comovido Williamson recorda o ensinamento de São João, segundo o qual "não é o homem que descobre o Verbo, é o Verbo que vem a ele". Mais que autor, um homem é um efeito de suas palavras - e esse princípio se aplica também a um gênio como Borges. Mais que um protagonista, o escritor é uma vítima. O mundo é grande demais para caber nas palavras. Lembra-se Williamson, então, de "The Unending Rose", o poema que encerra "A Rosa Profunda". Nele, Borges assume a voz do místico persa Attar de Nishapur, autor do "Colóquio dos Pássaros". Os versos são eloquentes e expressam a aposta de Borges na turbulência do real:
"Cada coisa
É infinitas coisas. Tu és música,
Firmamentos, palácios, rios e anjos,
Rosa profunda, ilimitada, íntima,
Que o Senhor mostrará aos meus olhos mortos".
Por discordar de suas posições políticas - que, mostra Williamson, foram bem mais complexas do que seus críticos consideravam -, muitos acusaram Borges de viver e escrever em uma torre de marfim. Dizia ele, ao contrário, que habitamos um jardim de veredas que se bifurcam. Nesse jardim da realidade, como nos labirintos (outra das imagens mais insistentes de sua escrita), avançamos não para nos conhecer, mas para nos perder. Daí Borges só acreditar na salvação pela literatura. Ela seria nosso último lugar de salvação.
No conto "O Milagre Secreto", Borges nos apresenta a história do escritor judeu Jaromir Hladík, seu duplo, que é condenado à morte pelos nazistas. O condenado pede a Deus mais algum tempo de vida para terminar a tragédia inacabada "Os Inimigos". Em sua prece de despedida, Hladík reconhece que a literatura é a última imagem que dele restará: "Se de algum modo eu existo, se não sou uma das tuas repetições e erratas, existo como autor de 'Os Inimigos'. Para pôr termo a esse drama, que pode me justificar e Te justificar, necessito um ano mais". Borges nos fala, assim, não só da dependência humana das palavras, mas também de um Deus que, sem as palavras, nada é. A esse Deus frágil e miserável, mas consolador, podemos talvez, inspirados por Borges, chamar de literatura.
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REPORTAGEM POR: José Castello Para o Valor, do Rio
Fonte: Valor Econômico on line, 10/06/2011

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