CARLOS HEITOR CONY*
Imagem da Internet
“É estranho que um agnóstico, homem que perdeu a fé mal saído da adolescência, seja devoto de Santo Antônio. Devoto militante que entra nas igrejas de todo o mundo, procura uma imagem do Santo e lhe acede velas. Pode parecer superstição, mas é gratidão. E, sobretudo, é o exercício de uma memória religiosa que nunca o abandonou. Esse homem sou eu.” Sincero e comovente, o relato de Carlos Heitor Cony, jornalista, articulista do jornal Folha de S.Paulo, vem mostrar mais uma vez a universalidade e a força da devoção ao Santo de Pádua/Lisboa, que ultrapassa fronteiras, derruba barreiras de classes sociais e vai além das crenças religiosas. Viva Santo Antônio, o santo de todo mundo!!!
Em 1977, visitando Israel pela primeira vez, assumi para sempre minha devoção a Santo Antônio. Estava em Belém, na Igreja da Natividade. Percorria o país bíblico de ponta a ponta e verifiquei que em todas as igrejas e capelas se veneravam atos e fatos dos tempos de Jesus. Praticamente, eram raras as imagens de santos, pois ali era a terra do próprio Cristo. Daí o meu espanto quando, à saída, quase junto à porta, um pouco escondida, encontrei uma imagem de Santo Antônio. Diante dela, uma vela solitária, acesa por um devoto que, mesmo no local onde nascera o Filho de Deus, cultuava o santo nascido em Lisboa e morto em Pádua – o santo mais ocidental, talvez, sem nenhum laço biográfico com a Terra Santa.
Diante daquela imagem me recordei da minha infância. O 13 de junho de cada não era o dia mais importante do nosso calendário doméstico. Meu pai e minha mãe eram devotos do Santo Antônio e, por mais difícil que estivesse a vida, eles não se esqueciam de comemorar a festa. Minha mãe erguia na sala de visitas um pequeno altar, retirava do seu oratório a imagem de Santo Antônio – a peça mais importante da nossa casa – e em torno dela se armava e se arrumava o resto de nossas vidas. Flores e velas eram colocadas desde a véspera. Meu pai fazia balões e fogueiras, era o festeiro; a cada balão que soltava seu grito varava a noite iluminada: “Viva Santo Antônio!”
Um grito sincero, pois tanto meu pai como minha mãe sentiam-se protegidos pelo Santo, a ele atribuíam os milagres miúdos da crônica familiar – inclusive o maior de todos, que não era miúdo: o fato de estarmos juntos, num teto simples e afetuoso.
Nas horas difíceis, era o Santo Antônio que recorríamos. Parentes e vizinhos sabiam da eficiência do nosso santo e pediam que minha mãe acendesse velas e orasse nos momentos problemáticos que atravessavam. Dentre os feitos que lhe atribuímos então, o que mais nos espantava fora o milagre de um primo ter passado pelo exame para o Pedro II.
Uma vela solitária diante de uma imagem tosca
Foi pensando nisso tudo que quis comprar uma vela. O guia turístico colocado pelo governo de Israel à minha disposição ficou surpreso, pois sabia que eu não praticava nenhuma religião. Mesmo assim, foi procurar a tal vela. Ao acendê-la diante de uma imagem tosca, pequenina, escondida na imensa nave erguida em torno da manjedoura onde Cristo nascera, eu retomava uma tradição e assumia uma fé especial e dirigida.
Daí em diante, nunca mais deixei de procurar Santo Antônio nas igrejas de todo o mundo. Fui ao local de seu nascimento, em Lisboa, onde deixei gravados meu nome e minha gratidão numa pedra de mármore. Fui quatro vezes a Pádua especialmente para visitar sua monumental Basílica, uma obra-prima do duecento, com algumas das melhores esculturas de Donatello e afrescos de mestres da pintura mundial, como Giotto e Mantegna.
Em Roma, na igreja do Convento dos Capuchinhos, ali no final da Via Veneto, quase junto à Praça Barberini, há uma imagem de Santo Antônio muito especial, à direita do altar-mor. Nunca deixei de ir lá e acender minhas velas no primeiro e no último dia de minha estada na cidade. Sob a imagem, a frase em latim que inicia o seu famoso Responsório: “Si quaeris miracula” (Se queres milagre).
Na realidade, eu nunca quero nem peço milagres. Peço proteção e agradeço por tudo – pois muito tenho a agradecer, desde as pequeninas coisas que me aconteceram e me trouxeram até onde estou, até a superação de algumas dificuldades que não podem ser consideradas miúdas; que contêm, realmente, um germe maravilhoso e de sobrenatural que eu não mereço nem explico, mas agradeço.
Santo Antônio é um caso à parte na história da Igreja. Sua popularidade (talvez seja o santo mais popular do Ocidente) se deve à sua fama de milagreiro, de casamenteiro, de festeiro (este último atributo coisas dos portugueses, que juntaram no mesmo pacote junino dois outros grandes santos que tiveram contato físico com Jesus aqui na Terra: são Pedro, o príncipe dos apóstolos, e são João, primo e precursor do próprio Cristo).
O estranho é que a fama dos milagres de Santo Antônio, que começou em sua curta vida (ele morreu com apenas 40 anos, em 13 de junho de 1231), ofuscou sua condição de Doutor da Igreja.
Ele foi um dos maiores pregadores da história humana, podendo ser alinhado ao lado dos pagãos Demóstenes e Cícero. No pequeno Convento de Santa Maria Mater Domini, junto aos vinhedos de Rutena, ele compôs sues famosos Sermões (dos Domingos e dos Santos), que a Igreja conservava entre seus textos mais notáveis. Ao lado do dominicano Tomás de Aquino, que mereceu o título de “Doutor Angélico”, alinha-se o franciscano Antônio de Pádua, que recebeu o título de “Doutor Evangélico”.
Sua biografia é mal divulgada, apesar de tudo. Tendo nascido em Lisboa, e sendo conhecido como o Santo de Pádua (onde, aliás, viveu pouquíssimo tempo), são frequentes os equívocos sobre a existência de dois Santos Antônios (confusão que o número de milagres a ele atribuídos aumenta substancialmente). Sua imagem também demorou para se fixada no modelo que hoje conhecemos. Desde a sua morte forma inúmeras as representações iconográficas do Santo, abrindo até mesmo um segmento próprio na história da arte religiosa.
Os adversários da fé cristã costumam bater na tecla da idolatria quando se referem ao culto dos santos. A doutrina da Igreja é clara e modelar nesse aspecto: veneram-se os santos porque, sendo seres humanos, e como tais, deram testemunho notável da fé e virtude. E todas as orações dirigidas aos santos são pedidos de intercessão, de mediação. Na Basílica do Santo, em Pádua, diante de uma imagem belíssima da Escola de Giotto, os fiéis de todo mundo rezam uma oração que começa assim: “O Dio che hai scelto Santo Antonio come testimoni del Vangelo e messaggero di pace in mezzo al tuo popolo” (Oh Deus, que escolhestes Santo Antônio como testemunha do Evangelho e mensageiro de paz junto a teu povo).
Graça não é milagre: é um atributo dado de graça
E é por aí que, apesar de agnóstico, entendo-me bem com Santo Antônio, com São José, com a Virgem Maria, que não são deuses, foram humanos como todos nós, mas receberam essa coisa extraordinária e incompreensível que é a Graça. A história de uma alma, no fundo, resume-se no grau da Graça alcançada – e Graça, aqui, não é milagre, não é vantagem nem proveito; é Graça mesmo, um atributo dado de graça.
Bem, aí o assunto envereda para outro tema, e prefiro ficar em Santo Antônio. Lembro minha mãe diante de sua imagem, rezando para ficarmos bons de nossas febres, para passarmos em nossos exames. Lembro o grito poderoso e jucundo do pai, bradando para noite cheia de balões: “Viva Santo Antônio!” Lembro o Santo Antônio na imensa nave vazia da Igreja da Natividade, em Belém. E na penumbra cheirando a incenso da igreja do Convento dos Capuchinhos, em Roma.
Lembro também a Basílica coberta de abóbada, com suas torres monumentais, que a gente avista de longe quando vai de Milão a Veneza. Por humildade, sou obrigado a confessar que apelo ao Santo em momentos de grandes e pequenas dificuldades. Uma delas, bem prosaica por sinal, gostaria de registrar.
Foi em 1977, no mesmo ano e na mesma viagem que me reconciliou com a devoção de minha infância. Em Roma, na véspera de embarcar para o Rio, descobri que me esquecera de marcar o bilhete de volta. Como sempre acontece nessas viagens, o dinheiro estava no fim, e na época ainda não havia cartões de crédito com validade no exterior. A companhia área logo me informou que os aviões estavam lotados por uma semana, pela proximidade do carnaval carioca.
Como jornalista, tive acesso a um dos diretores da companhia. Ele me desanimou: além de não haver lugar, havia uma lista de espera comprida e altamente empistolada por autoridades italianas.
Saí da loja preocupado. O dinheiro não daria para viver uma semana em Roma. Da Via Leonida Bissolati, onde ficava o escritório da companhia, ao hotel, na Via Veneto, eram cinco minutos a pé. Cheguei à recepção desanimado, precisaria providenciar um hotel mais barato.
Não foi necessário. O porteiro me passou uma mensagem da companhia aérea: 57 alemães que iriam passar o carnaval no Rio e estavam com lugares marcados para o dia seguinte precisaram regressar imprevistamente a Munique, por causa de um rolo qualquer com a agência de turismo que abrira falência. Mesmo atendendo à lista de espera, sobrava lugar para mim.
E eu nem chegava a pedir nada a Santo Antônio. Ao passar pelo Convento dos Capuchinhos, que fica no caminho, apenas me prometera acender uma vela ao Santo. E, de algum canto da Cidade Eterna, ouvi aquele grito, a voz do pai cortando a grande noite da minha infância: “Viva Santo Antônio!”
------------------------------------
*Carlos Heitor Cony. Escritos e jornalista.
Fonte: Revista O mensageiro de Santo Antônio, junho/2011 pp.16/18.
Nenhum comentário:
Postar um comentário