Juremir Machado da Silva*
O intelectual tem a obrigação de ser chato. É o seu papel. O publicitário é o mágico que inventa o truque. O sociólogo deve ser o Mister M que grita: "Eu vi, é truque" e desmonta a engrenagem. O intelectual moderno surgiu com o caso Dreyfus, que abalou a França entre 1895 e 1906, quando um oficial judeu, Alfred Dreyfus, foi acusado injustamente de espionagem em favor da Alemanha. O antissemitismo francês mostrou a sua cara horrenda. Um escritor de sucesso, Emile Zola, saiu da sua especialidade, a literatura, e, combatendo no que seria rotulado definitivamente pelo filósofo alemão Jurgen Habermas de "esfera pública", num artigo publicado no jornal L''Aurore, intitulado "Eu acuso", defendeu a vítima dessa grande armação racista, ideológica e cruel.
O intelectual atua no âmago do grande paradoxo da sociedade moderna, que privilegia a especialização, mas não pode se reduzir a ela. Na "esfera pública" só vale o melhor argumento, que pode não ser o do especialista. O intelectual, pela inteligência, pela argúcia, pela lógica e pela capacidade de informar-se rapidamente, deve ser capaz de detectar as contradições dos especialistas e denunciar suas ilusões e explicitar as ideologias que os dominam. Existe, por exemplo, uma ideologia jornalística que se aproxima muito de uma ideologia cientificista, ambas marcadas pela crença na objetividade, na neutralidade, na imparcialidade e no compromisso missionário com a verdade. Só que jornalistas e cientistas, assim como políticos, também são mobilizados por "lógicas de carreira", dinheiro, fama, reconhecimento, prêmios, fundos de pesquisa e troféus.
A primeira obrigação de um intelectual é questionar a "cientificidade" das ciências humanas e sociais. Sei que esse papo é cabeça e pode afastar alguns dos meus leitores, mas todos são inteligentes e podem compreender o que está em jogo. Especialistas dão seus pareceres sobre aborto, energia nuclear, homossexualismo, gramática e outros assuntos do momento. Quem decide, no entanto, é a sociedade por meio dos seus representantes ou de plebiscitos. O especialista não pode vencer a discussão com um efeito de credencial, vulgo carteiraço. Cabe-lhe fazer a demonstração de que o seu argumento é o melhor. Ou seja, deve ser capaz de convencer pela argumentação. O resto é argumento de autoridade. Não cola mais. Jornalistas adoram resolver tudo com especialistas, salvo quando entram em confronto com estes. Aí, só dá rolo.
Na polêmica do que é correto ou não em português, vimos especialistas dando carteiraços a torto e a direito e jornalistas revelando uma ignorância primária, no melhor estilo "certo é certo, errado é errado". Sempre foi assim, assim será ou corremos o risco de ver a língua perecer. Alguns jornalistas revelam o conservadorismo que os caracteriza em qualquer situação. Tudo é bom para mostrar o quanto são superficiais e reacionários, o que lhes garante o apreço dos setores que se distinguem pela sábia ignorância, a certeza de deter uma verdade natural que não passa de um recorte cultural. Caprichei no intelectualismo. Serei chamado de chato. Ótimo.
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*Sociólogo. Escritor. Tradutor. Colunista do Correio do Povo
Fonte: Correio do Povo on line, 04/06/2011
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