terça-feira, 7 de junho de 2011

FMI: mais conservador do que parece

Antonio Delfim Netto*
Em 1981, no discurso de agradecimento por ter recebido o prêmio Nobel de Economia, o grande economista keynesiano James Tobin (1918-2002), afirmou que estudou economia e fez dela a sua carreira por dois motivos: primeiro, porque o conhecimento econômico era e ainda é fascinante e desafiador, e, segundo, porque ele oferecia e ainda oferece medidas que podem melhorar o destino da humanidade.
Há 30 anos, alertava que "esse conhecimento, entretanto, só avança quando extraordinários eventos colocam novos problemas que devemos tentar entender e resolver". E complementava: "A decisão mais importante do intelectual é saber selecionar sobre quais deles deverá trabalhar".
A chamada era da "grande moderação" que o mundo viveu por quase duas décadas (até 2008) parecia ser a "prova" que faltava para demonstrar que os economistas haviam, finalmente, criado uma "verdadeira" ciência econômica e que dela haviam extraído a receita da "boa" política econômica. Bastaria garantir a estabilidade monetária (taxa de inflação abaixo de 2%, com pequena variabilidade). Essa seria a condição suficiente para sustentar um robusto crescimento do PIB e do emprego.
A política monetária tornou-se simplista demais
O regime de taxa de câmbio flutuante, por sua vez, impediria que se acumulassem déficits em conta corrente e, portanto, uma pequena reserva de divisas a manteria relativamente estável. Um bônus importante dessa "descoberta" é que ela sugeria a inutilidade da intervenção do Estado no processo econômico em favor das liberdades individuais. Infelizmente, essa maravilhosa ilusão desfez-se. A pavorosa crise de 2008 surpreendeu brutalmente a profissão com formidável destruição da maior riqueza dos países: desempregou mais de 30 milhões de honestos cidadãos e aumentou substancialmente a pobreza absoluta em quase todos eles.
Estamos vivendo um daqueles grandes "eventos" a que se referiu Tobin, em que a dificuldade é escolher quais os problemas sobre os quais devemos trabalhar e qual a ordem (a prioridade) em que devemos resolvê-los. O fato interessante é que o primeiro "alerta" para isso veio exatamente da mais ortodoxa das igrejas: o FMI, o grande "inquisidor" que impunha punições dramáticas às pobres economias emergentes que mostravam pouca fé nos seus modelos.
Sob o comando de Dominique Strauss-Kahn (agora em desgraça), o competente economista Olivier Blanchard (um fino ortodoxo e autor de dois clássicos e dezenas de artigos nas revistas econômicas mais reputadas) iniciou, corajosamente, uma revisão dos dogmas mais caros construídos pelos que gastaram mais tempo do que o necessário no estudo da topologia (em substituição à história e à psicologia) para entender a economia, ou seja, o comportamento seletivo do cidadão no seu papel de "agente econômico".
O primeiro míssil que partiu da base da ortodoxia abrigada no FMI foi o documento "Repensando a Política Macroeconômica", de autoria do próprio Blanchard e de Giovanni Dell´Ariccia e Paolo Maruo. Causou grande espanto e colocou entre os que se pensam como portadores da "ortodoxia" dúvidas sobre a sanidade mental do primeiro. Um antigo e querido companheiro, que como muitos de nós, "gramou", há 20 anos, a Bíblia "Lectures on Macroeconomics", de Blanchard e Fischer, disse-me que suspeitava que Blanchard estava gagá. Eu lhe respondi que essa era uma possibilidade sobre a qual pairava alguma incerteza. Sobre o que não pairava nenhuma é que a sua velha miopia tornava-se extrema...
Mas afinal, do que se trata? Segundo as próprias palavras de Blanchard ao "The Wall Street Journal":
1) da necessidade de obrigar as pessoas a repensarem algumas coisas e mostrar que o próprio FMI é capaz, também, de algumas novas reflexões;
2) de sugerir que a política monetária tornou-se simplista demais. A realidade não confirmou a afirmação que, fixada a taxa básica de juros, tudo se ajustaria;
3) de mostrar que quando a taxa básica é nula aparecem muitas dificuldades e se exige uma participação mais forte da política fiscal;
4) de discutir se uma taxa e inflação de 4% não poderia servir melhor à sociedade e à política econômica, mesmo porque entre 2% e 4% o custo da inflação não é muito maior. Hoje parece claro que seria melhor ter escolhido 4%. Como se escolheu 2%, uma mudança agora poderia criar um problema de credibilidade;
5) de colocar a questão de se os bancos centrais não deveriam levar em conta outros objetivos, usar instrumentos macroprudenciais para reforçar o papel da taxa de juros e cuidar melhor da estabilidade e liquidez do sistema financeiro; e
6) se não deveríamos construir um sistema de estabilizadores efetivamente automáticos, destinados à estabilização (por exemplo, um crédito fiscal aos investimentos) que entrem em vigor quando cai o PIB e o emprego, sem a necessidade de discuti-los no Congresso, o que lhes tira a eficácia.
Nada muito diferente do que ensinou Tobin há 30 anos: examinar, escolher e resolver, com o avanço do conhecimento econômico, os novos problemas que se colocam quando há um evento extraordinário. Não há, aqui, o menor exemplo de heterodoxia! Apenas o legítimo desejo de continuar a produzir conhecimentos "que podem melhorar o destino da humanidade".
-----------------
* Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
Fonte: Valor Econômico on line, 07/06/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário