quarta-feira, 10 de agosto de 2011

João, I, 14

Jorge Luis Borges*

"Não será menos um enigma esta folha
que as de Meus livros sagrados
nem aquelas outras que repetem
as bocas ignorantes,
crendo-as de um homem, não espelhos
obscuros do Espírito.
Eu que sou o É, o Foi, e o Será,
torno a condescender à linguagem,
que é tempo sucessivo e emblema.
Quem brinca com um menino brinca com algo
próximo e misterioso;
eu quis brincar com Meus filhos.
Estive entre eles com espanto e ternura.
Por obra de magia
nasci curiosamente de um ventre.
Vivi enfeitiçado, encarcerado num corpo
e na humildade de uma alma.
Conheci a memória,
essa moeda que não é nunca a mesma.
Conheci a esperança e o temor,
esses dois rostos do futuro incerto.
Conheci a vigília, o sono, os sonhos,
a ignorância, a carne,
os torpes labirintos da razão,
a amizade dos homens,
a misteriosa devoção dos cães.
Fui amado, compreendido, louvado e pendi de uma cruz.
Bebi o cálice até as fezes.
Vi por Meus olhos o que nunca havia visto:
a noite e suas estrelas.
Conheci o polido, o arenoso, o desparelho, o áspero,
o sabor do mel e da maçã,
a água na garganta da sede,
o peso de um metal na palma,
a voz humana, o rumor de uns passos sosbre a erva,
o olor da chuva na Galiléia,
o alto grito dos pássaros.
Conheci também a amargura.
Encomendei a um homem qualquer esta escritura;
nunca será o que desejo dizer,
não deixará de ser seu reflexo.
Da Minha eternidade estes signos caem.
Que outro, não o que é agora seu amanuense, escreva o poema.
Amanhã serei um tigre entre os tigres
e predicarei Minha lei a sua selva,
ou uma grande árvore na Ásia.
Às vezes penso com nostalgia
no olor dessa carpintaria.
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*Jorge Luis Borges - (Buenos Aires24 de agosto de 1899— Genebra14 de junho de 1986) foi um escritorpoetatradutorcrítico literário e ensaísta argentino.
Fonte: Do livro: BORGES, Jorge Luis. Elogio da sombra, poemas. Ed. Globo, Porto Alegre, 1977,pág.5/6
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