J.J. CAMARGO*
Os pacientes querem ser bem atendidos, de preferência por médicos sorridentes e amistosos. Raramente encontrei, mesmo em doentes amorosos, unzinho que se preocupasse, de fato, com o estado de espírito do médico, desde que, naturalmente isso não comprometa o cuidado de quem é realmente importante nesta relação, ou seja, ele.
Muito mais provável é que, se o doutor aparecer emburrado ou simplesmente triste (aos olhos de quem está do outro lado é a mesma coisa), algum resmungo seja emitido. O cuidado bilateral é tão incomum, que, para não ser injusto, sempre lembro da Maria de Lourdes, que mesmo estando muito doente, me vendo triste ofereceu socorro: "Meu doutor, se houver alguma coisa que eu possa ajudar, me diga, porque aqui no hospital ando meio sem nada pra fazer!".
O médico foi treinado para cuidar, mas como um mero ser humano fabricado em série, tem lá suas depressões, tristezas e carências, para as quais uma palavra, um gesto e, no extremo da bondade, um abraço faria toda a diferença. Com um mínimo de perspicácia, concluiríamos que proteger o humor de quem cuida é blindar de afeto a relação não amorosa mais densa que existe, a do paciente com o cuidador das suas dores.
A dimensão da frequente falta de reciprocidade afetiva pode ser avaliada num questionário promovido pela Universidade de Columbia (EUA) entre especialistas de áreas diversas. Muito preocupante a constatação de que, em todas as especialidades, menos da metade dos entrevistados se confessaram felizes com o que fazem.
Os mais contentes, os dermatologistas, ficaram em 43% de médicos felizes, os oncologistas, 36%, enquanto os cirurgiões , 34%, e os profissionais das emergências, 32%.
Muito provável que parte da gênese dessa turbulência afetiva esteja lá atrás, quando, numa fase da vida marcada pela ingenuidade, jovens ambiciosos tenham escolhido a medicina, movidos pela fantasia, cada vez mais decepcionante, do enriquecimento fácil.
O choque de realidade ao deparar com um mercado vil explica o mau humor e os altos índices de adição, alcoolismo, instabilidade amorosa, burnout e suicídio entre médicos jovens. A proliferação criminosa de muitas faculdades de medicina, algumas sem hospital-escola, nivelou e continuará nivelando por baixo o trabalho médico, transformando uma tarefa originalmente nobre num serviço tenso e aviltante.
E as ameaças não param de crescer e se renovar, incluindo a telemedicina e a inteligência artificial, onde se antecipa que os computadores, ricamente abastecidos, farão diagnósticos mais rápidos e mais precisos do que os médicos comuns, esses mortais sempre consumidos pelo sentimento massacrante da dúvida. Curiosamente, os robôs serão tão mais eficientes quanto melhor tenham sido alimentados. E por quem? Pelos médicos, que, se tudo funcionar como se antecipa, logo adiante, serão considerados dispensáveis.
Enquanto o futuro não se define, talvez tenhamos que dar razão ao grande Rubens Alves, que há 15 anos antecipou: "O médico se transformou numa unidade biopsicológica móvel, portadora de conhecimentos especializados e que vende serviços".
Mas claro que o discurso pessimista não é universal. Mesmo com todos os "avanços" consolidados, a relação médico/paciente ainda sobreviverá por resistência daqueles abnegados que, por gostarem de gente, estarem contaminados pelo prazer de ajudar e, felizmente, não saberem viver de outro jeito, se opõem aos algoritmos frios da medicina baseada em evidências, que não consegue repassar para o robô a trilha mágica dos sentimentos humanos. Um portal que só dá senha de acesso a quem seja capaz de chorar. Sem se esconder.
* José de Jesus Peixoto Camargo, ou simplesmente J.J. Camargo, é um médico, escritor e palestrante gaúcho.
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