Leandro Karnal*
Tradições são inventadas e reacionários as veem inseridas na ordem eterna. Pura falta de estudo
25/09/2022 | 03h00
Uma boa definição de cultura é a naturalização de ideias e atos que, repetidos à exaustão, chegam a se inserir na ordem natural das coisas. “Mulheres usam saias, e homens devem vestir calças” faz parecer que sempre foi assim, por exemplo. Modelos, imagens, humor e violência reforçam o código. Homem e calça viram algo como rochas basálticas. Os passadistas insistem: sempre foi assim, é a ordem desejada por Deus. Atrás do reacionário, está a piedosa imagem de Jesus... sem uma calça representativa da sua masculinidade.
“Homens usam cabelos curtos, cabelos compridos são uma modernidade do demônio”: os longos cachos do Nazareno se agitam um pouco mais. “Todo homem deve casar e ter filhos.” Jesus desiste de vez...
Usei a figura do Messias para dar clareza ao exemplo. Homens já usaram saias, já tiveram cabelos compridos por séculos e a maquiagem carregada era um requisito da masculinidade na corte de Luís XIV. O rei, amante ao extremo de mulheres, jamais dispensava suas meias de seda, capa de veludo e suas plumas. Azul já vestiu meninas. Rosa já adornou machos alfa. Perucas já foram universais. Dançar bem passos complicados de balé era indispensável para a conquista de mulheres. Machos aprendiam a dançar ou morriam virgens. Estudar História é mostrar que tudo tem uma origem; nada é “natural” em si. Aprofundar o conhecimento do passado é estabelecer perspectiva: inventamos cenários e fantasias; tentamos convencer crianças e jovens de que sempre foi assim e que assim será para sempre. A tradição é, sem exceção, inventada em algum momento e reacionários querem naturalizá-la como inserida em uma ordem eterna. É pura falta de estudo!
Sou alguém especial porque possuo muitas sementes de cacau. Minha posição de destaque deriva do uso de tecido adamascado. O lugar em que eu sento durante a missa mostra como eu estou acima dos outros. Minha família é aristocrática porque temos um documento que mostra ancestrais nas cruzadas. Tenho orgulho de ter matado 14 porcos para festas da comunidade nos últimos anos. Esses são ou foram critérios de maias, da corte de Urbino na Itália do Renascimento, da catedral da cidade do México colonial, da França do Antigo Regime ou de um líder do interior de Papua-Nova Guiné.
Para o antropólogo ou para o historiador, o prestígio de uma época é motivo cômico em outro instante histórico ou local. Um jovem empreendedor de Wall Street morreria de rir dos códigos vitorianos.
Uma vez inventada uma tradição, ela pode ser percebida como natural e até necessária. Noivas vestidas de branco, homens de terno escuro, mulheres cuidando da comida, roupa preta no enterro, salada antes da comida e doce depois: tudo foi inventado, nada é universal e a-histórico.
Importante: inventadas, as tradições existem, como o bicho-papão do armário causa insônia real em uma criança mesmo não sendo real. Quebrar uma tradição, mesmo criada, tem um custo social, pode causar dor e ruptura de identidade. Os humanos, desde a Revolução Cognitiva há 70 mil anos, somos especialistas em concentrar muita energia em coisas imaginárias. Isso é a força e a desgraça da nossa espécie. A importância e a necessidade do Estado, por exemplo, são uma antiga e forte tradição humana; ignoramos que nossa existência foi, quase sempre, sem Estado neste planeta. Cidades, deuses, códigos de vestimenta, etiquetas e salamaleques sociais causaram muitos efeitos históricos, mesmo sendo absoluta mistificação.
Acho fascinante. Por mais de três mil anos, egípcios viveram e morreram por uma entidade chamada Osíris. Não há ninguém que reze ao deus egípcio hoje, porém ele teve fiéis por mais tempo do que Jesus de Nazaré. Talvez jamais ocorresse a um habitante do Vale do Nilo, do Novo Império, que, num dia, todos aqueles templos, sacerdotes, livros e tradições seriam peças curiosas em um museu do Cairo ou Paris. Trinta dinastias de faraós foram protegidas por seres que, de fato, nunca existiram. Centenas de milhares de vidas foram perdidas, erguendo pirâmides, escrevendo livros de mortos ou mumificando para preparar para o encontro com Anúbis, que, afinal, é um tipo de Boitatá ou de Cuca.
No futuro, os habitantes da região venerariam Alá como islâmicos; Jesus como coptas; não teriam dúvidas de que Ísis era pura invenção. Deuses nascem, crescem e morrem. Claro: são os deuses dos outros, porque o meu é o verdadeiro. As tradições possuem o dom extraordinário de serem o total da minha percepção do mundo.
Pode parecer contraditório, porém eu gosto das tradições. Criar abstrações forma unidade, identidade e certa segurança. Modelos existem e podem ser bons.
A História me ensinou duas coisas: as tradições, mesmo inventadas, possuem estatuto coletivo de código e podem ser positivas. Amo o Natal, por exemplo. Porém, sabendo que tudo é criado por convenções sociais e arranjos históricos, ninguém deve sofrer por desvios da norma ou quebras de protocolo.
Se o seu Natal não deu certo, se a sua noiva vestiu azul ou se seu filho quer usar rosa, tenha consciência: o mundo não está acabando: ele apenas continua a se transformar e a quebrar tradições. Somos uma espécie que ama inventar e, logo em seguida, desmontar a invenção. Seja feliz. Tenha esperança, uma das melhores tradições: inventada, claro...
* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS
Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/sempre-foi-assim/ 25/09/2022
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