Roberto DaMatta*
Poucas vezes tive a emoção de assistir a esse encontro milagroso dos supostos superiores e súditos
Todo encontro é milagroso. Geralmente ele nem é percebido como capaz de grandes repercussões, mas “ver” um velho ou novo amigo (ou até mesmo um “conhecido” - não quero falar dos antigos amores) é um nobre e festivo hiato nas rotinas.
É o intervalo, capaz de nos apresentar o inédito que tem o grão de mostarda do milagre contido nas surpresas das casualidades positivas e negativas - esses mistérios que obrigam a tentar descobrir as intencionalidades da vida. Essas invisíveis e incontáveis contabilidades que nos tornam credores ou devedores de nós mesmos.
Estive recentemente num encontro milagroso com dois amigos especiais - amigos que me construíram. Companheiros dos meus primeiros passos na difícil carreira acadêmica que me escolheu: a chamada antropologia social, disciplina que um dos seus mais dignos praticantes definiu como “disciplina do exílio” - e eu, praticante modesto, chamo de “disciplina da saudade”.
Nela, há os encontros memoráveis quando não sabemos o que falar porque nos falta a linguagem - essa ponte que realiza o milagre triste, ofensivo ou harmonioso e feliz, entre seres humanos.
A ciência que me profissionalizou começa com um encontro e, em seguida, passa a ser a arte de escutar ou o escutar como arte. Coisa difícil para os arrogantes e para os imbecis cujo idioma exclusivo é o do “sabe com quem está falando?”.
Acho que foi tudo isso e mais alguma coisa que me chegaram com a idade e o incômodo senso de finitude que me inundou o rosto de lágrimas ao ver, pela BBC, o rei Charles III e seu sucessor, o príncipe William, confraternizando com a multidão de súditos da rainha Elizabeth II, mãe e avó dos que se deixavam acolher pelo povo do seu país naquilo que apareceu aos meus olhos molhados de um velho brasileiro como o encontro milagroso.
Pelas diferenças sociais polares - o estatuto da realeza que, sendo intransferível, atribui qualidades ao nascer -, pelo avesso que os nossos governantes da pior estirpe jamais fazem com os seus eleitores e, travestidos em monarcas, evitam o atributo talvez maior dos fortes e poderosos que é justamente o seu encontro fraterno e igualitário, produzido pelo inexorável e universal peso da morte que nos ronda e aguarda.
Poucas vezes tive a emoção de assistir a esse encontro milagroso dos supostos superiores e súditos, debaixo do manto silencioso da morte da qual ninguém escapa: nem o rei, nem a rainha, nem o papa...
* É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia
Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/o-milagre-dos-encontros/
Nenhum comentário:
Postar um comentário