Leandro Karnal*
'Não rimos mais das mesmas coisas.' Foto: Pixabay
Cresci com piadas incorretas e humor que não poupava a diferença e, atualmente, respiro o ar do novo mundo
A minha infância transcorreu no interior da classe média gaúcha. As piadas na escola eram, quase sempre, preconceituosas. Achávamos natural rir do que percebíamos diferente. Nem posso dizer que éramos politicamente incorretos, pois, na verdade, nem sabíamos que poderia existir uma correção. Repetíamos o mundo ao nosso redor. Meu pai era um zeloso católico e muito sensível às necessidades das pessoas. Não obstante, quando dizia piadas, dr. Renato era o modelo daquilo que, hoje, seria a base para um cancelamento total. Talvez sofresse processo em 2022. O que houve?
Eu sou a geração de borda. Vivi um mundo e vi o nascimento de outro. Cresci com piadas incorretas e humor que não poupava a diferença e, atualmente, respiro o ar do novo mundo. Claro: dei “foras” em função da minha adaptação. Funciona como a mudança de nomenclatura de estudos: você disse “Primário” por tanto tempo que a “primeira etapa do Ensino Fundamental” fica estranha. A metáfora tem limites: não há ofensa se eu trocar Ensino Médio por Segundo Grau.
Novos tempos implicam desafios para um humor. Imagine uma piada que não inclua portugueses, loiras, negros, indígenas, gays ou judeus. Suponha um humor que não ofenda. Conseguiu? Muito difícil, querida leitora e estimado leitor.
É importante lembrar que as vítimas de piadas sexistas, racistas ou homofóbicas dificilmente lamentam a transformação da nossa sensibilidade. Propagandas “vintage” são assustadoras no preconceito. Há uma imagem das gravatas Van Heusen em que um homem está na cama, e uma mulher ajoelhada lhe traz o café da manhã. A chamada insiste: ele deve mostrar a ela que este é um mundo dos homens. Há material publicitário de automóveis falando do preço baixo dos consertos de lataria porque, afinal, mulheres também dirigem. É um show de horrores que hoje causaria filas de protestos nas concessionárias. Um dia, no entanto, já ajudou a vender.
Reforço o desafio. Encontre (e treine) piadas não ofensivas. O esforço ajudará na sociabilidade; tende a diminuir problemas. Se precisar rir de alguém, ironize a si.
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Moacyr Scliar, por exemplo, era brilhante em buscar o melhor do humor judaico. Se o custo de causar graça passageira for arrasar com a autoestima de alguém de um grupo, a decisão racional você sabe qual é. O palhaço deveria causar graça em toda a plateia, não apenas no público branco, hétero e masculino. É uma escolha errada de mercado fazer rir meia dúzia e ofender quase todos. Tenha esperança na graça coletiva.
* Historiador e professor universitário. Escritor.
Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/o-novo-risco-de-rir/ 21/09/2022
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