“Preservação ou Morte” (2020), do grafiteiro e ativista Mundano, em que foi usada lama de Brumadinho e tem como base “Independência ou Morte!” (1888), de Pedro Américo — Foto: Divulgação de “O Sequestro da Independência” (Companhia das Letras)
Comemoração traz a oportunidade de repensar relações sociais, políticas, econômicas e ambientais
Por Amália Safatle — Para o Valor, de São Paulo
Em seu bicentenário de formação como nação soberana, que independência falta ao Brasil fazer? A agenda é extensa, mas há poucos elementos que são determinantes dos demais. Tais elementos criaram traços da identidade nacional e por isso exigem imenso esforço para serem alterados, na avaliação de historiadores e estudiosos do tema ouvidos pelo Valor.
O Brasil independente nasceu como uma monarquia escravocrata, calcada nas desigualdades, no patriarcado, no profundo desequilíbrio de forças e na busca de manutenção de privilégios a qualquer custo. Essas características vieram a definir comportamentos que duram até hoje nas relações sociais, econômicas, políticas e ambientais - embora 200 anos fossem tempo suficiente para mudá-los, segundo especialistas. Comemorar, palavra de origem latina que significa “lembrar juntos”, traz a oportunidade de revisão, de fazer novas escolhas e corrigir a rota para os próximos anos.
Nessa revisão, o diplomata Rubens Ricupero, que foi ministro da Fazenda e do Meio Ambiente no governo Itamar Franco, alerta para o perigo de se olhar a “fotografia” do momento em vez do “filme”. “O Bicentenário cai, talvez, no momento mais negativo possível, em meio a uma crise do processo civilizatório brasileiro”, diz. “Sou historiador e não me lembro de outro momento da história do Brasil em que tenha havido uma baixa tão grande de autoestima.” Por isso, ele recomenda resistir à tentação de um julgamento totalizador que seja a síntese de tudo, por se tratar de um país tão complexo.
No livro “1822” (Globo Livros), o jornalista Laurentino Gomes mostrou como o país, “que tinha tudo para dar errado, deu certo por uma notável combinação de acaso e improvisação, mas também sabedoria de alguns responsáveis pela condução dos destinos nacionais” Ao Valor, ele explica que esse “deu certo” refere-se às perspectivas da época, não às de hoje.
“De cada três brasileiros, um vivia em regime de cativeiro”, diz Gomes. “O medo de uma rebelião dos escravos tirava o sono da minoria branca.” Para o jornalista, o isolamento e as rivalidades entre as províncias prenunciavam uma guerra civil, que poderia resultar na fragmentação territorial. Além disso, o rei Dom João VI havia raspado os cofres públicos ao voltar para Portugal, em 1821, fazendo com que o novo país nascesse falido.
Hoje, na visão de Gomes, o país está mais marcado por fracassos do que conquistas, ao desperdiçar oportunidades de reformas que poderiam ter sido feitas ao longo desses 200 anos. “O Brasil como nação independente falhou em tornar o Estado mais eficiente, menos burocrático e corporativista.” Faltou garantir educação para todos, oferecer boas oportunidades à população, em especial os descendentes de africanos escravizados, em reduzir a pobreza e em formar cidadãos capazes de conduzir os seus próprios destinos em um ambiente de democracia. Gomes avalia que, apesar de sua dimensão territorial e seus incontáveis recursos naturais, o Brasil de 2022 é pobre e desigual. “A herança da escravidão nunca foi devidamente enfrentada.”
Tal quadro não resulta de um projeto fracassado ou incompleto de independência, na visão da historiadora e cientista política Heloisa Starling. “Foi vitorioso o projeto que esteve na matriz do estado nacional, voltado a garantir a monarquia e a manter o latifúndio e a escravidão”, afirma a professora da Universidade Federal de Minas Gerais. “Em torno desse projeto de independência, floresceu uma sociedade autoritária, hierárquica e racista.”
Starling relata que, já no século XIX, o abolicionista Joaquim Nabuco criticava a forma pela qual o Brasil lidava com essa estrutura. Nas palavras do jornalista, diplomata e jurista, criou-se uma espécie de “epiderme civilizatória” que funcionou como uma “ficção engenhosa de nação”. Por não ter enfrentado o tema espinhoso da escravidão, volta e meia a epiderme se rompe, expondo os traços de violência.
Não se passaria incólume por quase 400 anos de regime escravista, o perverso comércio de almas que supõe a posse de uma pessoa por outra. O Brasil, como lembra Laurentino Gomes, recebeu ao longo de três séculos entre 4,5 milhões e 5 milhões de escravos, cerca de 40% do total traficado da África para o continente americano. Foi também o país do hemisfério Ocidental que mais resistiu a acabar com o tráfico negreiro e o último a abolir a própria escravidão - abolição que deixou os libertos à própria sorte. Sem contar que, antes de negra e africana, a escravidão brasileira foi indígena.
“Em pouco mais de três séculos, os colonizadores europeus e seus descendentes exterminaram cerca de 3 milhões de indígenas brasileiros, vítimas de doenças, guerras e invasões de seus territórios”, diz Gomes. “Ainda hoje, os indígenas continuam sob ataque na Amazônia”, afirma o escritor, autor da trilogia “Escravidão”.
Embora não circunscrito ao Brasil, o escravismo aqui assumiu características que distinguem o país do restante do mundo e moldam a sociedade até hoje. “O Brasil foi a única nação independente que praticou maciçamente o tráfico de escravizados e transformou todo o território nacional no maior agregado político escravista americano”, diz o historiado e cientista político Luiz Felipe de Alencastro. A extensão da diáspora dos africanos não se ateve ao meio rural. Em 1849, no meio urbano, 42% da população do Rio de Janeiro era composta por escravizados.
Quando há escravismo não só no campo, diz Alencastro, a sociedade a todo tempo é testemunha da truculência. O código criminal brasileiro transformava em açoite todas as penas de prisão dos escravizados. “Isso significa que a tortura foi legal no Brasil até 1888, e isso veio dar nessa violência intrínseca até os dias de hoje.”
O projeto vitorioso de independência ao qual Starling se refere deu-se à custa de uma violenta repressão dos movimentos que vinham da base da sociedade, na leitura do cientista político Sérgio Abranches. Ele destaca que a formação do Estado nacional foi feita por uma coalizão de forças dominantes que tinha vínculos importantes com Portugal. Esse processo, além de ter sido negociado, sem ruptura do relacionamento direto com a Coroa Imperial, não alcançou toda a sociedade. “Já havia no Brasil colônia uma série de movimentos, não só em busca da independência, mas também da República e da democratização. Nada disso foi considerado”, afirma.
Para Abranches, a repressão política deu a tônica da história do Brasil toda vez que as classes populares se mostraram ativas, por exemplo, na busca do sufrágio feminino, da abolição, e da ampliação da democracia brasileira na Primeira República, na Segunda, na Terceira (de 1988), até os dias de hoje. “Sempre há no país um movimento para tornar passiva aquela parte do povo que está se tornando ativa e buscando a entrada no mundo, digamos, institucional.” Segundo ele, enquanto o racismo é um modo de tornar passivo o povo negro, o assédio e o feminicídio são formas de manter a mulher em um lugar de subordinação.
“Será impossível dizer que os brasileiros são totalmente independentes enquanto houver essas amarras do racismo, da dominância masculina sobre a mulher e da desigualdade, fome e miséria”, diz o cientista político. “Uma pessoa que precisa lutar a cada momento do dia para manter-se viva é completamente prisioneira de um sistema muito duro.” Como resultado, desde a Independência aos dias de hoje, grande parcela do povo brasileiro ainda não foi incorporada à cidadania plena, impedida por forças do atraso. Isso se deu por causa das “meias rupturas” ocorridas ao longo da história, a começar pela “meia independência” acordada com Portugal.
“A rigor, os laços entre brasileiros e portugueses permaneceram estreitos ao longo de todo o século XIX”, diz Laurentino Gomes. Dom Pedro I procurou equilibrar-se precariamente entre os interesses brasileiros e portugueses, dando a estes uma nova Constituição que era praticamente uma cópia da brasileira, outorgada pelo imperador dois anos antes.
Em um país continuamente marcado por “acordões”, Abranches afirma que todo movimento voltado a romper com o status quo termina em um compromisso que absorve parte dos interesses dominantes. Isso lembra a frase “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”, do romance “O leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, à qual a historiadora e antropóloga Lilia M. Schwarcz remete em seu mais recente livro, “O sequestro da Independência - Uma história da construção do mito do Sete de Setembro” (Companhia das Letras, 2022), escrito em coautoria com Carlos Lima Junior e Lúcia Klück Stumpf.
Segundo os autores, “a ideia de ter um monarca como líder e símbolo da emancipação foi ensejada pelas elites agrárias, que reagiam ao fantasma do desmembramento das províncias, à desmontagem da escravidão e ao surgimento de líderes republicanos contrários à simples preservação e manutenção do status quo”.
Esse passado revestido de presente persiste na metáfora do quartinho de empregada e do elevador social, segundo Schwarcz. “Na construção de um edifício, a parte mais cara é o elevador, e mesmo assim nos damos ao luxo de ter um elevador de serviço”, diz. “A arquitetura até hoje reproduz a casa-grande, com espaço social amplo e o lugar de serviço sempre com espaços diminutos e prejudicados, o que efetiva a lógica da subordinação”, diz, lembrando quão recente é a PEC das Domésticas, que só em 2013 reconheceu os direitos trabalhistas dos empregados domésticos.
Para Laurentino Gomes, o Brasil de hoje é consequência do seu peculiar processo de construção herdado dos portugueses ainda no período colonial e perpetuado após a Independência, em 1822. “Herdamos dos portugueses um Estado excessivamente burocrático e cartorial, cujo funcionamento é ainda hoje caracterizado por relações de clientelismo e nepotismo.”
“É possível dizer que herdamos de Portugal um sistema escravocrata estruturado e uma máquina burocrática muito pesada, com características que mais recentemente chamaríamos de patrimonialismo, ou seja, a mistura entre a esfera pública e a esfera privada”, diz Schwarcz. Mas, ao mesmo tempo em que reconhece características da máquina colonial presentes até hoje na estrutura brasileira, a historiadora refuta o determinismo histórico e a ideia de legado.
“É preciso dizer que o Brasil implementou um racismo estrutural e institucional nesses 200 anos de autonomia. Então não é possível jogar essa conta só nas costas de Portugal. E a ideia de herança me incomoda um pouco porque implica certa passividade da nossa parte”, diz, como se o país não tivesse responsabilidade sobre seus rumos.
Alencastro argumenta que o Brasil independente desenvolveu ao menos três características próprias e distintas de Portugal, não se podendo “culpar o colonizador”. A primeira é o escravismo, que difere da escravidão - um sistema ou uma circunstância em que a propriedade dos escravos é permitida. É o que havia em Portugal, incluindo africanos, mouros do Norte da África e povos berberes muçulmanos.
Mas nunca em Portugal houve escravismo, que precisa ser entendido como modo social e econômico dominante. Mesmo quando se está plantando batata no fundo do quintal, por exemplo, o preço da batata está sendo balizado por aquela produzida pelos escravizados. No Brasil e nas outras regiões escravistas, como Cuba e EUA, tudo dependia do trabalho escravizado. “A renda do Estado brasileiro depois da Independência vem do trabalho escravizado. Portugal tinha escravos, mas continuou produzindo o que existia lá desde o Império Romano. Não virou uma economia escravista, era uma economia camponesa, de trabalhadores mais ou menos livres.”
A segunda diferenciação, segundo Alencastro, é que Portugal instaurou uma laicidade radical. “A implantação da República Portuguesa em 1910 confiscou os bens da Igreja e criou uma escola pública laica. A separação entre Igreja e Estado foi radical”, diz. “Se um político brasileiro disser que não acredita em Deus, está acabado.”
A terceira característica que diferencia o Brasil, diz, é o federalismo. Enquanto Portugal é um Estado unitário altamente centralizado, o Brasil pratica e preza a autonomia dos estados. “Foi a iniciativa dos estados que nos permitiu ter vacinas [contra a pandemia]”, diz Alencastro.
“A apropriação de interesses, recursos, estruturas, instituições por certos grupos acontece em todas as experiências históricas”, diz o historiador Paulo César Garcez Marins. “A questão é quando essa disputa se torna extremamente desigual e sem freios, como no Brasil”, afirma o curador do Museu do Ipiranga, que será reaberto na quarta-feira, dia 6 de setembro, depois de dez anos fechado - a antecipação para um dia antes do Bicentenário foi uma decisão do governo paulista, de modo a se precaver contra o uso político da celebração.
Segundo ele, a contaminação da história pública pelos interesses privados não é algo exclusivo da América Latina ou característico do Brasil. “O que talvez seja característico nosso, ao longo do século XX, é um claro desequilíbrio entre as partes que disputam o controle da esfera pública”, diz Garcez. “Existe uma concentração de poder muito grande em um segmento muito pequeno da sociedade.”
De acordo com o historiador, a esfera pública perdeu a capacidade de transformar a sociedade como um todo, deixando de ser caminho de negociação para se tornar um caminho de autoritarismo. “Temos no Brasil um empobrecimento da esfera pública e de debates, o que fica muito claro na nossa experiência parlamentar e na perda de personalidade política dos partidos”, afirma. “A ideia de partido como clientelismo esvazia a República.”
A questão da educação, para Garcez, está na matriz das desigualdades e do desequilíbrio de forças. “O Brasil colônia nunca teve autorização para abrigar uma universidade, e as elites naquele período estudavam fora”, diz o historiador. Ele explica que a coroa portuguesa era muito centralizadora, em parte porque Portugal não era efetivamente muito poderoso e dependia dos pactos coloniais para que mantivesse o controle dos territórios. Uma das maneiras de realizar esse controle era diminuir a circulação de conhecimento.
Em comparação, a Argentina, especialmente a partir de 1890, inspirada nos princípios da Terceira República Francesa, colocou a educação em primeiro patamar de necessidade de investimento público. “Por meio de uma decisão das elites, a Argentina erradicou o analfabetismo já logo no início do século XX. Isso nunca aconteceu no Brasil”, diz Garcez.
Ao mesmo tempo, o mito da natureza inesgotável moldava a ocupação do território. As elites enriqueciam sem grande letramento, sem trabalho árduo, e com a exploração descuidada e predatória dos recursos naturais. Segundo o historiador ambiental José Augusto Pádua, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma das características próprias do colonialismo no Brasil foi contar com um vasto território natural pouquíssimo povoado. Mesmo nas manchas de maior ocupação, como as existentes na Mata Atlântica, em 1900 ainda havia cerca de 85% a 90% de matas intactas. Era um oceano de florestas, mas já com sementes de destruição depositadas.
A primeira delas, segundo Pádua, era a ideia de fronteira aberta. O Brasil se formou com um território imenso precocemente já estabelecido, pois tanto o império espanhol como o português não tinham condição de tomar o território um do outro. Nesse amplo território brasileiro formado por matas, campos e cerrados, a natureza parecia infindável. “Documentos da época diziam que em algum momento tudo aquilo seria civilizado. O progresso chegará nesses lugares ermos e então vamos conseguir civilizar os índios e destruir essa natureza excessiva, que não está sendo útil”, conta Pádua.
As demais sementes de destruição, segundo o historiador, foram o desprezo pelos ecossistemas, a desvalorização do trabalho humano pelo escravismo e o parasitismo das classes dominantes. “Não havia um sentimento de nação, de cuidado com a casa, que é o território. Havia uma ideia de que, faça-se o que quiser com a natureza, ela se regenera e dá o que você precisa”, diz. Para ele, embora tais características tenham se originado no colonialismo, o Brasil teve oportunidades suficientes nesses 200 anos de se libertar desse tipo de visão.
No Brasil contemporâneo, persiste o grande dilema: como lidar com um país tão vasto, heterogêneo e desigual? “Este é o esforço da Constituição de 1988”, afirma Creomar De Souza, cientista político e fundador da consultoria Dharma Political Risk and Strate. Para ele, está em jogo neste momento uma bifurcação.
“Um caminho é o Brasil lidar com essas características por meio de mecanismos de centralização para o combate às desigualdades”, afirma De Souza. “Outro é dar poder aos grupos locais, deixando que os parlamentares tenham diálogo direto e a partir dali se construam regras próprias, sem transparência”, diz, em referência ao chamado orçamento secreto. Ele pondera que essa é uma disputa que não começa agora, dado que essas forças estiveram dormentes ao longo da história.
“A Constituição de 88 é sempre o alvo”, afirma Luiz Felipe de Alencastro, para quem a independência que falta ao Brasil fazer é a defesa da cidadania e das instituições, prevista na Carta Magna. “É bom recapitular que a Constituinte foi feita no momento em que o setor mais conservador estava desorganizado. Foi logo depois da ditadura, e não houve ali uma transição bem organizada por parte da direita. Por isso a Constituição está na mira de todo o setor reacionário do país”, diz.
Garcez lembra que historicamente os direitos no Brasil estão associados a uma dimensão de privilégio, depois que a população ficou dividida por quase 400 anos entre livres e cativos. “Em muitos segmentos da sociedade que se estruturaram logo após a abolição, havia uma sensação de que a ampliação de cidadania significava uma perda de poder”, afirma.
Essa é uma questão mal resolvida, e por isso com tantos reflexos no Brasil de hoje. Sérgio Abranches defende uma coalizão de forças que deseje de fato passar a limpo a história do Brasil e construir um futuro de maior convívio social. Para Heloisa Starling, “a história não é destino, e escolhas podem e precisam ser feitas agora”. Rubens Ricupero diz que “nosso destino será moldado por nós mesmos. Escolhas como a das eleições de 2022 serão decisivas”.
O Palácio do Planalto foi procurado para comentar pontos desta reportagem, mas não respondeu até o fechamento da edição.
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