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Em Heróis Demais, a colombiana Laura Restrepo, que estará na Flip,
revê tempos de militância com ajuda do filho
ENTREVISTA
Laura Restrepo
ESCRITORA
Ao final da entrevista por telefone ao Estado, a escritora colombiana Laura Restrepo, de 61 anos, pede licença para inverter os papéis - quer fazer algumas perguntas. Como foi ler o romance estando no Brasil?, começa. Há elementos reconhecíveis? As reações do protagonista coincidem com as de sua geração?
O jornalismo que deixou em segundo plano desde o início da carreira como ficcionista - é autora, entre outros, do premiado Delírios (2004) - lhe parece agora necessário por uma razão muito pessoal. Em Heróis Demais, romance recém-lançado sobre o qual vem falar na Flip, em julho, pela primeira vez ela expõe suas próprias vivências na ficção.
Também por esse motivo, o romance centrado nos anos em que Laura militou contra a ditadura na Argentina demorou a sair do campo das ideias. Na narrativa, Mateo, filho de Lorenza (baseado em Pedro, filho de Laura), nascido enquanto ela e o marido participavam da resistência não armada, quer entender quem é seu pai e por que ele o abandonou. Veja trechos da entrevista concedida desde o México, onde vive a escritora.
O romance tem forte viés autobiográfico, referente a vivências de décadas atrás. Por que não escreveu essa história antes?
Por isso mesmo. É meu único romance baseado na minha própria história. Sempre recorri a histórias alheias ou de ficção justamente para evitar as minhas. Mas isso se tornou imprescindível por uma questão literária, porque me parecia possível uma nova forma para contar as histórias daquele período. Tanto os tiranos que tivemos no continente como os rebeldes que se opuseram a eles têm caráter pré-moderno e geram um tipo de épica que tende a ser contada em termos épicos. O romance, um gênero moderno, não tem nada a ver com isso, tende a ser a história de anti-heróis. Dei o título Heróis Demais porque queria contar uma história épica sem heróis. Já do ponto de vista pessoal, eu tinha uma conversa pendente com meu filho. Era tema delicado, sobre sua origem, sobre seu pai. Escrever foi uma forma de travar esse diálogo. Foi um processo bonito. Enquanto eu escrevia, ele terminava seu doutorado em literatura e começava seu primeiro romance, uma história juvenil chamada Épica Patética, sobre um adolescente que quer crer num mundo heroico enquanto a realidade se impõe. Conversando pela literatura, e não diretamente, pudemos digerir um tema difícil.
Por que resolveu colocar o filho, e não a mãe, que seria você, como protagonista?
Me custou decidir isso. A princípio, a protagonista era ela, o que me dava duas opções: ou Lorenza usaria sua retórica de esquerda, de justificar e até exaltar a atuação antiditatorial, e isso, como falei, não me interessava; ou teria um olhar contemporâneo, menos adulador, mas essa opção falsearia a personagem. Enquanto Lorenza foi o centro do romance, ele não funcionou. Deu certo quando Mateo cresceu como personagem e se impôs. Eu queria que o leitor, ao abrir o livro, encontrasse um rapaz cheio de dúvidas, sem segurança por desconhecer sua origem, e, quando o fechasse, visse um Mateo adulto, que toma as rédeas de sua história.
Embora tenha base pessoal, a narrativa é também o retrato de uma geração pós-militância?
Penso que é o retrato da relação das duas gerações, a militante e a que veio depois, uma geração convencida de seus atos e outra que a questiona. Militei por muitos anos e, basicamente, sigo com as mesmas convicções de então. Também no caso de todos os meus amigos da época, os filhos se saíram muito críticos, não estão convencidos de que tenha valido a pena o sacrifício da vida familiar, nada sabem do que se conseguiu politicamente. Creio que em todo o continente, onde houve luta antiditatorial, exista uma geração que questiona os supostos heróis. Isso leva outra vez ao título Heróis Demais. Mateo quer que a mãe lhe apresente um homem de carne e osso, que abandona o filho aos 2 anos, mas Lorenza lhe fala de um herói.
Verdade que você precisou refazer o manuscrito várias vezes para fugir do tom panfletário?
Sim, isso me custou muito. Havia uma linguagem dura, difícil de romper. Também foi difícil por se tratar de um momento em que não se podia fazer anotações. Foi a única época da minha vida em que não tomei notas, uma época particularmente sem recordações, porque, quanto menos se soubesse, mais seguro era. Lorenza tenta a todo custo apagar a memória, enquanto Mateo precisa que ela a recupere, pois é o único elo que ele tem com o pai. O que se passa com Lorenza se passou comigo. Você pode fazer um retrato político minucioso de cada detalhe da ditadura, mas o que você sentia? Não se pergunta. Para mim, foi um estremecimento, eu não tinha ideia. Era preciso desvendar algo que estivera vendado por muito tempo, o que eu não tentaria fazer, não fosse a pressão do meu filho.
Sua obra dialoga com a de seu conterrâneo Hector Abad, com quem debaterá na Flip, certo?
Sim, e me encantou saber que estaremos na mesma mesa. Somos amigos há muito tempo, e há muita afinidade entre os livros. Fui eu quem deu o título do livro que ele vem lançar (A Ausência do Que Seremos). A história de Hector também é autobiográfica, ele também buscou um tom íntimo para relatar uma história política, e no livro dele a figura do pai é importante como em Heróis Demais.
TRECHO
"Quando Lorenza anunciou em Madri que estava disposta a se mudar para Buenos Aires...
...para militar na linha de frente, foi encarregada de imediato de levar no avião, camuflados, uns microfilmes, uns passaportes de diferentes nacionalidades e uns dólares em dinheiro vivo, não se lembrava quantos, mas eram muitos, ou pelo menos nesse momento tinha parecido que era uma quantidade enorme. Tudo isso para entregar para ele, Forcás. Como encontro Forcás?, tinha perguntado, e lhe disseram você não procura por ele, ele procura por você.
- Meeerrrda - Mateo disse -, meu pai, o Indiana Jones da revolução. Você faz cada novela, mãe!
-----------Reportagem por Raquel Cozer - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão on line, 03/06/2011
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