O mundo tem mais bocas
– e com paladar mais apurado – para alimentar.
Como produzir o suficiente sem
esgotar os recursos naturais
Dieta Carnívora - O cearense Joaquim Pereira comeu churrasco pela primeira vez aos 21 anos.
Hoje, com 38, come frango e peixe, “mas gosto mesmo é de carne vermelha”
A Vida está melhorando para o cearense Joaquim Pereira Neto, de 38 anos. “A primeira vez que comi um churrasco foi na final da Copa de 1994, na casa de um amigo”, diz. “Tinha 21 anos. Foi inesquecível.” Um ano antes, Joaquim deixara os sete irmãos e o pai em Ipueiras, no sertão do Ceará. Com a chegada no Rio de Janeiro, ficaram para trás os tempos de arroz e feijão no almoço e no jantar e carne de bode no domingo. Joaquim é porteiro de um prédio em Copacabana, bairro de classe média da cidade. Hoje, come carne todo dia. “Frango, peixe. Gosto de tudo. Mas prefiro mesmo é carne vermelha.” Joaquim não sente falta de salada. De vez em quando come cenoura, tomate, alface e beterraba. Ele é casado e tem um filho de 5 anos. “A geladeira está sempre cheia de iogurte e frutas. O menino adora leite. Sempre tenho maçã, pera e manga lá em casa”, diz, com orgulho.
Os fazendeiros do planeta têm
até 2043 – são só 32 anos – para elevar a
produção de grãos em 60%
As conquistas de Joaquim são partilhadas por milhões de pessoas que nos últimos anos realizaram alguns sonhos de consumo. Em apenas uma década, segundo o Banco Mundial, 50 milhões de pessoas saíram da linha da miséria no Brasil. Com outros 200 milhões na Índia e 400 milhões na China. Essa multidão que vem conseguindo condições melhores de vida começa transformando sua dieta. Faz uma transição do menu exclusivamente vegetariano, com arroz e grãos como feijão, para ingredientes mais suculentos como frango e bife. Esse avanço é uma das maiores conquistas recentes da humanidade.
Mas essa dieta à base de carne consome mais recursos de um planeta cada vez mais esgotado. Por uma razão simples. Um hectare de terra produz 2,5 toneladas de grãos. A mesma área só produz 46 quilos de carne nas pastagens brasileiras. À medida que a população passa a comer mais carne, um grupo crescente de analistas começa a se preocupar se há área disponível para produzir o que todos desejam consumir.
Um dos primeiros sintomas do descompasso entre produção e demanda é a crise vivida hoje pela indústria mundial de alimentos. No início deste ano, o preço global da comida bateu recordes históricos. Protestos eclodiram pelo mundo. No Oriente Médio, o preço do pão foi o estopim para as revoltas populares que, desde 2010, derrubaram os regimes da Tunísia e do Egito, levaram a Líbia à guerra civil e são reprimidas na Síria e no Iêmen. Em 2009, o grupo dos países mais ricos (G8) atribuiu ao preço dos alimentos a mesma importância que à crise das hipotecas para a economia global. Neste ano, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, líder do grupo dos 20 principais países (G20), quer colocar a comida no topo da agenda. Segundo alguns, a era da comida barata acabou. E o problema deve piorar à medida que a população humana caminha para os s 9 bilhões, previstos para 2043, segundo a ONU. Mantendo os padrões atuais de consumo e as previsões para os próximos anos, os fazendeiros terão de elevar em 60% a produção de grãos, dos atuais 2,5 bilhões para 4 bilhões de toneladas. É um salto monumental. Equivale a dez vezes a produção do Brasil, o quarto maior produtor de grãos, que colherá em 2011 uma safra recorde de 153 milhões de toneladas. Como fazê-lo?
Os limites do planeta
Para alimentar 9 bilhões, o obstáculo é a falta de água e terra. São recursos escassos – sem substitutos
Um dos limitadores é a quantidade de terra. Descontados os desertos, as altas montanhas e as calotas polares, a humanidade se apropriou de dois terços das terras aráveis do planeta. O terço restante é o último refúgio de milhões de espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção. A opção pela expansão da área cultivada seria o caminho mais fácil para alimentar 9 bilhões de bocas. Bastaria continuar devastando, derrubar o que resta de matas, dizimar a biodiversidade, transformar os rios em criadouros de peixes e tornar o planeta uma imensa fazenda. Mas ninguém sabe até que ponto essa redução nas áreas selvagens e na biodiversidade provocaria alterações nos ciclos das chuvas e das pragas, afetando a própria agricultura.
Diante do dilema, alguns sugerem uma solução radical: a dieta vegetariana para todos. É a proposta do biólogo Edward O. Wilson, de 81 anos, da Universidade Harvard. Para Wilson, um dos mais respeitados conservacionistas do mundo, a produção mundial de grãos seria suficiente para alimentar 10 bilhões de indianos, cuja dieta básica é vegetariana. Em comparação, a mesma quantidade de grãos só poderia alimentar 2,5 bilhões de americanos, que usam a maior parte dos grãos para criar gado. Wilson propõe a frugalidade. Segundo ele, conviver com a escassez é parte da condição humana desde a evolução de nossa espécie, há 200 mil anos. Diante da atual explosão demográfica, aos bilhões de emergentes do mundo jamais seria concedido o direito de usufruir o padrão de vida dos americanos. Mesmo os mais afluentes teriam de ceder. “A população dos países ricos deve mudar seus hábitos alimentares para uma dieta vegetariana, ou a área mundial de terras aráveis precisará crescer 50%”, diz Wilson.
O problema seria convencer gente como o cearense Joaquim, que conquistou o direito a uma mesa farta para a família. Como privar do acesso à carne os membros da nova classe média mundial? “Como dizer a 1,3 bilhão de chineses que eles não podem comer carne, se comer carne tem sido um objetivo humano por milhares de anos?”, diz o jornalista americano Paul Roberts, autor de O fim do alimento. Ou mesmo os habitantes de países ricos. “Nos Estados Unidos, achamos que comer carne é um direito eterno. Seu consumo é considerado um índice de prosperidade”, diz Roberts.
Uma opção mais realista é apostar na tecnologia. Isso já aconteceu antes. Entre os anos 1940 e 1970, nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, a produção agrícola cresceu mais rápido que em qualquer outro momento desde a invenção da agricultura, há 10 mil anos. A aplicação maciça da tecnologia no campo foi a responsável pelo salto. A expansão da mecanização rural e da irrigação teve papel importante. O mesmo se pode dizer dos fertilizantes, herbicidas e inseticidas. Os maiores ganhos decorreram da seleção de novas variedades resistentes às pragas e à seca. As novas sementes também podiam ser semeadas em intervalos menores, gerando mais plantas por hectare. E cada planta produzia mais grãos que as variedades tradicionais.
1 hectare de terra rende 45 quilos de soja.
Mas a mesma área só
produz 2,5 quilos de carne
Os ganhos foram tão impressionantes que o então gerente da agência americana para o desenvolvimento internacional, William Gaud, cunhou o termo Revolução Verde para designar o período. Na época – em plena Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética –, Gaud acreditava que investir na agricultura do Terceiro Mundo, fixando o homem no campo graças à revolução “verde”, evitaria a eclosão de revoluções “vermelhas” – ou comunistas. Essa ideia rendeu frutos na Ásia. Mas não na África. O continente viveu ondas de fome agudas nas últimas décadas – de Biafra a Ruanda – e tem tudo para se beneficiar dos avanços tecnológicos atuais.
Em boa parte da África Subsaariana, nem se usam fertilizantes. Lá, colhe-se em média 1 tonelada de trigo por hectare. Introduzindo os fertilizantes, inseticidas e a mecanização, a safra subiria a 5 toneladas por hectare, como na Argentina e na Índia. Ao usar sementes transgênicas, fazer a correção química do solo e investir em semeadeiras e colheitadeiras guiadas por satélite, atinge-se o teto de 10 toneladas por hectare. É o que se colhe nos EUA e na China. O cenário do trigo se repete nos casos da soja, do milho, do arroz, do feijão e do sorgo, os cereais da cesta básica mundial. O abismo que separa a produtividade africana das safras indianas e americanas mostra o caminho para elevar a produção.
Floresta ou plantação?
A humanidade se apropriou de dois terços das terras férteis disponíveis. O terço restante abriga as últimas florestas.
O mapa mostra onde estão as áreas degradadas passíveis de reflorestamento – e a melhor forma para recuperá-las
Nas próximas décadas, a Revolução Verde deverá chegar às lavouras da África e das nações pobres da América Latina e da Ásia – justamente as regiões onde a ONU acredita que o crescimento demográfico se acentue daqui para a frente. Se os camponeses não conseguem comprar fertilizante e sementes de qualidade, eles podem ser subsidiados. Duas das maiores fundações filantrópicas do planeta, a Rockefeller e a de Bill Gates, se uniram em 2006 no projeto Aliança para a Revolução Verde na África (Agra). A meta é dar aos agricultores africanos acesso à terra, à água, às tecnologias sustentáveis, à educação e aos meios de escoar a safra. Em 2009, a Agra investiu US$ 400 milhões.
Na Índia e nos países de renda média, onde a Revolução Verde já rendeu frutos, os fazendeiros precisam agora dar o próximo salto: usar as sementes e as técnicas de última geração. Mas esse tipo de tecnologia dificilmente conseguirá reproduzir o milagre da Revolução Verde: um salto de 150% na produção agrícola, obtido nos últimos 40 anos. Para alimentar os 9 bilhões em 2043, seria necessário aumentá-la 60%. Mas as melhores tecnologias atuais elevariam a produção em até 50%, de acordo com Thomas Lumpkin, o gerente do Centro Internacional para a Melhoria do Milho e do Trigo da ONU.
Uso sustentável
- Roberto Chioquetta tem 4.000 hectares com grãos no Mato Grosso.
Ele defende o fim do desmatamento e o uso da área
devastada para expandir a lavoura
No caso dos gigantes da agricultura, qualquer ganho é ainda mais difícil. A China é o maior produtor mundial de grãos. Em 2008, colheu uma safra recorde de 530 milhões de toneladas. A China é também o melhor exemplo dos desafios a enfrentar. Montanhas e desertos cobrem dois terços de seu território. Sobra um terço para a agricultura. Todo hectare de solo disponível já foi ocupado. A única alternativa seria elevar a produtividade da área plantada. Isso também foi feito.
O mundo precisa de uma segunda Revolução Verde, capaz de solucionar três problemas. O primeiro é desenvolver sementes que germinem plantas ainda mais robustas. É um cenário possível, mas incerto. Há sinais de que as plantas manipuladas geneticamente estão atingindo seus limites biológicos. Uma boa comparação é o que acontece com os frangos geneticamente selecionados nas granjas. Eles engordam tanto e tão rápido que mal conseguem ficar em pé, sob o risco de fraturar as patas. Até que ponto uma espiga pode crescer antes que o pé de milho caia e morra?
O segundo problema é a falta d’água. O norte da China concentra 800 milhões da população total de 1,3 bilhão. Sofre com estiagens e tempestades de areia. Toda a água que poderia ser desviada para a irrigação já foi. Em consequência, o delta do Rio Amarelo, o sexto maior do mundo, seca desde 1971. Em 1997, ele parou de desaguar no Pacífico por 226 dias. O padrão se repete até hoje. Desde 1960, o nível de água nos lençóis freáticos caiu de centenas para dezenas de metros. E eles podem secar até 2020. Para a falta d’água, não há solução. As mudanças climáticas, o desmatamento, a erosão do solo e o consumo humano estão na raiz da intensificação das secas e da expansão dos desertos. Um ser humano precisa de 2 a 5 litros d’água por dia. Para produzir 1 quilo de grãos, usam-se de 500 a 2.000 litros. Para produzir 1 quilo de carne, consomem-se até 15.000 litros. Teremos de produzir grãos para mais 3 bilhões de humanos usando menos água que hoje. Em 2007, a China começou a substituir a produção de grãos, que usa irrigação, pela de frutas e verduras, que consome menos água. No mesmo ano, as exportações brasileiras de soja para a China explodiram. O que aconteceu foi uma terceirização. Os chineses decidiram conservar seus aquíferos e importar água brasileira, sob a forma de soja. A produção recorde chinesa de 2008 não se repetiu em 2009. A China, até então autossuficiente na produção de alimentos, se tornou uma importadora – de água na forma de comida.
Teremos de produzir comida para
mais 3 bilhões de humanos usando
menos água que hoje
O terceiro problema que a nova Revolução Verde deve solucionar é reinventar a produção de fertilizantes. Seu preço nunca foi tão alto. Para os países pobres, eles se tornaram um insumo proibitivo – embora essencial. A origem disso é o preço do gás natural, usado na produção de nitrogênio sintético, o principal ingrediente para os fertilizantes. Nada mostra que o preço do gás natural baixará. Os fertilizantes, portanto, continuarão caros. A opção é achar um substituto ao gás natural para produzir nitrogênio fertilizante.
Diante de tantos obstáculos, o Brasil é um caso privilegiado. Dos grandes produtores, somos o único que ainda tem água em abundância. Até 2020, poderemos ser autossuficientes na produção de fertilizantes, graças a um gasoduto que trará ao continente o gás natural da Bacia de Campos. Temos também terra disponível. O Brasil tem 846 milhões de hectares. A agricultura usa 61 milhões. Outros 196 milhões são pastagens, com 205 milhões de cabeças de gado, o segundo maior rebanho do mundo, atrás apenas da Índia. Temos centenas de milhões de hectares disponíveis para expandir a fronteira agrícola. Devemos usá-los? Podemos escolher desmatar todo o Centro-Oeste e a borda sul da Amazônia para semear soja, milho, arroz e feijão. Alimentaríamos o mundo. Mas o custo seria a destruição do que resta de Cerrado e de boa parte da Floresta Amazônica. A maior biodiversidade do mundo seria substituída pela monotonia da monocultura.
Podemos optar pela preservação, usando de forma sustentável as áreas degradadas. “A produção aqui no Mato Grosso, no Pará e em Rondônia pode crescer muito. Basta usar a área degradada”, diz o fazendeiro gaúcho Roberto Luiz Chioquetta, de 50 anos. Chioquetta planta 4.000 hectares de soja, milho e girassol em Campo Novo do Parecis, no Mato Grosso. Ele usa as tecnologias mais avançadas, como correção do solo por sensoreamento remoto e piloto automático via GPS em suas semeadeiras. O resultado é uma safra de até 58 sacas de soja por hectare, uma das maiores produtividades do mundo. Para produzir ainda mais, Chioquetta dá a receita: “Aqui na região, os pecuaristas mantêm apenas um boi por hectare. É muito pouco. Poderiam concentrar cinco bois por hectare. Liberariam quatro para a lavoura”. Para Chioquetta, é factível erradicar a fome e alimentar 9 bilhões de humanos até 2050. E o desafio pode ser alcançado sem devastar o meio ambiente.
Agora, só falta ele semear a ideia.
-------------- Reportagem por Por Peter Moon com Leopoldo Mateus
Fonte: Revista ÉPOCA on line, 03/06/2011
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