Contardo Calligaris. Foto: Janete Longo, divulgação
O psicanalista e colunista da Folha de S. Paulo Contardo Calligaris chegou a Porto Alegre nesta semana para revisitar a cidade em que morou por cinco anos e reencontrar velhos amigos, como o professor Ruy Carlos Ostermann, com quem teve uma maravilhosa conversa no Encontros com o Professor. Calligaris também veio autografar seu novo romance, A Mulher de Vermelho e Branco – que retoma o personagem principal de O Conto do Amor, de 2008, o psicanalista Carlo Antonini. A história que Calligaris conta no novo livro se passa antes do período retratado no primeiro romance – Carlo reencontra um amor de juventude e se vê envolvido no caso de uma paciente, Woody, uma brasileira casada com um muçulmano logo após aos atentados do 11 de Setembro em Nova York. Calligaris autografa o livro hoje às 19h30min na Livraria Cultura do Bourbon Country (Túlio de Rose, 80), e falou com Zero Hora por telefone na terça-feira, desde São Paulo. Vai abaixo a íntegra da entrevista, publicada hoje com cortes no Segundo Caderno:
Zero Hora — Em A Mulher de Vermelho e Branco, o senhor recupera o personagem de Carlo Antonini, mas o enfoca em um momento anterior ao mostrado em O Conto do Amor. Por que essa opção de contar uma história anterior quando a maioria dos escritores opta por sequências para seus personagens recorrentes?
Contardo Calligaris – E isso vai piorando, posso dizer assim (risos). O romance seguinte, que talvez esteja pronto no final do ano que vem, é de novo uma história de Carlo Antonini, talvez a última, não sei, aos 11 anos. Estou regredindo cada vez mais. Não sei por quê. Primeiro porque havia duas coisas que eu queria falar: a primeira, as consequências na vida cotidiana do terrorismo, do 11 de setembro, como isto tornou as diferenças culturais mais complicadas de serem vividas, e, a segunda, contar o que foi o Vietnã para a minha geração. E por alguma razão me pareceu fazer mais sentido que o reencontro com um antigo amor vietnamita e mesmo a história da própria mulher de vermelho e branco acontecessem numa época mais próxima de 2001. A outra resposta é que escrever algo que acontecesse depois do Conto do Amor significaria decidir o que iria acontecer entre Carlo Antonini e Nicoletta, a mulher por quem ele se apaixona no Conto do Amor e com quem aparentemente vai tentar construir sua vida. E você sabe como é: a literatura é especializada em “contos do amor”, ou seja, em contar como um amor se constrói, como duas pessoas se encontram, e geralmente as histórias acabam com a promessa de que desde então viverão felizes para sempre. Quando se começa a descrever propriamente uma relação na sua duração, geralmente se cai na farsa. É muito mais fácil fazer uma comédia sobre a duração de uma relação do que outra coisa.
ZH – Retomar então a história de O Conto do Amor depois de sua conclusão no livro anterior seria, para o senhor, trair de algum modo o espírito do outro livro?
Calligaris – É difícil… Concordo, quer dizer, é difícil pensar uma história de amor efetiva que esteja à altura da mágica do encontro de Carlo e Nicoletta. Porque aquele encontro tem uma certa mágica, um encantamento, e manter este encantamento ao longo de uma história de amor seria complicado. Eu, como autor, evitaria.
ZH – Em O Conto do Amor o senhor engendrava uma narrativa em que as indagações da trama histórica eram respondidas. Em A Mulher de Vermelho e Branco o personagem encontra uma mulher de seu passado, embarca com ela em uma aventuran para identificar o homem que a prejudicou no passado e essa busca termina em aberto. Foi uma resposta ao fato de o primeiro livro fornecer respostas?
Calligaris – Sim. No primeiro livro tínhamos as respostas, pelo menos, quanto à procura do Carlo em relação ao passado do pai. Mas as respostas não estavam onde ele inicialmente achava que estariam, não estavam no fato de desvendar sei lá qual enigma histórico e cultural. De alguma forma a resposta verdadeira que ele encontra no primeiro livro em resposta à procura pelo passado do pai é ele próprio ter a coragem de se apaixonar. No segundo livro não é muito diferente. Carlo responde mais pela ação do que pelo pensamento. Não é alguém que fica refletindo muito. E é verdade que a história acaba com uma certa perplexidade do narrador, porque no fundo, e isso é também um dos temas importantes do romance, ninguém nunca sabe o que realmente acontece, no sentido de que o passado de cada um de nós é apenas a versão dos fatos que por alguma razão decidimos preferir ou que tivemos de preferir para nos proteger de uma verdade um tanto incômoda, por exemplo. Mas saber o que realmente aconteceu na história de Leelee e mesmo na história da mulher de vermelho e branco fica no campo das hipóteses para Carlo e para o amigo policial dele.
ZH – Carlo Antonini é um psicanalista, uma profissão associada à reflexão e ao intelecto. No entanto, com o reaparecimento, em A Mulher de Vermelho e Branco, de um amor de juventude, ele logo está arrebatado pela mulher para procurar um homem de quem ela ostensivamente quer se vingar. É uma espécie de blecaute da razão do personagem?
Calligaris – Sim, é verdade, mas ao mesmo tempo tem a volta de um amor, de alguém por quem ele tinha se apaixonado e a quem não via há algo como 25 anos. Então tem um retorno de paixão, eles vivem uma pequena relação amorosa em São Paulo no reencontro. Mas Carlo, tanto no primeiro quanto no segundo romance, é alguém que tem um gosto pela aventura. Ele por um lado pratica a psicanálise como uma aventura – o que talvez seja mesmo. Mas que independentemente disso vive de apostas bastante arriscadas e radicais. Já no primeiro livro ele vive num ritmo que aparentemente seria pouco compatível com o caráter um pouco conservador e estabelecido da vida de um psicanalista como as pessoas a imaginam.
ZH – Seu personagem então é quase um Indiana Jones da psicanálise.
Calligaris – Sim, pode-se dizer isso, sem que ele esteja procurando nenhum ídolo perdido na floresta amazônica nem sendo procurado por Hitler, mas quem sabe num próximo livro?
ZH – E o próximo romance com o personagem? Situá-lo na infância deixa prever que será um romance de formação?
Calligaris – A minha primeira referência quando escrevo é a do romance histórico. Tem uma história de amor, e o amor e a aventura são a mesma coisa, de alguma forma. Mas O Conto do Amor é um romance sobre a herança do antifascismo e a luta armada dos anos 1970. São todos pedaços da história da minha geração, no fundo. O segundo romance fala da importância da Guerra do Vietnã, a militância contra a guerra e, por outro lado, a questão da diversidade cultural. O que eu quero escrever há tempo, porque é uma experiência minha e o Carlo vai me ajudar a fazer isso, é o fato de nascer e crescer em uma cidade devastada pela guerra, entre os escombros deixados pelos bombardeios. Tanto que o título do livro deve ser O Homem nos Escombros. Essa é uma experiência fundadora para os baby boomers, que agora se encaminham lentamente para a aposentadoria.
ZH — E é alguma espécie de conforto saber a pessoa que esse personagem se tornará no futuro, o protagonista dos outros dois livros, enquanto se imagina a infância dele?
Calligaris — Do ponto de vista narrativo na verdade é mais uma complicação. Porque por um lado, como eu disse, escrever o segundo romance sobre um período anterior ao primeiro me dava um conforto de não precisar definir o que havia ficado em aberto. Mas por outro lado, quando você remonta no tempo, é preciso criar um Carlo compatível com o que ele vai ser depois, tem um problema de consistência interna do protagonista. Então o Carlo aos 11 anos tem uma experiência que vai durar mais ou menos um ano. E concordo com você: vai acabar sendo um romance de formação.
ZH — E usar o mesmo personagem nesse terceiro romance obedece a algum impulso de completar uma trilogia, dado que, com uma distância temporal tão grande entre as histórias dos três livros, esse romance sobre a infância na Itália dos escombros poderia ser contado pelo ponto de vista de outro personagem qualquer?
Calligaris — Sim, ou poderia ser uma autobiografia, narrada por mim. Mas eu tenho carinho pelo Carlo, porque eu tenho muitas coisas em comum com ele e muitas coisas não. Então para mim é perfeito. O que eu tenho em comum com ele o torna um protagonista mais “fácil” do ponto de vista da criação, porque eu imagino com uma certa facilidade o que ele pode ter lido, conhecido e pensado, porque são parecidas com as minhas. Por outro lado, não sou eu. É uma outra pessoa, e o que eu ganho, entre outras coisas, escrevendo ficção, é que Carlo me revela coisas de mim mesmo que eu não sabia antes de escrever. A escrita é tradicionalmente uma forma de análise para quem escreve. Então essa proximidade que não é identidade é uma coisa que produz para mim uma experiência interessante, e eu gostaria de mantê-lo. Até porque ele me serviu exatamente por isso. O grosso das experiências históricas que Carlo teve e sobre as coisas ele contou nos dois livros são as experiências históricas mais importantes da minha geração ou de como eu vivi essa geração.
ZH — Seus livros são narrados em primeira pessoa e o personagem tem muitas características suas: é italiano, psicanalista, tem uma experiência de residência em Nova York, em Paris. Ao que parece não lhe incomoda que os leitores confundam em alguma medida o autor e o personagem.
Calligaris — Não, não tenho problema algum. Não só não me atrapalha como acho que facilita o trabalho do leitor, sobretudo do leitor contemporâneo, em que a primeira pessoa dá a ideia de um relato “verdadeiro” — e um relato fictício pode ser tão “verdadeiro” quanto um relato do que “realmente aconteceu”. Mas isso facilita pelo menos para reter a atenção do leitor. E eu estou convencido de que de qualquer jeito estamos vivendo em ficções, mesmo quando não estamos lendo ou escrevendo ficções. A visão que cada um de nós tem de sua vida, assim como ela de fato teria acontecido, é apenas mais uma ficção. Então essa questão não me preocupa muito. O que acontece é que tenho uma certa presença pública por causa da coluna que escrevo há 12 anos na Folha de S. Paulo a cada semana, isso faz muitos leitores se perguntarem: ah, isso aí é ele, ele também é italiano, é psicanalista, escreve, morou em Nova York, esteve em Paris naqueles anos… Agora isso também tem a ver com o fato de que a minha vida é pública. Claro que no mundo de hoje a vida de qualquer é pública e ao alcance do Google. Mas o leitor médio brasileiro de Philip Roth, por exemplo, lê os últimos romances achando que, com toda razão, são obras extraordinárias sobre envelhecimento e companhia. O leitor americano ou pelo menos nova-iorquino que sabe perfeitamente que Roth lidou com um câncer de próstata, que mora sozinho numa casa de campo, tem a impressão de que aquilo é perfeitamente autobiográfico. No fundo não tem muita importância.
------------------------- Fonte: www. zerohora.com/mundolivro 06/08/2011


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