sábado, 6 de agosto de 2011

EDGAR MORIN, SOCIÓLOGO - Entrevista

“Podemos não chegar ao melhor dos mundos,
 mas a um mundo melhor”

Aos 90 anos completados no dia 8 de julho, Edgar Morin se mantém em plena atividade intelectual. Do vazamento de informações sigilosas pelo site WikiLeaks ao acidente nuclear de Fukushima, uma gama ampla de acontecimentos e fenômenos é coberta pelo radar crítico do pensador, conferencista da próxima segunda-feira do ciclo Fronteiras do Pensamento. Um exemplo dessa variedade de interesses está contido no livro A Minha Esquerda, recém-lançado no Brasil pela Sulina (leia resenha abaixo no blog: A esperança que não quer certeza).
O Fronteiras do Pensamento é apresentado pela Braskem e tem o patrocínio de Unimed Porto Alegre, Natura, Gerdau e Grupo RBS. Parceria cultural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Prefeitura Municipal de Porto Alegre, módulo educacional Refap e apoio Anhanguera Educacional.
No dia 22 de julho, o autor de O Método falou a Zero Hora por telefone, de sua residência, em Paris:

Zero Hora – O senhor já afirmou que, findo o século 20 com seus grandes projetos utópicos, não se trata mais de conquistar o mundo, como propuseram Descartes, Einstein e Marx, e sim civilizar a Terra. O que quer dizer isso?
Edgar Morin – Formas diversas de barbárie são evidentes no mundo. Temos, de um lado, agressões, ódio, crimes, que são barbáries odiosas associadas à guerra, à dominação, que têm fundo histórico e atualmente estão evidentes. Reduziu-se essa barbárie, mas há outra barbárie, fria, de cálculo, de origem filosófica, com a razão instrumental da qual fala Theodor W. Adorno (pensador alemão, 1903 – 1969), utilizada por seus seguidores de forma irracional, destrutiva. De modo profissional, a barbárie fria, da técnica, do cálculo, é a barbárie direcionada contra o outro. E ainda há a barbárie interior, em cada indivíduo, que dificulta o estudo e o entendimento desse ódio e de sua presa. Sempre emergem várias questões a esse respeito, porque cada um tem suas justificativas para cometer esse tipo de barbárie. Para civilizar o mundo, por assim dizer, para torná-lo livre das barbáries, devemos entregá-lo a algo mais forte. Mais forte não somente que a racionalidade, mas também que a fraternidade, a compreensão e o amor. Assim, para civilizar o mundo, devemos ter atualmente um coração patriota, no sentido de pertencimento à Terra-Pátria. Ter um coração patriota significa ter um amor fraterno pela pátria, nutrir por ela um sentimento paternal, ou no feminino, maternal, como se diz, à “Pátria Mãe os maiores sentimentos”. O pertencimento é familiar, conota um despojamento da vaidade. Compreende-se que jamais vamos eliminar fontes de conflito, as corporações, todos os males possíveis que podem advir ao mundo. Podemos não chegar ao melhor dos mundos, mas a um mundo melhor. Civilizar a Terra é isso.

ZH – Qual seria a ideia fundadora dessa civilização mundial?
Morin – A ideia fundadora deve ser, primeiramente, a ideia de comunidade de Estado. É verdade que os humanos, com problemas em comum, atualmente estão mais solidários. Esse é o lado positivo da mundialização. Acreditar na existência de mais possibilidades a partir das comunidades de Estado, a possibilidade do exercício de comunidade como pátria. A crise de consciência das comunidades de Estado avançou certamente, mas veja o problema: os perigos que ameaçam a biosfera se tornaram maiores, como mostram o acidente com o reator nuclear japonês (na usina nuclear de Fukushima, em março), o aquecimento global, sem falar da poluição, da degradação. Então, os países se tornaram maiores por tomarem consciência, e essa consciência poderá permitir talvez lutar e controlar as ações concretas. É verdade que, atualmente, na Terra, a partir da interação dos países, é possível tomar decisões únicas sobre os problemas da biosfera, das armas de destruição em massa, que evidentemente deveriam ser eliminadas, e também sobre a economia moderna, que não tem nenhum regulamento, que não tem objetivo, que antecipa crises que talvez se agravem. Então, para vivermos em comunidade, nesta grande civilização, deve haver uma comoção mental. A conclusão é que é necessário ser livre, mas fazer parte de tudo.

"E ainda há a barbárie interior, em cada indivíduo,
que dificulta o estudo e o entendimento desse ódio
e de sua presa."

ZH – Sua proposta de civilização mundial chamou atenção de Nicolas Sarkozy, que chegou a convidá-lo para uma reunião no ano passado. Como foi esse encontro com o presidente da França?
Morin – Sarkozy disse que, para ele, a política de civilização é uma questão de valores e identidade. Que, para participar da política de civilização, é necessário lutar contra os modelos mais negativos. Mas há uma outra ideia de civilização ocidental que existe atualmente e que, por causa do desenvolvimento do respeito, pode provocar melhorias mais positivas. É o que posso dizer sobre as ideias do encontro com Sarkozy.

ZH – Quais são as diferenças entre sua concepção dessa política de civilização e a de Sarkozy?
Morin – Eu diria que, para ele, a política de civilização está relacionada a identidade e valores. Para mim, são as comunidades e a expressão ocidental que valem.

ZH – Muitos escritores e filósofos têm se debruçado sobre o fenômeno da internet no atual contexto mundial. O senhor acredita que, hoje, a internet possa desempenhar um papel ético?
Morin – É consenso atualmente que qualquer matemático ou profissional da informática pode ser capaz de decifrar códigos e de penetrar os segredos bem guardados dos Estados, dos bancos, de todas as instituições. E ainda tem o WikiLeaks (site dedicado a vazamento de informações sigilosas de governos e instituições privadas), que incrementou a internet como uma força libertária. Eu acho que essa é uma novidade atualmente. Pela internet há todas as possibilidades de comunicação, seja para a máfia, os terroristas e tudo o mais. Mas funciona também como força de emancipação e libertação. A comunicação pela internet tem um grande papel no sentido de emancipação. Assim, acho que a internet tenha hoje um aspecto positivo muito evidente. E eu acho que se para tudo há segredos e censura, nos Estados, na diplomacia, falta-lhes ser saudáveis e revelar o que está escondido. Os segredos estão lacrados, e nenhuma pessoa do mundo pode participar ou ter conhecimento sobre o que se passa dentro da sociedade.

ZH – Seu novo livro, La Voie (O Caminho), contém uma referência à democracia participativa e cita o Brasil como exemplo. Qual experiência específica o senhor tem em mente ao se referir a isso?
Morin – É muito importante acreditar no governo unificado da cidade, da região. O povo, como mostra o exemplo de Porto Alegre, está mais participativo em relação ao governo e, por enquanto, a participação nas decisões de Estado se desenvolveu porque o parlamento está mais próximo dos cidadãos e as as pessoas mais conservadoras estão ausentes. Os velhos, as mulheres e os jovens, que muitas vezes são altamente participativos, pregam ideias. Há também uma outra educação para a democracia participativa, o que me parece muito bom. A descentralização deve existir também, por exemplo, no Brasil, ao nível de diferentes Estados. É verdade que, no mundo, com a governança urbana, há cidades nas quais somente os administradores, os jornalistas e os capitalistas tomam decisões. É necessário que o cidadão participe, que se informe, que faça propostas. Se você quer a democracia participativa, é necessário que se aumente a participação nas dificuldades, mas que se permita corrigir a tendência à oligarquização da representação em nível nacional, que tem como consequência a perda de contato do cidadão com seus representantes.


A esperança que não quer ser certeza

Vinte e dois anos, 24 textos e uma única atmosfera em que se defrontam o desencanto com a modernidade e seus sucedâneos e a urgência de desafiar o avanço do trem da barbárie, nem que seja deitando um pouco de ironia sobre os trilhos. Assim se pode definir a coletânea A Minha Esquerda, de Edgar Morin, que a Sulina lança concomitantemente à visita do pensador a Porto Alegre. O livro, publicado no ano passado na França, chega ao público brasileiro num momento particularmente crítico em âmbito mundial: a economia americana aos espasmos, a Europa estarrecida com a crise grega e o massacre na Noruega, desastre nuclear no Japão, banhos de sangue na Líbia e na Síria. É disso mesmo que Morin está falando.
Que ninguém se deixe iludir pelos 90 anos do autor. O ancião que fará a conferência de segunda-feira no ciclo Fronteiras do Pensamento é um veterano da Resistência aos nazistas, ex-oficial do exército francês e encarregado de propaganda na Alemanha derrotada e ocupada, ex-militante do Partido Comunista (do qual foi expulso em 1951 por antiestalinismo), ativista pró-independência da Argélia, companheiro de Roland Barthes, Cornelius Castoriadis e Claude Lefort. Mesmo aqueles que nunca ouviram falar dele devem ter travado contato com as expressões “cultura de massa” e “pensamento complexo” e, assim, não são totalmente estranhos a suas ideias. Profundamente embebido no que chama de “extraordinária experiência” do século 20, Morin é o porta-voz de uma geração em vias de desaparecimento: a dos que testemunharam a II Guerra Mundial e a reconstrução do pós-guerra, a revolução colonial e a Guerra Fria, a corrida espacial e o desmoronamento da União Soviética com a crença cada vez mais abalada em noções como progresso, tecnologia e salvação terrena. Disso ele não está mais falando.
Nos escritos de A Minha Esquerda (o título em francês, Ma Gauche, tem profundas ressonâncias históricas que remetem à Revolução Francesa e se perdem parcialmente em português), muitos deles publicados na imprensa diária, Morin repete um recado preciso: com o fim do século das grandes ilusões, é preciso buscar na ideia de pertencimento ao que chama de “Terra Pátria” uma resposta aos impasses do presente. Seu diagnóstico certamente soará desconfortável para muitos: nenhum otimismo sobre o futuro da humanidade (“O progresso humano é sempre possível, mas é incerto e talvez improvável”), necessidade de impor regras ao capitalismo, democracia participativa no lugar de democracia parlamentar, princípios neoconfucianos de recrutamento de servidores públicos (professores, médicos) levando em consideração os “valores morais” dos candidatos. Em 1999, ele proclamou que “o século 21 começou em Seattle”, numa alusão aos protestos antiglobalização. “Exigirei da ONU a instituição de um Observatório Internacional para crimes de inumanidade”, escreveu em 2007 num texto ironicamente intitulado Se Eu Fosse Candidato.
O leitor interessado em soluções messiânicas ou observações desencantadas deve deixar de lado A Minha Esquerda. A obra tampouco é diversão garantida para os que buscam loas à sociedade globalizada ou à capacidade de autorregulamentação dos mercados. Em suas páginas, sobra para a esquerda francesa: “Restam a esquerda ressentida e a esquerda caviar”. E para a direita: “Uma França reacionária sempre relegada ao segundo plano no século 20, exceto durante o reinado de Vichy, alcança enfim o primeiro plano, insensível, chauvinista, soberanista”. Sábio, Morin está convencido de que “a verdadeira esperança sabe que não deve constituir uma certeza”.

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Reportagem POR LUIZ ANTÔNIO ARAUJO
luiz.araujo@zerohora.com.br

Fonte: ZH/Cultura on line, 06/08/2011
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