segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O que vemos quando o bebê aparece na tela

LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN*


Num mundo fascinado pela tecnologia, o ato de realizar
uma ultrassonografia deixou de ser apenas um procedimento médico e
se tornou uma atividade de consumo e entretenimento capaz de dar
ao feto um nascimento virtual antes de vir à luz

"Há milênios nossas tecnologias nos rodeiam, mas nunca foram tão poderosas como na atualidade. Nunca antes trouxeram tantos benefícios. Nunca antes tiveram tanto poder de destruição – em vários casos com um potencial que já se revelou. E nunca antes a tarefa de entender estas tecnologias – como elas são modeladas e como nos modelam – foi tão urgente (...) questões técnicas nunca são estreitamente técnicas, assim como problemas sociais não são estritamente sociais. Quando as coisas dão errado, não faz sentido amaldiçoar as tecnologias (...) necessitamos urgentemente de um conjunto de instrumentos (...) para irmos além dos bodes expiatórios imediatos e começarmos a lidar e entender as características dos sistemas heterogêneos.” (John Law e Wiebe Bijker, Shaping Technology/Building Society: Studies in sociotechnical change, Cambridge, Massachusetts, e Londres, Grã-Bretanha, MIT Press, 1992, página 306)

Vivemos cercados de tecnologias de toda ordem: dos celulares aos fármacos, nossas vidas se tornaram praticamente inconcebíveis sem elas. Os estudos sociais da ciência e da tecnologia (ESCT) nos mostram que ciência, tecnologia e sociedade são inextricavelmente ligadas. Tal como os estudos dos “povos primitivos” da antropologia clássica nos permitiram compreender a sociedade ocidental, o campo dos ESCT evidenciou que ciência e tecnologia são tudo menos “neutras” e que estudar seus processos em interação com os humanos pode ser revelador de uma série de aspectos do cotidiano de nossas vidas. Como nos mostram os autores da citação que abre este artigo, essa análise contém sobretudo um posicionamento político. Compreender criticamente as ciências e tecnologias na vida torna-se uma atitude ética. Não se trata de “defender” ou “atacar”, que seriam posturas ingênuas ou anacrônicas. O interesse em analisar essa questão consiste em termos ferramentas para compreender nosso entorno em vez de aceitarmos passivamente o que nos é apresentado como “verdade”. A antropologia nos ensina que o fenômeno humano é infinitamente variável e, ao fazê-lo, possibilita colocar em perspectiva o que nos acostumamos a entender como “natural” no nosso dia-a-dia. Saber de que modo algumas “realidades” foram constituídas, e que não são necessariamente iguais em toda parte, propicia opções mais conscientes. Colocar algo em perspectiva, compreender sua dinâmica interna, é, sobretudo, um relativismo metodológico, um modo de analisar alguma coisa ou evento e não significa ser acrítico ou apolítico: relativismo metodológico não é igual a relativismo moral.
Tomarei como exemplo a atividade tornada corriqueira no acompanhamento prenatal desde os anos 1990: o ultrassom. Em todas as sociedades humanas, a concepção de novos seres e seu nascimento são objeto de atenção e de construção de sentidos. Os significados produzidos acerca da gravidez e do parto são sempre modelados e delimitados por fatores históricos, políticos, culturais e sociais. Explicitando: nas sociedades urbanas industrializadas vivemos dentro da cultura da medicalização, que consiste em uma tradução em termos médicos dos mais variados eventos do ciclo da vida. Assim, gravidez e parto tornaram-se domínios eminentemente médicos, o que gerou reconfigurações em nosso modo de perceber os dois fenômenos. O ultrassom, a princípio e em princípio uma tecnologia de imagem para acompanhamento médico da gravidez, transformou-se em objeto de consumo e “lazer”. As imagens fetais passaram a ser utilizadas com diversos propósitos: desde o discurso antiaborto até a propaganda de diversos produtos.

"É preciso colocar a tecnologia em seu lugar:
produto da cultura, em estreita interação
com o humano e, assim, indissociável
de suas vicissitudes"

Visando a compreender essa dinâmica, em 2005 realizei uma observação antropológica no Rio de Janeiro em clínicas privadas de ultrassom. A clientela pertencia às camadas médias e altas da população. Pude observar que, ao lado dos diagnósticos e laudos, uma série de outros efeitos eram produzidos. A construção do prazer de ver o feto, cujas imagens esfumaçadas e indistintas tornaram-se objeto de consumo – sendo ultrassonografistas e gestantes agentes ativos –, era a pedra de toque que unia o útil ao agradável. Os profissionais se empenhavam em “mostrar o neném” para as grávidas e estas se submetiam prazerosamente a prolongados exames buscando imagens fetais, ocasião em que os ultrassonografistas – conscientemente ou não – produziam narrativas visuais e discursivas. No processo, ao mesmo tempo em que surgiam “verdades” médicas e não-médicas sobre o feto, era construída uma subjetivação englobando indistintamente as imagens, a gestante e seu concepto. A “estetização” das imagens e a exteriorização do feto no monitor do aparelho favoreciam a “con-fusão” da imagem com o feto propriamente dito.
Nesse conjunto de atividades e processos a tecnologia ocupava um lugar central, transformando as grávidas em consumidoras de imagens, reforçando a medicalização da gestação apoiada em tecnologias e, last but not least – diante da possibilidade de detecção de anomalias – gerando ansiedade e angústia para as gestantes que, em um movimento de realimentação contínuo, só a tecnologia de imagem poderia dirimir. Mediante a imagem técnica o feto tem um “nascimento virtual”, ganha existência social antes de vir à luz. A tecnologia de ultrassom se estabilizou como uma tecnologia confiável porque era adequada à demanda de monitoramento da gestação. Ao possibilitar que o processo de gestação fosse transformado em espetáculo, contribuiu para a ilusão de que, em se tornando as coisas visíveis, “tudo se sabe” acerca da vida e, consequentemente, também da morte. Uma tecnologia desenhada para fins médicos produz uma miríade de efeitos que modificam as percepções e as sensibilidades. Entender esse movimento implica colocar a tecnologia em seu lugar: produto da cultura, em estreita interação com o humano e, assim, indissociável de suas vicissitudes. Nada neutra, portanto.
---------------------------------
*Médica, psicanalista, doutora em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, autora de “Meio Quilo de Gente – Um Estudo Antropológico sobre Ultra-som Obstétrico” (Editora da Fiocruz, 2007)
Fonte: ZH Cultura on line, 06/08/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário