O psicanalista Tales Ab’Sáber mostra como
o pacto social costurado por Lula se desfez, criando espaço para as
forças da direita e atualizando a longa tradição de crise política do
País. Ab’Sáber abre a série de artigos, entrevistas e reportagens que
debatem o Brasil
Tales Ab’Sáber é um psicanalista que pensa a política. Professor de Filosofia da Psicanálise na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele é autor de Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica e de Dilma Rousseff e o Ódio Político,
entre outros livros. Ao analisar a crise que implode o Brasil e afeta
até relações familiares, Ab’Sáber destaca que o período petista, repleto
de avanços sociais, acabou
por promover uma espécie de congelamento da política, rompido depois
que a direita herdou a rua dos protestos de 2013, politizados
originalmente à esquerda. “Emergiu um discurso que estava desmobilizado,
mas que existia. Olhando de um modo benévolo, houve um descongelamento
da política”, afirma o psicanalista. “E a direita casou a crise da
corrupção com o ataque à mística lulista.”
Para Ab’Sáber, a reviravolta faz parte do jogo democrático. Daqui para a
frente, a direita vai ter de mostrar a que veio, indicar qual a
civilização que almeja e controlar as manifestações de ódio em suas
fileiras. A esquerda, por sua vez, terá de começar tudo de novo. “No
momento, a longatradição de crise política
brasileira produz um estado de transe”, diz Ab’Sáber. “Todos os vínculos
foram explodidos.” Há, é claro, muito a lamentar, a começar pela perda
de oportunidades no campo da economia e da geopolítica: “Em Cuba, Obama
está completando um movimento que Lula começou. O Brasil tinha
interesses estratégicos. Tudo isso foi destruído como se nunca tivesse existido”.
Brasileiros – O que aconteceu com o carisma pop, midiático, do ex-presidente Lula, como retratado em seu livro sobre o lulismo?
Tales Ab’Sáber –
Nos últimos anos, houve avanços muito significativos no Brasil. O pacto
político bem tramado por Lula juntou forças econômicas do baixo da vida
social com o alto da vida social. Foram quatro eleições para presidente
da República. Não foram quatro dias. De um certo modo, o tempo petista
congelou a política. Esse processo isolou uma dimensão do País, que
explodiu no último ano e meio. O pacto do lulismo se desfez. Emergiu um
discurso que estava desmobilizado, mas que existia. Olhando de um modo
benévolo, houve um descongelamento da política. E a direita percebeu o
fenômeno antes mesmo de a Justiça entrar nessa caçada artificial de
Lula, nesse processo quase inquisitorial. No Brasil, só Lula viveu isso
como político.
Nem Getúlio Vargas?Talvez
tenha alguma semelhança com Getúlio Vargas. Uma pressão de todos os
lados para cima do governo, que em Getúlio passava fortemente pelo
Exército. Dessa vez, nessa crise toda, o Exército foi impecável. Não
piscou. Manteve a posição que sempre deveria ter mantido no Brasil. É
uma conquista. Agora, voltando ao ponto, a direita percebeu que
precisava corroer a mística lulista.
Como fez isso?De
um modo bastante hábil. Os grupos que movimentaram essas ações de
direita são organizados. Desde o começo do ano passado, se organizaram
de um modo quase profissional. Eles têm várias camadas de textos.
Casaram a crise da corrupção com o ataque à mística lulista. Sabiam que
quanto mais gente colocassem na rua, maior seria a repercussão na mídia.
E conseguiram fazer esse movimento, essa bola de neve. Gente na rua,
grandes grupos de mídia, mais gente na rua, mais mídia. O movimento
social foi na frente.
Quando surgiu?Essa
direita se apresentou pela primeira vez na crise de 2013. Ela herdou a
rua do movimento originalmente à esquerda, feito pelos jovens que faziam
política independente, também sem líder. O Movimento Passe Livre
disparou um processo, politizado à esquerda, de demandas socializantes
mais fortes do que o governo. Em seguida, a direita entrou no mesmo
processo, com ações políticas independentemente de partidos. Há algo de
bom nisso. Significa uma cidadania política mais estruturada.
Não é estranho que 27 anos depois da queda do muro de Berlim, o Brasil esteja dividido entre direita e esquerda?É
muito estranho, mas temos que admitir que essa estranheza se construiu
também sobre as ambiguidades do que estamos chamando de esquerda, o
campo lulopetista. Esse campo tem um movimento estranho e não pensado.
Em uma face, opera de modo a convocar as contradições sociais do Brasil.
Na outra face, opera com os interesses do grande capital. Está
inclusive sendo processado por causa do seu vínculo com o grande
capital. O que passamos a chamar de esquerda não é uma esquerda
tradicional. É uma espécie de social-democracia mínima. A falência
política desse projeto se deu pelos lugares arcaicos. O pacto com as
grandes empreiteiras não foi feito pelo PT. Desde a criação de Brasília,
o Estado e as grandes empreiteiras estão misturados. O PT embarcou
nesse barco. O curioso é que houve um movimento próprio da democracia
que cobra do PT, como se o PT tivesse feito isso.
Tivesse criado o pacto com as empreiteiras?Isso
é uma mentira ideológica. O barco sempre esteve aí. Um dos problemas da
esquerda brasileira foi ter aceito o barco. Esse é um problema
político. A esquerda não consegue pensar sobre o vínculo político com o
que há de arcaico no Brasil, que serviu fortemente para o PT durante
quatro eleições.
Serviu no sentido de financiar campanha?Esse
é um aspecto. É o aspecto que está sendo criticado. Mas acredito que
serviu mais para estabilizar a entrada do grupo de homens ligados a Lula
e dos sindicalistas ligados ao PT no condomínio do poder brasileiro. O
fato de não contradizer a tradição política brasileira foi um dos
elementos que deram força política para Lula nos seus dois mandatos.
Então, não era apenas a questão do dinheiro envolvido. Era a questão de
que o PT não desestabilizaria o jogo do Brasil.
Abriu até portas para a atuação das empreiteiras em outros continentes, como na África.Essa
era a hipótese de o governo, através desse pacto entre Estado e
empreiteiras nacionais, construir grandes empresas globais, de tentar
colocar o pequeno capital brasileiro em uma escala mundial. Esse, dizem,
é o ponto desse projeto que teria cruzado grandes interesses
americanos. Não temos nenhum documento sobre isso. É algo a ser
investigado. Pode ser teoria conspiratória, paranoica, para explicar a
nossa própria falência interna e digerir esse processo.
De qualquer
maneira, o presidente Barack Obama acaba de visitar Cuba. O Brasil
investiu na ilha e quem aparentemente vai se beneficiar da abertura são
os Estados Unidos.Esse é um elemento trágico.
Reflete a limitação da grosseria ideológica dessa nova direita, desse
papo de Guerra Fria em 2016. Não tem nenhum cabimento. É delírio total,
mas é delírio interessado, que produziu energia social para derrubar o
governo. Não tem vínculo com a realidade, mas funcionou como linguagem e
produziu força política. A força desse delírio, que não corresponde a
nada, é real. Ela convocou massas para a rua, virou força política. Isso
fala do nosso atraso, não fala de nossa capacidade de entender o mundo
contemporâneo. Obama está completando um movimento que Lula começou. O
Brasil tinha interesses estratégicos. O investimento no porto de Cuba
permitiria ao Brasil ter uma posição geoeconômica, geopolítica, muito
importante. Tudo isso foi destruído como se nunca tivesse existido.
Elementos ideológicos arcaicos que produziram um movimento para destruir
o sistema da política petista destruíram também os elementos
progressistas de desenvolvimento.
Como a figura de Dilma Rousseff contribuiu para isso?O
problema é complexo. Mostra a importância da personalidade do político
em um processo democrático em que os homens estão disputando o lugar de
liderança em um jogo de forças muito complexo. Do mundo de Lula para o
mundo de Dilma ficou muito claro que a personalidade e as possibilidades
psíquicas do líder contam enormemente no processo da política. A
diferença de Lula para a Dilma é extremada. É de 180 graus. Eles são de
esquerda, tinham o mesmo projeto, estavam em uma mesma construção
macroeconômica, macropolítica, mas o modo de operar a política era
diametralmente oposto. O problema da presidente tem uma série de
aspectos. O principal é que a presidente sempre operou a política como
uma tecnocrata, uma burocrata, uma pessoa que dá ordens, que está
acostumada a uma posição de poder que é própria da burocracia, própria
da estrutura de mando e de decisão direta. O campo da política envolve
construções mútuas de consenso, de posições aproximadas. A presidente
Dilma nunca foi capaz de fazer isso. Evidentemente ela
agia de boa-fé, mas tinha tanta certeza de seu projeto e tinha um
elemento arrogante de ser melhor e superior aos outros que acabou
produzindo o seu isolamento. É triste dizer isso. Nesse sentido, o maior
erro político de Lula, na minha opinião, foi a invenção política da
presidente Dilma. Ela não é uma política. O PT tinha várias alternativas
possíveis para esse lugar da sucessão do Lula.
Será que Lula não quis sombra?Ele
não quis nenhum outro político operando o grande poder. De algum modo,
ele quis poder demais. Aconteceu o trágico, a Húbris dos gregos, que é
quando os heróis desafiam os deuses. Quando o herói desafia os deuses, o
próximo passo é sua ruína. É um mito grego, mas aconteceu com Lula.
Em vez de Dilma, quem ele poderia ter escolhido?Uma
pessoa interessante, que poderia ter um destino completamente
diferente, é Marta Suplicy. Ela não saiu do PT porque é uma louca
desvairada ou porque quer o poder a qualquer custo. Ela viu fechadas as
portas. Ao mesmo tempo, tem força para construir um caminho
próprio. E no PT tem ainda outros nomes, como Tarso Genro. Vários
outros poderiam ocupar o espaço com habilidades e experiência de
político. Não quer dizer que não
fossem levar porrada, que não tivessem dificuldades imensas com a crise
econômica. Mas o modo duro e difícil da presidente não conseguiu aquilo
que Maquiavel fala em O Príncipe, que é aumentar o seu
poder e integrar a sua comunidade. A ação do político deve visar isso. A
presidente trabalhou de um modo que ficou totalmente sem poder. Já faz
quase um ano que ela está sem poder.
Quando se referiu a Dilma Rousseff, você usou o verbo no passado. Para você, o governo dela já acabou?O
governo acabou em junho, julho do ano passado. O esvaziamento do lugar
do governo na política brasileira não aconteceu agora, nas portas do
impeachment. O impeachment é o resultado, trabalhado pela direita, desse
esvaziamento do governo, que aconteceu paradoxalmente quando ganhou a
eleição. É impressionante o modo como o PT entrou para o quarto mandato,
como se não tivesse força nenhuma. É incompreensível a descoordenação
no Congresso. O PT fez a maior bancada de deputados no Congresso. Como o
PT não teve nenhuma condição de produzir efeitos a favor do governo no
Congresso? Não teve. Sofreu derrotas simbólicas, humilhantes, para
Eduardo Cunha e a nova direita organizada ao redor dele.
A própria eleição de Eduardo Cunha foi resultado de um embate controverso.Mais
uma vez, má política. Dilma não percebeu que não tinha força para
vencer o inimigo e aumentou a força dele. Botou o inimigo em um processo
agressivo contra ela. Na política, quem vai perder uma parada não joga
todas as fichas nela. Tenta pelo menos tirar alguma energia do processo.
O governo perdeu todas as fichas, o tempo todo. Não acho que isso seja
só uma crise da presidente Dilma. É uma crise do PT. A presidente Dilma
tem grandes dificuldades políticas, mas o PT estava completamente
desorgânico nesse processo. O PT precisa fazer uma autocrítica e
entender onde perdeu o pé do mar do processo político. Ele se afogou e
isso já faz tempo. Já faz mais de um ano.
Como o mensalão contribuiu para isso?O
mensalão contribuiu muito. Não porque tenha existido, mas porque foi o
momento histórico em que o PT teve a oportunidade de alterar esse
processo. Foi um momento em que o Lula ainda tinha força. Foi a denúncia
do pacto do PT com os mecanismos tradicionais brasileiro de corrupção,
que não foram inventados pelo PT, mas aos quais o PT aderiu, por poder. O
PT errou gravemente e Lula estava dirigindo o processo. Em vez de
politizar o problema à esquerda e de revelar a estrutura corrupta
brasileira e criar mecanismos, propor uma reforma que interviesse nisso,
o PT demandou a impunidade tradicional da direita. E descobriu que,
para ele, essa impunidade não vale. Isso é dialético. Na medida em que
não vale para o PT, a partir daqui passa a não valer para a direita
também. Não é por acaso que nesse panorama de crise radical, os tucanos
estão quietos. Não é por acaso que Aécio Neves e Geraldo Alckmin começam
a ser vaiados nas ruas. Sabe-se que o PSDB está envolvido em esquemas
idênticos. O próximo passo deve ser a hora da direita.
Na sua opinião, em 2005 o PT deveria ter assumido a própria corrupção e exposto a dos outros partidos?Assumir
a própria corrupção, expor o estado geral de corrupção e ser
protagonista da reforma que o País estava pedindo. Só o PT poderia fazer
isso, porque Lula estava forte. E porque Lula construiu o seu lugar
político como crítico à corrupção brasileira. Tinha toda a legitimidade
para fazer isso. Era uma jogada complexa, mas mudava completamente a
posição de ser aquele político tradicional brasileiro, que é pego em
esquemas de desvio de dinheiro público, fica negando, e espera controlar
a Justiça para apagar o processo. Nesse sentido, há algo de verdade na
crítica da direita. Isso reproduz o velho Brasil. O que não é verdade é a
direita dizer que não participa disso. Ela participa. O problema é que o
PT não pôde revelar esse processo do Brasil e ser protagonista disso.
Ele virou objeto desse processo e não sujeito.
Nesse meio
tempo, aflorou no Brasil um ódio impressionante. Esse ódio é inerente a
um País com passado escravocrata? Estava camuflado e aflorou agora?Esse
ódio contemporâneo precisa ser bem entendido. Ele não é 1964. Ele não é
a posição antissocial e antipopular da formação escravocrata do Brasil.
Mas ele também é. Há uma dialética interna complexa desse ódio de 2016,
porque os elementos modernizantes precisam ser compreendidos. Essa
direita está olhando para os Estados Unidos. A vanguarda desse movimento
à direita propõe que o processo social passe completamente à margem do
Estado, que o Estado reduza radicalmente a sua ação na vida social e
econômica. É um neoliberalismo apaixonado, acreditando que há no Brasil
tanto capital. E que o capital pode dar conta da vida social. Essas
pessoas estão iludidas.
Isso não acontece nos Estados Unidos?Acontece,
embora o governo americano, em um modo diferente, em uma escala
diferente, seja um governo bastante intervencionista, principalmente no
mundo. Ele é muito intervencionista a favor do seu mercado. Ao mesmo
tempo, nos Estados Unidos há uma longa tradição de sociedade de mercado
em que o mercado tem poder suficiente para se equiparar ao Estado. Não é
o caso brasileiro. Todas as vezes que se tentou afastar o Estado do
espaço da construção da nação, principalmente no governo Fernando
Henrique, não aconteceu nada. O País simplesmente parou, porque o
capital brasileiro não ocupou o espaço. Ele não tem poder de organizar a
vida social. Ele é dependente do Estado. E neste jogo há essa zona
perversa em que o capital e o Estado se misturam, se confundem, que é o
campo da corrupção. Voltando ao ponto, essa direita tem elementos
hipermodernos. Ela imagina que o Brasil é os Estados Unidos. Dizem que
são superliberais, que não têm nada a ver com a escravidão, com o
autoritarismo brasileiro. Não é bem verdade. No mesmo campo, existem
pessoas inteiramente autoritárias. Existe a tradição de desprezo e
violência em relação à vida popular brasileira. Isso precisa ser
acompanhado e controlado politicamente, assim como as intensidades
odiosas, antidemocráticas, que habitam a nova direita também.
Não é muito grave o fato de as pessoas não poderem usar vermelho sem correr o risco de serem agredidas?Qualquer
risco de ser agredido é muito grave. Que esse pessoal tenha começado a
espancar pessoas, a calar pessoas, e eles fazem isso, é muito grave.
Seria importante que os elementosdemocráticos e liberais
do movimento criticassem a sua própria violência. Afinal de contas,
quem eles são? Eles são hiperliberais ou são autoritários que querem
tomar o poder? Daqui para a frente, se realmente o governo entrar em uma
crise terminal, esse movimento vai ter que explicitar qual a
civilização que eles pretendem para o Brasil.
Ou qual a barbárie.Ou qual
barbárie. Eles deram um golpe de força para derrubar um governo
legítimo. São responsáveis pelo que criarão. Nesse sentido, precisamos
fortificar a democracia. Só a democracia pode ler esse processo.
Qualquer grupo autoritário quer apagar os instrumentos de leitura, que
são as leis, a imprensa, os instrumentos de acompanhamento e avaliação.
Daqui para a frente são esses caras que vão ter que responder pelas suas
ações, pelas suas posições, se eles são antissociais, se eles são
antidemocráticos, se são antipopulares. Até agora eles só acusam a
esquerda de ser corrupta. Mas quem são eles?
No âmbito pessoal, pode ter havido nos últimos tempos um afrouxamento da compostura por parte de manifestantes?Quando
pessoas elegantes descem no nível da massa, elas viram massa. É o
psiquismo de massa, é o mesmo que vai para o futebol, onde também se
grita contra o torcedor, o inimigo. Esse desrecalque dá prazer, mas não
há dúvida de que ele é violento. Existe inclusive toda uma estratégia
para ocultar essa dimensão violenta, antissocial, antidemocrática que é
muito forte nessas manifestações. No entanto, isso é a conversão do
indivíduo em massa. É a conversão psíquica, que dá prazer. É
desrecalque. Ao mesmo tempo, essa expressão violenta é energia política.
Esse ódio, que no limite seria sadismo, é o campo arcaicíssimo da
guerra, em que o inimigo é o inteiro mal e há liberação para destruí-lo.
A guerra libera pulsões arcaicíssimas e primitivíssimas. Cada um
precisa sobreviver por si mesmo. Esse movimento foi no limite disso. Não
é por acaso que começaram a perseguir e espancar algumas pessoas
também. E a calar.
Batendo panela?Uma
das estratégias mais fortes nesse momento foi calar a voz do inimigo.
No Brasil, as panelas não foram utilizadas como na Argentina, no Chile.
Lá elas sinalizavam que as panelas estavam vazias. Era a comunicação de
um mal-estar. No Brasil, as panelas sempre foram utilizadas para calar a
fala da presidente. É um outro lugar. É a última mediação. Bate na
panela porque não pode bater na pessoa. É uma ação política de calar.
Essa direita tem uma longa tradição autoritária. Uma parte desse pessoal
fez uma ditadura de direita de 20 anos, com tortura, com
desaparecimento de pessoas, com censura. O que uma parte desse grupo
produziu no Brasil não foi um parque de diversão.
Essa nova direita tem líderes?Na
verdade, são vários grupos jovens. É uma politização forte à direita,
uma coisa que a esquerda há muito tempo não conhecia. São apaixonados, e
organizados de modo semiprofissional ou profissional. Uma das coisas
interessantes seria pensar quem financiou esses processos, porque esses
processos foram muito trabalhados.
Como?Ainda
não está claro o vínculo com grupos liberais de direita brasileiros e
com americanos também, que pagam para que movimentos desse tipo se
produzam no mundo. É uma privatização do que a CIA fazia antigamente.
Hoje think tanks de direita fazem. É um movimento
político mundial. Existe. A esquerda tem que conhecê-lo, denunciá-lo.
Nesse sentido, não tem liderança, mas tem muita organização. Organização
quase profissional, burocrática. Eles têm jornalistas, assessor de
imprensa, publicitários.
Financiamento também?Financiamento, grupos de interesse, mas existe uma paixão política também. Tem muito a ver com o Tea Party americano.
Nos Estados Unidos, em um nível ainda mais radical do que aqui, esse
movimento é a direita do Partido Republicano, que está dando em Donald
Trump. Nos Estados Unidos, é um perigo.
E aqui?Precisamos
ver. Por enquanto, só tem a ação negativa de destruir um governo. Não
sabemos o que esses caras são no poder, porque eles inclusive são muito
divididos. Tem a parte mais arcaica, autoritária, desse pessoal, que
apoia Jair Bolsonaro, mas parece que são no máximo 10%. E tem os
neomercadistas, os novos jacobinos do mercado (os radicais do mercado). Esses caras evidentemente não podem apoiar Bolsonaro.
Podem apoiar José Serra?Eles
tendem para o PSDB, que tem uma tradição neoliberal no Brasil. Mas eles
também criticam o PSDB. Acham que o PSDB é muito estatista e que faz
parte do arcaísmo brasileiro. Eles também têm um projeto civilizatório
próprio, que é em grande parte ilusório. Uma certa faceta pode ser
autoritária e violenta.
No poder, representam ameaça aos avanços sociais do governo Lula?Não
só aos avanços sociais do governo Lula, mas aos avanços sociais da
Constituição de 1988. Há uma tendência hiperliberal de criticar os
estabelecimentos constitucionais de que o Estado tem que investir em
educação, em saúde, principalmente em saúde. Seria um ataque à
Constituição. Mas já há uma tendência geral, inclusive dos governos, de
fugir dos compromissos de investimento social previstos pela
Constituição de 1988. Esses caras já andaram falando que é arcaísmo o
Estado ter que pagar por essas coisas, na mesma hora em que nos Estados
Unidos existe um discurso à esquerda, que diz que o Estado tem que pagar
mais por essas coisas.
Quais as perspectivas para o futuro?Com
a corrosão da mística lulopetista, que a direita estrategicamente
conseguiu produzir, as pessoas precisam reinventar o circuito da
esquerda. Há muitos que não apoiam exatamente o governo petista e da
presidente Dilma, mas que entendem que o processo de impedimento do
governo é ilegal, forçado politicamente. O problema é que ele é forçado
politicamente, mas não é inteiramente ilegal. Eles abriram um processo de
impeachment no Congresso baseado em um pedido de setores da sociedade, baseado em erros do governo. Não
podemos chamar de golpe. Isso é política na democracia. A direita está
forte porque a esquerda ficou fraca. E como a esquerda, depois de quatro
Presidências da República está tão fraca? Corrupção é o grande tema
jurídico legal, mas agregada à corrupção está a ideia de que o governo
Dilma é inepto para governar o País.
O que por si só não justificaria um impeachment.De
jeito nenhum. O inepto, temos que aguentar. Podemos fazer movimento
político, mas temos que lidar com ele. Há elementos ilegais. Só que as
pedaladas fiscais também não justificariam, porque elas são clássicas de
governo. O problema está no fato de que se criou uma máquina de poder e
corrupção gigantesca na Petrobras. De qualquer forma, está acabando o
lulopetismo como grande fantasia de um brasileiro herói, que ao mesmo
tempo era um patriarca dos pobres e uma máscara para vários interesses
das elites progressistas que se articulam a esse herói. Esse grande
movimento de uma política messiânica está acabando no Brasil. A esquerda
vai ter de aprender a existir sem essa estrutura antiga. Essa é uma
estrutura do passado da América Latina, das estratégias de chegada ao
poder por meio da liderança hiperinvestida. A esquerda tem que se pensar
como movimento social. Nesse sentido, a direita está na frente. Eles
estão se organizando, vão fazer institutos, vão fazer ações em vários
níveis da cultura.
A saída para o lulopetismo é começar de novo?É
reorganizar a esquerda nesse quadro contemporâneo, que não é mais
aquele que fundou o PT e deu a energia social para Lula. No momento, a
longa tradição de crise política brasileira produz um estado de transe.
Diferentemente de momentos revolucionários, em países centrais e
desenvolvidos, há uma fragmentação das vozes, uma fragmentação da
leitura da realidade. O resultado dessas crises políticas muitas vezes
tende a ser regressivo. Em vez de ser uma revolução progressista, é
conservadora.
Esse seria o fato novo dessa crise?Esse é o estado de transe do Brasil. Essa crise atualiza o transe. É aquilo que Glauber Rocha viu no Terra em Transe.
Vozes soltas, que não se encontram. Por causa da estabilidade da nova
democracia, esse transe tende a ser incorporado em um processo novo. Uma
certa estabilidade deve permanecer quando o pacto político e a falta de
integridade simbólica nacional explodem todos os vínculos. Foi o que
aconteceu agora. Todos os vínculos foram explodidos. A própria direita
que está na rua são muitas direitas. Estamos no velho transe brasileiro.
Talvez a novidade seja uma integridade institucional, que permita
atravessar o processo.
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Fonte: http://brasileiros.com.br/2016/04/todos-os-vinculos-foram-explodidos/