Na
Paróquia São Pedro, na Capital, o vigário Tarcísio Scherer lamenta:
"As
igrejas enchiam duas, três vezes no mesmo dia.
Era feio não expressar
publicamente a fé"
Foto:
Carlos Macedo / Agencia RBS
Perto de metade da população brasileira já não se considera rebanho do papa; grande parte de quem ainda é filiado à Igreja Católica não pratica - e mal conhece - a religião
Pedro
Álvares Cabral ordenou que se erguesse um altar na praia da Coroa
Vermelha, convocou seus capitães a passar das caravelas para batéis e
desembarcou na faixa de areia. Era um domingo, dia do Senhor. Sob a
bandeira de Cristo, cercado pela exuberante vegetação tropical, o frade
franciscano Henrique Soares de Coimbra pregou o Evangelho, falou da cruz
e da nova terra na qual ela acabara de chegar e entoou missa – a
primeira celebrada nesta parte do mundo. Era 26 de abril de 1500. O
Brasil nascia ali, sob a égide da Igreja Católica.
Durante a
maior parte dos cinco séculos seguintes, o país e a religião
permaneceriam indissociáveis. Como a licença papal concedida aos
portugueses para explorar o Novo Mundo estava condicionada à expansão da
fé, colonização e evangelização confundiam-se. Com o conquistador,
vinha o padre. O amálgama entre Brasil e catolicismo foi tal que, até a
proclamação da República, em 1889, Estado e Igreja mantiveram-se
fundidos no regime conhecido como padroado.
O país se fez ao
redor de igrejas construídas na praça central de cada cidade ou
vilarejo, aprendeu as primeiras letras em escolas geridas por padres e
freiras, formou seu imaginário escutando as histórias dos personagens do
Antigo e do Novo Testamento, construiu toda uma cultura baseada no
alicerce dos valores católicos. Em 1940, meio século após a separação
entre Igreja e Estado, 95% dos brasileiros se declaravam seguidores do
Papa.
Agora, passados 516 anos do primeiro domingo de missa, esse
país não existe mais. A maior nação católica do mundo já não é tão
católica assim. Pela primeira vez na história, talvez já nem se possa
mais dizer que o Brasil é um país católico.Essa é uma transformação
significativa, que vem se anunciando nas estatísticas há mais de 40
anos. Durante esse período, a proporção de membros da Igreja na
população despenca cerca de 10 pontos percentuais a cada década. Em
1980, eles ainda eram 89%. Passaram rapidamente a 83,3% (1991), 73,6%
(2000) e 64,6% (2010). O próximo Censo ocorre apenas daqui a quatro
anos, mas especialistas acreditam que ele vai flagrar a continuidade
dessa tendência – a dúvida é apenas quanto ao tamanho do tombo.
Algumas
pesquisas recentes sugerem que pode ser robusto e que a maioria
católica possa estar ameaçada. O Datafolha, que mede a religiosidade do
brasileiro desde 1994, detectou apenas 57% de católicos em 2013 – no
levantamento anterior, em 2010, o índice foi de 63%, quase igual ao do
Censo. Na avaliação do Pew Research Center, uma instituição
norte-americana, o declínio se confirma, mas em ritmo menos alucinante:
em 2014, 81% dos brasileiros diziam ter sido criados como católicos, mas
só 61% afirmavam ser católicos.As pesquisas que chamam mais atenção e
que permitem prever um Brasil não-católico são aquelas centradas nas
faixas etárias mais baixas – grupos que serão os brasileiros de amanhã e
sob cuja orientação vai ser moldada a religiosidade das próximas
gerações. Para a maior parte desses jovens, a igreja apostólica romana
dos seus pais e avós significa pouco. Levantamento feito três anos atrás
pelo Instituto Data Popular apontou que só 44% dos brasileiros de 16 a
24 anos definiam-se como católicos. Em alguns estratos, há indícios de
que os crentes sejam ainda mais minoritários. Em 2015, a Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) realizou uma
pesquisa, em todas as unidades da federação, com pessoas de 18 a 34
anos. A amostra não refletia o perfil exato do brasileiro, privilegiando
pessoas de classes B e C e com instrução acima da média. Mesmo com esse
reparo, o dado espanta: só 34,3% disseram seguir o catolicismo.
O
bispo auxiliar de Porto Alegre Leomar Antônio Brustolin, que coordena a
pós-graduação em Teologia da PUCRS, reconhece: o Brasil já não pode
mais ser definido como um país católico. Ele avalia o encolhimento do
rebanho como parte de algo mais amplo, um enfraquecimento dos valores
cristãos.
– Temos feito há anos essa reflexão na Igreja Católica.
Constata-se, e essa é inclusive a posição da CNBB (Conferência Nacional
dos Bispos dos Brasil), que vivemos numa sociedade pós-cristã.
Permanecem, por exemplo, os feriados nas datas do cristianismo, mas eles
não têm mais o mesmo significado e a mesma vivência – diz o bispo, que
relata ter provocado controvérsia, durante uma celebração de Corpus
Christi, por defender a ideia de que certos feriados católicos deveriam
ser revistos no Brasil, uma vez que seu sentido se perdeu para grande
parte da população. – Quando o nosso pai morre, a gente não continua
celebrando o aniversário dele – compara.
Os jovens guardiões
Na
arquidiocese de Porto Alegre, onde Brustolin atua, dados sobre a
administração dos sacramentos oferecem um vislumbre da "descatolização"
em curso. Segundo a edição de 2015 do guia do arcebispado, a quantidade
de batizados, primeiras comunhões, crismas e casamentos nos 29
municípios da jurisdição é pouco expressiva e, além disso, recuou de
forma acelerada. Em 2008, foram batizadas 26,8 mil crianças. Mas o
número diminui ano após ano, até chegar à marca dos 20,8 mil em 2013. No
mesmo período de apenas seis anos, verificaram-se quedas ainda maiores
na primeira eucaristia (de 14,9 mil para 8,2 mil), nas crismas (de 7,6
mil para 4,8 mil) e até nos casamentos (de 3,1 mil para 1,8 mil).
Quando
as pessoas deixam de ser batizadas, de fazer a catequese e de se
crismar, corre-se o risco de uma ruptura cultural e sociológica. Até uma
ou duas gerações atrás, ser brasileiro significava, em larga medida,
crescer em um lar decorado com imagens de Cristo e dos santos, ter uma
avó ou tia devota que exigia a presença semanal na missa, absorver uma
série de costumes, superstições e narrativas de origem católica e ter
nos sacramentos uma espécie de formação obrigatória. Os referenciais de
um indivíduo tinham origem nesse contexto religioso. No momento em que a
igreja saiu de dentro das casas e em que as pessoas saíram de dentro
das igrejas, esses referenciais se esmaecem. É mais ou menos como se, na
Grécia Antiga, os helenos deixassem de conhecer sua mitologia.
Essa
realidade aparece com frequência diante de Deonira Viganó La Rosa, 75
anos, que há três décadas coordena encontros para formação de casais
decididos a celebrar o matrimônio na igreja. No passado, diz ela, esses
cursos tinham como foco os ensinamentos de biologia humana, de métodos
anticoncepcionais e de economia doméstica. Na atualidade, quando em
geral os noivos já vivem juntos e já têm experiência sexual, tais
tópicos perderam a razão. O que antes era desnecessário, falar sobre
princípios fundamentais do cristianismo, passou para o primeiro plano.
–
Quase sempre, esses casais têm formação superior, porque os pobres não
casam na Igreja. Moram juntos e, quando decidem ter filhos, resolvem
casar. Pensam que o casamento na igreja é uma bênção. Não desmerecemos,
mas explicamos que não é isso, fazemos compreenderem que é uma opção
mútua de amar e respeitar pela vida toda. Ele dizem que nunca vão à
missa. Perguntamos: o que vocês acham que é ser cristão? Quem é Jesus
Cristo? Quais são os mandamentos que ele trouxe? Daí, a gente se choca.
Eles não sabem – conta Deonira.
A abordagem de Deonira, além de
falar do Evangelho, consiste em argumentar que, mesmo estando afastados
da Igreja, os noivos são cristãos, porque compartilham dos valores
trazidos por Jesus.
– Eles chegam para a formação amedrontados,
acham que vai ter um padre passando moral e fazendo proibições. Essa é a
imagem que as pessoas têm da Igreja, uma imagem doutrinária. Veem a
Igreja como uma coisa arcaica. Eu digo que, toda vez que amam o próximo,
eles estão sendo católicos – afirma.
Essa forma de pensar não é
consensual. Se Deonira entende que mesmo aqueles que nutrem dúvidas
sobre a própria ligação com a Igreja podem se considerar católicos, caso
compartilhem de determinados valores, muitas figuras dentro da
hierarquia eclesiástica apresentam um ponto de vista oposto: o de que
grande parte dos que ainda afirmam ser católicos, no Censo e nas
pesquisas, na verdade não o são. O padre Leandro Chiarello, pároco da
Igreja do Rosário e professor da PUCRS, fornece um exemplo:
–
Vinte ou 30 anos atrás, a pessoa que se divorciava sofria restrições na
família e na sociedade. Hoje, quem sofre a restrição social é quem está
casado. Quando a pessoa diz que está casada há 20 anos, a reação dos
outros é de espanto. E o cara ainda acha necessário acrescentar: "E
casado com a mesma mulher". Existe uma contradição entre teoria e
prática. Se tu perguntares qual religião segue, a pessoa responde: "Sou
católico". Mas ela não vai à missa, não se compromete com a comunidade,
não se envolve. Dos 100 milhões de brasileiros que se dizem católicos,
muitos não levam a sério os ensinamentos de Cristo e da Igreja. Na época
em que 85% das pessoas se diziam católicas no país, o cardeal Aloísio
Lorscheider costumava usar uma frase interessante: "Na verdade,
católicos mesmo são só 6%".
O fenômeno mencionado por Chiarello é
algo já documentado em uma série de pesquisas. Elas mostram que a
quantidade minguante de brasileiros que se define como católica expressa
opiniões e crenças frontalmente contrárias à doutrina. Em 2011, como
parte de seu mestrado em Teologia, Edson Frizzo entrevistou 1.104 alunos
de Humanismo e Cultura Religiosa, disciplina obrigatória nos cursos de
graduação da PUCRS. A maior fatia (61,2%) definia-se como católica, mas a
crença era de fachada. Apenas 19,2% acreditavam na ressurreição, menos
do que os crentes na encarnação (44%). No que dizia respeito a valores,
revelou-se um festival de anticatolicismo: os estudantes eram a favor do
divórcio (90,9%), da eutanásia (64,1%), do aborto (56,6%), da pena de
morte (50,7%), do controle artificial de natalidade (72%), do sexo antes
do casamento (92,9%) e da união homossexual (52,5%).
– A doutrina
católica não mudou, continua a mesma. Mas as pessoas começaram a pensar
diferente. Virou comum dizer: "Sou católico, mas em tal questão sou
contra a Igreja" – observa Frizzo.
Ele atua no Curso de Liderança
Juvenil (CLJ), um dos grupos de jovens mais importantes da estrutura
católica, e observa que está cada vez mais difícil arrebanhar – nas
escolas e nas famílias – gente interessada em participar:
– Em
paróquias nas quais, algum tempo atrás, teríamos seis ou sete jovens
entrando por semestre, agora são três ou quatro. Hoje eles têm outras
ofertas, têm o shopping, a praia, a praça, os amigos, a diversão. Parece
que a Igreja vai na contramão da modernidade. Alguns chegam sem a
primeira comunhão, sem a crisma. Estão meio perdidos. O que sabem de
Jesus é só o que viram em filmes.
Mariana Endres, 20 anos, sente-se discriminada na faculdade: "É muito difícil falar em Deus. Todo mundo diz que é ateu"
Foto: Mateus Bruxel / Agencia RBS
Uma
dificuldade adicional é que os identificados com a Igreja passaram a
ser vistos como E.T.s. Segundo Frizzo, os jovens católicos relatam ser
alvo de preconceito, de piada, de bullying. Alguns se retraem e preferem
esconder a própria fé, para não serem vistos como criaturas esquisitas.
Estudante de Pedagogia na UFRGS e vice-presidente do CLJ no vicariato
de Porto Alegre, Mariana Endres, 20 anos, considera-se um pouco isolada
entre os colegas de faculdade. Confessa sentir alguma discriminação por
ser religiosa e conta que, com frequência, embarca em discussões durante
as aulas – como quando algum professor defende a legalização do aborto.
Uma
das questões que geram incredulidade entre seus colegas é sua decisão
de não ter relações sexuais antes do casamento. Ela namora um rapaz há
quatro anos. "Como assim? Tu não vais experimentar? Como é que sabes que
depois vais gostar?", questionam os colegas. Mariana não cala o que
pensa:
– Defendo valores, defendo a castidade, defendo a Igreja e
me oponho ao casamento gay em uma sala de aula onde todo mundo pensa o
contrário. Como é que não vou defender as coisas que mais amo? Mas é
muito difícil falar em Deus. Na faculdade, todo mundo diz que é ateu. É
como se eu vivesse em dois mundos. Um durante a semana, entre pessoas
sem Deus, e outro nos fins de semana, que dedico à Igreja.
No caso
do estudante de Direito da UFRGS Michael Jacques, 22, o pensamento
diferente também está dentro de casa. Vindo de uma família sem prática
religiosa, não foi batizado, não fez a primeira comunhão e nunca
frequentou missa. Aos 18 anos, amigos do colégio convidaram-no a fazer
parte do CLJ. Ele resistiu, mas acabou aceitando, motivado pela
curiosidade e pela amizade. Foi conquistado. Como já era adulto, teve de
fazer a catequese junto a uma gurizada de 13, 14 anos.
– Eu tive de partir do zero, porque não sabia praticamente nada – conta.
Na faculdade, Jacques não esconde seu catolicismo, mas também não costuma se posicionar:
–
Em uma turma de 35 alunos, só uns cinco praticam. Acredito que, se eu
falasse sobre religião, seria mal recebido. As pessoas estão muito
apegadas a ideias materialistas. Negam a realidade de Deus.
Michael Jacques, 22 anos, sente-se isolado na universidade: "Em uma turma de 35 alunos, só uns cinco praticam o catolicismo"
Foto: Carlos Macedo / Agencia RBS
Diante
desses jovens que crescem em famílias sem prática religiosa e dos
noivos que procuram a bênção sem saber direito quem é Jesus, a Igreja se
vê forçada a voltar ao be-a-bá. Na arquidiocese de Porto Alegre, está
em andamento uma iniciativa para duplicar o tempo de duração da
catequese e do curso de preparação para a crisma. A formação total, de
dois anos, passará para quatro. O bispo Brustolin observa:
–
Em uma sociedade na qual a maioria é cristã, basta nascer que você vai
aprendendo tudo naturalmente, olhando para o pai, para a mãe e para os
irmãos. Agora é como se alguém chegasse de uma outra cultura, como a
japonesa, e dissesse: eu gostaria de ser cristão. Tem de começar da
base.
O próprio diálogo entre gerações ou com o passado pode se
tornar difícil. A laicização significa, por exemplo, que um brasileiro
deste início de milênio provavelmente se sentirá em território estranho
quando percorrer os clássicos de nossa literatura. Tome-se Machado de
Assis, geralmente considerado um ateu niilista. Mesmo que desprovido de
fé, ele estava mergulhado em um cultura católica, que transparecia em
cada uma de suas páginas. Esse imaginário era compartilhado com seus
contemporâneos, que não teriam dificuldade para compreender um parágrafo
como o seguinte, do Dom Casmurro: "Como Abraão, minha mãe levou o filho
ao monte da Visão, e mais a lenha para o holocausto, o fogo e o cutelo.
E atou Isaac em cima do feixe de lenha, pegou do cutelo e levantou-o ao
alto. No momento de fazê-lo cair, ouve a voz do anjo que lhe ordena da
parte do Senhor: 'Não faças mal algum a teu filho; conheci que temes a
Deus'. Tal seria a esperança secreta de minha mãe. Capitu era
naturalmente o anjo da Escritura". Ao leitor médio de hoje, essa
passagem pode parecer impenetrável.
As tradições abandonadas
A
mudança de pontos de referência e de mentalidade é algo que pode ser
verificado dentro das famílias brasileiras. O padre Attilio Hartmann,
diretor da Livraria Padre Reus, é um entre 11 irmãos. Sete deles
abraçaram a vida religiosa: dois como sacerdotes e cinco como freiras.
Na geração seguinte, já não é possível encontrar tanta devoção na
família.
– Nem precisa fazer pesquisa para ver como mudou. Para
meus irmãos que têm filhos, é muito difícil fazê-los ir à missa. São
gente muito boa, mas a religião não fala para eles – diz Attilio.
Entre
os irmãos de Attilio que enfrentam essa dificuldade está Alice Hartmann
Cornelius, 71 anos, ministra da eucaristia na paróquia de São Pedro da
Serra, município a meio caminho entre Montenegro e Bento Gonçalves. Ela
tem quatro filhos. Sonhava que um deles se tornasse padre, e de fato
dois entraram para o seminário – mas acabaram desistindo. Hoje, a mãe já
ficaria faceira se os filhos fossem católicos praticantes:
– Eles
só vão à Igreja uma vez que outra. São adultos, então não posso
obrigá-los. Fico triste, às vezes. Digo a eles que de vez em quando é
bom ir à missa. Acredito que um dia eles vão acordar.
Irmã de padre, Alice Hartmann, 71 anos, despede-se dos filhos e vai sozinha à missa na paróquia de São Pedro da Serra
Foto: Carlos Macedo / Agencia RBS
Um
dos filhos que estiveram para realizar o sonho de Alice é o eletricista
João Rodrigo Cornelius, 38 anos. Aos 13, ele ingressou no Seminário de
Gravataí, em regime de internato. Estava empenhado em virar padre. Após
três anos, concluído o Ensino Fundamental, transferiu-se para o
Seminário de Bom Princípio. Lá, encontrou uma realidade bem diferente. A
vocação não resistiu.–
Em Bom Princípio, o seminário era no
centro da cidade. Comecei a sair no fim de semana, a jogar futebol com
outros jovens, a conviver com pessoas diferentes, a ter contato com
outras formas de pensamento. Pedi para sair do seminário por um ano e
não voltei mais – conta João Rodrigo, que se define como católico, mas
diz não frequentar muito a igreja.
O outro ex-seminarista da
família Hartmann é o irmão mais velho, o representante comercial André
Francisco Cornelius, 41, que passou dois anos estudando para ser padre,
antes de mudar de ideia. Ele também diz que continua a se considerar
católico, mas nem isso, nem a formação como seminarista convenceu-o da
importância de casar na Igreja. Ele e a mulher, pais de duas crianças,
não tiveram matrimônio religioso.
– Isso é comum. O anormal hoje é casar na Igreja – afirma André.
Dotada
de apenas 3 mil habitantes, São Pedro da Serra é dominada por uma
igreja imponente, com cerca de 600 lugares, capaz de acolher um quinto
da população local. Mas não é algo que costume acontecer. Alice, que
comparece a todas as missas, queixa-se de que o templo está cada vez
mais vazio:
– A igreja é quase uma catedral. Quando eu era
criança, havia missa todo dia, sempre lotada. Hoje, é apenas na quarta,
no sábado e no domingo, mas só enche no Domingo de Ramos, na Semana
Santa e no Natal. No resto do ano, é muito, muito espaço vazio. Eu me
entristeço bastante.
Às 19h de uma quarta-feira do final de março,
ZH acompanhou Alice à missa. A idosa despediu-se dos quatro filhos, que
ficaram em casa, e fez a pé o curto caminho até o templo. Na imensa
nave, encontrou o padre, Isaías Colling, a concidadã responsável por
tocar o órgão e mais oito fiéis, nenhum jovem entre eles. Todos se
aglomeraram junto ao altar, deixando atrás de si um mar de bancos
desocupados. No final da celebração, uma devota entrou, esbaforida. Não
chegara no horário porque estava jogando vôlei.
O sacerdote reconhece que a sensação de rezar em uma igreja quase vazia é incômoda:
–
A gente fica se questionando: será que preciso melhorar? Será que a
mensagem não está boa? Será que o problema é o horário? Mas eu sempre
acho que não posso trabalhar pensando nos que não vêm. Tenho de focar
nos que vêm, mesmo que sejam poucos.
Às
19h de uma quarta-feira do final de março, Alice foi à missa e, na
imensa nave, encontrou o padre, Isaías Colling,
a concidadã responsável
por tocar o órgão e mais oito fiéis, nenhum jovem entre eles
Foto: Carlos Macedo / Agencia RBS
Colling tem 27 anos, foi ordenado há um ano e meio e está há três meses à frente da paróquia.
Se
no passado qualquer um que decidisse ser padre tornava-se venerável de
imediato, no caso dele, que fez a formação já neste terceiro milênio, a
experiência foi distinta. Sua escolha era questionada a todo momento por
pessoas de sua geração, especialmente a opção pela castidade:
– Quando optei por ser padre, parecia que o mundo estava em um caminho e eu seguia na contramão.
As migrações da fé
A
mudança dos ares religiosos em São Pedro da Serra permite entrever que,
quando se fala em "descatolização" do Brasil, há uma série de facetas a
examinar. Uma delas, bastante evidente, é a da volatilidade do
catolicismo nacional. Para muitos, declarar-se católico parece ter sido
uma forma rebuscada de indiferença religiosa, a resposta a uma pressão
social. Todo mundo ia à missa, observa o padre Attilio, mas era em
grande parte por imposição. Surge assim essa figura insólita e tão
brasileira, o "católico não-praticante", que ninguém sabe quantificar.
É
esse universo não-praticante, supõe-se, que responde por uma parte
muito expressiva das pessoas que deixaram de se considerar católicas.
Há, nesse particular, pelo menos dois fenômenos. De um lado, encontra-se
a perda de fiéis para outras agremiações, especialmente pentecostais e
neopentecostais, um tema já estudado e explorado à exaustão. O segmento
evangélico foi o que mais cresceu no país no passado recente. Em 1991,
abrangia 9% da população. Em 2010, 22,2%.
A maior parte desses
adeptos saiu das hostes papistas. Segundo dados do Pew Research Center,
54% dos protestantes brasileiros foram originalmente criados como
católicos. Nesse caso, o afastamento do catolicismo não implica saída da
esfera cristã. Mas a Igreja de Roma também perdeu adeptos para a
descrença total ou para a simples desvinculação de qualquer instituição.
Os que se declaram sem religião passaram de 5% para 8% em duas décadas.
Na pesquisa da PUCRS realizada no ano passado entre jovens, o ateísmo, o
agnosticismo e a fé sem religião somaram 32,14% das respostas.
– A
descatolização é, em grande medida, uma desdogmatização. Esse é o
grande fenômeno. A questão do "é assim e pronto" não funciona mais com
as novas gerações. Esse pessoal pergunta muito "por quê". Para os jovens
de hoje, por exemplo, a família é um jogo de montar, é uma família
Lego, mesmo que isso contrarie a doutrina religiosa. É por isso que há
tanta gente dizendo que tem fé, mas não religião – comenta Ilton
Teitelbaum, coordenador da pesquisa.
A transformação cultural
também abriu caminho para a expansão dos que se declaram ateus – um tipo
de posicionamento que até pouco tempo atrás era tabu no Brasil. Em
2008, o engenheiro civil Daniel Sottomaior, curitibano radicado em São
Paulo, descobriu comunidades de ateus na internet e fundou a Associação
Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), que combate a discriminação e o
preconceito contra quem não tem fé. No final de 2010, a agremiação
tinha 1,7 mil sócios. Passados pouco mais de cinco anos, tem 10 vezes
mais: 17,4 mil. O Rio Grande do Sul se destaca. Apesar de responder por
5,5% da população brasileira, abriga 8,4% dos filiados à Atea. A página
da entidade no Facebook acumula 485 mil fãs.
– Nosso crescimento
foi enorme. As pessoas se sentem mais à vontade para se declarar
ateias. Mas estão saindo do armário lentamente. Uma coisa é você se
associar no recôndito do seu quarto. Outra coisa é vestir a camiseta.
Vemos isso na nossa página do Facebook. Nas postagens, as pessoas dizem
que gostariam muito de compartilhar, mas que não vão fazer isso porque
vão ter problemas, porque a família é religiosa – observa Sottomaior.
Na
avaliação dele, no grupo majoritário que se declara católico dentro da
população brasileira há uma proporção considerável de pessoas que já não
o são. É desse contingente que saem os que optam pelo caminho do fervor
evangélico pentecostal ou, ao contrário, pela rejeição à fé ou pelo
menos à fé institucionalizada. O teólogo Faustino Teixeira, do programa
de pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal Juiz de
Fora (MG), assinala que o catolicismo virou uma espécie de doador
universal, tanto para outras igrejas como para os sem religião. Ele vê
esse fenômeno como parte de "um desencanto com as formas tradicionais de
pertença religiosa e um aumento da sede espiritual, ainda que não
vinculada a uma tradição específica".
– Os dados do último censo
mostram com clareza que se fragiliza essa imagem de um Brasil
profundamente católico. O que ocorre, como diz com acerto o antropólogo
Pierre Sanchis, é que o catolicismo deixou de ser a religião dos
brasileiros para se tornar a religião de boa parte dos brasileiros, mas,
mesmo assim, estamos diante de um fenômeno impressionante de queda na
declaração de crença dos católicos. Há por todo lado uma certa
desafeição às instituições religiosas tradicionais, o que vem engrossar o
caldo dos "sem religião", que hoje representam a terceira declaração de
"crença" no país, em torno de 8% – relata Faustino.
Para o
sociólogo da religião Ricardo Mariano, professor da Universidade de São
Paulo (USP), as migrações da fé ocorridas nas últimas décadas, com
redução da proporção de católicos, podem ser vistas no contexto de uma
concretização da liberdade religiosa, que, apesar de garantida desde o
final do século 19 no país, só materializou-se de fato mais de 50 anos
depois.
– Com o advento da República, ocorreu a formalização legal
da liberdade religiosa. Mas ela não foi conquistada de imediato. A
força da Igreja Católica era muito grande. Imprensa, delegacias de
polícia, juízes, intelectuais e uma série de outras categorias, além do
clero, criavam dificuldades para os outros credos, que foram
discriminados e perseguidos. Nos anos 1940, 1950, 1960, muitos pastores
pentecostais eram presos. Foi só na segunda metade do século 20,
sobretudo a partir dos anos 1980, que a liberdade religiosa passou a
vigorar na realidade, e não apenas na lei – historia Mariano.
No
novo cenário de pluralismo, observa o professor, é natural que as
pessoas façam algo que não era tão comum no passado: refletir sobre qual
é a sua religião e tomar uma decisão diante das opções disponíveis. E
uma dessas decisões, pode ser, naturalmente, não ter crença. Outra
consequência do pluralismo seria a presente amplificação de conflitos,
controvérsias e debates públicos envolvendo questões como feminismo,
orientação sexual, aborto e direitos das minorias. Mariano complementa:
–
Diferentes concepções de mundo existentes em uma sociedade tendem a
gerar maior conflito. Hoje em dia, nem os evangélicos, nem os católicos,
nem os representantes das minorias têm força suficiente para vencer as
disputas no parlamento. Cada vez mais, a luta se judicializa. É por isso
que a união de pessoas do mesmo sexo foi decidida no STF (Supremo
Tribunal Federal). No parlamento, nenhum lado prevalece.
Em um
cenário de pluralismo e secularização crescentes, vale evocar a
transformação tremenda que ocorreu em mentalidade, valores,
comportamentos e ética como consequência da transição ocorrida entre o
mundo pagão da Antiguidade e o mundo cristão que emergiu de suas ruínas.
Quando mudaram as crenças, mudaram também o homem e a sociedade. Se,
como define o bispo Brustolin, realmente ingressamos em uma fase
"pós-cristã", isso significa que a sociedade e o homem virarão outra
coisa, mais uma vez?
– O conjunto de valores com os quais a
religião trabalha tem um impacto sobre a sociedade. Quando não queremos
mais o cristianismo como norteador da experiência humana, esses valores
se perdem. O que os substitui? Que projeto vem no lugar? – indaga
Brustolin.
O bispo aponta que algumas instituições basilares
nasceram no seio do catolicismo. Cita os hospitais, uma invenção
católica, que na origem eram o lugar para hospedar os fracos e os
doentes – e que ainda hoje, no Brasil, são em grande quantidade
entidades vinculadas à Igreja. A universidade seria um caso parecido:
surgiu no período medieval como um espaço essencialmente católico. Para
Brustolin, quando a sociedade brasileira deixa de se identificar com a
religião, essas instituições permanecem, mas perdem alguma coisa da sua
essência:
– Elas podem ficar reféns de outros projetos, que não a
humanização. Eu posso ter uma universidade, um hospital, uma escola que
não estão mais preocupados em humanizar a sociedade. Elas passam a ter
outro sentido, que pode ser o mercado, pode ser a ideologia. Até mesmo o
conceito de pessoa pode ser afetado, porque o que temos hoje nasceu das
primeiras disputas cristológicas, lá nos séculos 3 e 4.
----------
Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/noticia/2016/04/ser-brasileiro-e-ser-catolico-nao-e-mais-a-mesma-coisa-quais-serao-os-impactos-desta-mudanca-5762629.html?utm_source=ZHRecomenda&utm_medium=E-mail&utm_term=Link02&utm_content=ZHRecomenda&utm_campaign=ZHRecomenda46#
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