Armindo Trevisan*
A última edição deste caderno trouxe uma exemplar reportagem
investigativa sobre um dos fenômenos de sociologia religiosa mais
impressionantes do Brasil: a “descatolização”**. A introdução destaca bem
seu conteúdo: “Nascido à sombra da cruz, o país construiu sua identidade
e seus valores sobre o alicerce da Santa Igreja Romana. Ser brasileiro e
ser católico era praticamente a mesma coisa. Não é mais. Já não se
considera rebanho do Papa – e dos que ainda se filiam à religião, grande
parte não a pratica e mal a conhece. É uma mudança cultural profunda
com potencial para reconfigurar a própria alma da nação”. Tal texto pode
ser comparado a uma das tantas interpretações de ecografias, nas quais
os especialistas explicam aos clínicos que as solicitam os problemas que
as imagens detectam.
Abramos o Evangelho antes de comentar a reportagem. Podemos ser surpreendidos por Marcos: “Um profeta só é desprezado na sua pátria. Jesus não pôde ali fazer milagre algum. Apenas curou alguns enfermos, impondo-lhes as mãos. Jesus estava admirado com a falta de fé daquela gente”. (Marcos 6: 5-6).
Quem teria imaginado uma cena dessas? O próprio Jesus mostrar-se admirado da incredulidade de seus concidadãos. Que rosto, então, nos mostraria se viesse ao Brasil, gloriosamente catequizado por homens como Anchieta e Nóbrega? Um Brasil “descatolizado”, isto é, não só esquecido de suas origens, mas também voltado contra elas?
Iniciemos nosso comentário aplaudindo o repórter. Ele fez um trabalho profissional verdadeiramente sério. Primeiro, tentou um mapeamento da situação. A seguir, buscou depoimentos elucidativos com pessoas como Dom Leomar Antonio Brustolin, bispo auxiliar de Dom Jaime Spengler, Arcebispo de Porto Alegre, o pároco da Igreja do Rosário e professor da PUCRS Leandro Chiarello e sociólogos. Temos a impressão de que esta foi a primeira vez em que as autoridades eclesiásticas admitiram, sem meias palavras, fatos tão chocantes.
Ignoremos slogans frívolos. Não falemos em “Morte do Catolicismo”. Foi insensato, no passado, falar em “Morte de Deus”. Tal euforia só teria sentido na boca de um único homem, escritor e poeta genial, mas, em linguagem bíblica, insensato: Nietzsche.
Mais rasteiramente, indaguemos: a que Catolicismo a reportagem pensa referir-se? É óbvio que o país começou muito cedo a receber o anúncio da Boa Nova, e que seus primeiros pregadores não só cumpriram sua missão religiosa, como fundaram nossa cultura literária. Ao próprio Padre Vieira, um dos maiores estilistas da língua, alguém lhe negará estatura de homem probo e de defensor dos índios? Todos apreciamos suas obras-primas. No entanto, nem o mais apaixonado leitor de Vieira sustentará que tais sermões eram adequados à evangelização, àquilo que modernamente se chama com certo pedantismo compreensível, o Querigma. Talvez as peças oratórias de Vieira chegassem a comover os cultos da época. Mas eram tão complexas e sutis que não se prestavam a uma catequese. Podemos supor que, em encontros não oficiais, o Padre Vieira usasse outro tom, e se servisse de formas coloquiais. Que Vieira fosse um religioso autêntico, quem o negará? De resto, os sermões do Padre Vieira eram uma sorte de shows. Duravam de duas a três horas. Havia neles qualquer coisa de um espetáculo moderno, destinado a pessoas que pretendem divertir-se.
Que Brasil existia em 1500? Um país de índios recém-saídos do Neolítico, iniciados na fé cristã com métodos sofisticados de uma Europa barroca. Tais métodos eram inadaptados à mentalidade de seres frequentemente igualados a irracionais e, para cúmulo de infelicidade, escravizados. Com o decorrer do tempo, sobrevieram novos evangelizadores, que fundaram no Nordeste conventos construídos, material e ideologicamente, à imagem e semelhança dos conventos europeus. Uma vez que a atração principal era o maravilhamento, isto é, a atitude de pasmo e deleite perante o estranho e o exótico, a decoração dos templos impunha ornamentação, iconografia e, sobretudo, ouro nos altares.
A mitologia indígena absorveu parcelas do culto cristão. De outra parte, os escravos, importados da África, que de lá traziam no bojo do inconsciente um baú de tradições tribais, difundiram no Brasil danças e máscaras. Do que resultou um pot-pourri mitológico. Pode-se até dizer: o melhor das tradições africanas mesclou-se ao melhor da liturgia católica! Eis porque o folclore afro-brasileiro é cativante. De tais encontros surgiu um sincretismo, que caracteriza quase toda a religiosidade nacional, cujos desdobramentos modernos e pós-modernos estendem sua rede capilar aos nossos fenômenos sociais.
Com a proclamação da Independência, a influência de tais culturas nativas atenuou-se, acentuando-se a cultura lusitana, e, após ela, a europeia. Talvez nos seja permitido afirmar que, a partir da Independência, se criou uma pré-identidade brasileira. É a essa “identidade” que talvez aludem os repórteres. Sim, alguma “identidade” existia no embrião de sociedade que se formou, mas faltou tempo e assimilação para o país levá-la à maturidade. A identidade religiosa, até recentemente, foi uma “identidade” de fachada, resultado de uma porosidade parcial dos três mundos: o imaginário do índio, o imaginário do africano e o imaginário do português. A esse caldo juntaram-se, posteriormente, as contribuições das imigrações alemã, italiana, judaica, sírio-libanesa e outras.
Alguém definiu-nos como “um milagre sociológico”. Dizem tais otimistas que mantivemos sem rasgões nosso tecido cultural formado nos primórdios. Um milagre que, não obstante, explodiu para fora, centrifugamente, cuja polpa interior está à procura de si, de seu ser original. Somos um povo que possui unidade de língua, e alguma unidade de hábitos sociais. A verdade é que somos brasileiros sui-generis, com uma imaginação sempre dependente do que lhe vem de fora. Mesmo no âmago do Brasil, perseguimos uma outra identidade, que se sobreponha às identidades regionais. Nortistas, nordestinos, paulistas e gente do Sul, o que nos une, de verdade, é a língua, a mãe desse milagre, reforçada por outros fatores como uma aparente religião comum.
Verificamos que a religião, abraçada pelo povo com seu instinto inclinado ao “sobrenatural” e ao maravilhoso, se mostra frágil. Temos uma religião não pensada, nem amada no que concerne à sua intimidade. Mas pensada e amada no que concerne aos seus ritos e às suas dimensões estetizantes.
Religião, mesmo? Precisamos enfrentar esse problema, ou, antes, esse mistério. Quem não via, já no passado, que era um ledo engano considerar o Brasil “o país mais católico do mundo”? Se a afirmação fosse verdadeira por culpa das estatísticas, caber-nos-ia um recorde: o de sermos os católicos mais distraídos e displicentes do planeta.
Manuel Bandeira, um dia, cansou-se de nossa tendência ao superficial: “Pegamos tudo pela rama”, dizia. Em termos religiosos, sua objeção não tem como ser refutada.
A “descatolização” começou a impor-se há muito tempo. Veio de uma semente caída num terreno onde os pássaros comiam as sementes, e os espinheiros não as deixavam crescer. Não acusemos os semeadores, que os houve excelentes, mas o terreno não estava na ocasião suficientemente preparado. O que acontece na atualidade é a desmontagem de uma máscara, uma simpática máscara: a de nossa religiosidade, que chamaríamos, com mais clareza, de maquiagem de nossa cordialidade.
Jesus, possivelmente, não só está admirado de nossa falta de fé, mas também de nossa inconsciência – e de nossa inconstância.
Ninguém nasce católico. Ser cristão não é assunto de biologia. Jesus deixou isso explícito ao conversar à noite com Nicodemos: “É preciso nascer de novo”. Nascer mediante uma adesão pessoal. Opção que supõe uma ética, inclusive política, definida in nuce pelo próprio Jesus. Ele que declarou que não viera suprimir o Decálogo, mas completá-lo. Ninguém, pois, está autorizado a modificá-lo. Quando o papa Francisco recusa como cristão o casamento entre homossexuais, não viola o mandamento do amor ao próximo; põe-lhe apenas os limites que o Evangelho trouxe à liberdade humana.
Não se trata só de algo histórico, mas também de algo sobrenatural. Eis porque o Papa chamou a atenção dos católicos para um fenômeno: o dos descasados. Há sentenças claras de Jesus sobre a vida matrimonial. O que preocupa o Papa é lembrar que uma fratura não pode distrair-nos do ideal sugerido. Ao invés de fixarmos nela nossa atenção, precisamos repará-la. Deixar os descasados privados dos sacramentos é impedir que a fratura seja reparada.
Há, sim, uma “descatolização” no Brasil! O melhor modo de dar-lhe uma resposta consiste em admiti-la. A partir daí, não caiamos no equívoco de substituí-la por uma nova “catolização”, gerada artificialmente nos laboratórios dos meios de comunicação. Não se atraem católicos identificando-os com torcedores de estádios e participantes de shows.
O Catolicismo é uma religião apaixonante, porém difícil. Ao referir-se às exigências de seu Evangelho, Jesus falava em “jugo”, embora declarando-o suave. Jugo, antigamente, tinha a ver com canga de bois, como explica o Dicionário Enciclopédico Bíblico, da Editora Vozes (1987): “É o pau da carruagem colocado na nuca dos animais de tração”. Jesus falava explicitamente em Cruz: “Quem quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz, e siga-me”.
Não se pode “ser católico” sem uma aceitação do próprio batismo e a aceitação de um código moral alicerçado no Evangelho. Noutros termos: sem assumir uma “cosmovisão” evangélica, objeto de escárnio de uma civilização permissiva. “Sereis desprezados em meu nome...”– quem se lembra?
Consta que Jesus dirigiu aos apóstolos uma pergunta insólita:
– Quereis também retirar-vos?
Pedro respondeu:
– A quem havemos de ir? Só tu tens palavras de Vida Eterna.
É a partir de tais pressupostos que o Brasil poderá reaproximar-se do Evangelho, e então tentar, pela primeira vez, a aventura de um Catolicismo de decisão pessoal.
Era previsível que a cenografia da sensibilidade nacional desabasse. O surpreendente é que tenha desabado por corrosão, tão silenciosamente e tão devagar, que o fenômeno deixou todo o mundo chateado. E decepcionado.
O leitor conhece eventualmente Ionesco e sabe que ele compôs uma curiosa peça de teatro, O Rinoceronte, sucesso nos anos 1960. É uma ficção que pode ser aplicada ao Catolicismo atual. Os católicos não podem deixar-se levar por brisas esotéricas ou ideológicas, que alimentam desejos de um rousseanismo polifacial. O Catolicismo oferece uma resposta específica. O católico, como o personagem Beranger de Ionesco, é obrigado a optar entre apresentar uma cara de católico, e um coração que quer ser católico, e uma máscara, das tantas que servem para bailes.
Abramos o Evangelho antes de comentar a reportagem. Podemos ser surpreendidos por Marcos: “Um profeta só é desprezado na sua pátria. Jesus não pôde ali fazer milagre algum. Apenas curou alguns enfermos, impondo-lhes as mãos. Jesus estava admirado com a falta de fé daquela gente”. (Marcos 6: 5-6).
Quem teria imaginado uma cena dessas? O próprio Jesus mostrar-se admirado da incredulidade de seus concidadãos. Que rosto, então, nos mostraria se viesse ao Brasil, gloriosamente catequizado por homens como Anchieta e Nóbrega? Um Brasil “descatolizado”, isto é, não só esquecido de suas origens, mas também voltado contra elas?
Iniciemos nosso comentário aplaudindo o repórter. Ele fez um trabalho profissional verdadeiramente sério. Primeiro, tentou um mapeamento da situação. A seguir, buscou depoimentos elucidativos com pessoas como Dom Leomar Antonio Brustolin, bispo auxiliar de Dom Jaime Spengler, Arcebispo de Porto Alegre, o pároco da Igreja do Rosário e professor da PUCRS Leandro Chiarello e sociólogos. Temos a impressão de que esta foi a primeira vez em que as autoridades eclesiásticas admitiram, sem meias palavras, fatos tão chocantes.
Ignoremos slogans frívolos. Não falemos em “Morte do Catolicismo”. Foi insensato, no passado, falar em “Morte de Deus”. Tal euforia só teria sentido na boca de um único homem, escritor e poeta genial, mas, em linguagem bíblica, insensato: Nietzsche.
Mais rasteiramente, indaguemos: a que Catolicismo a reportagem pensa referir-se? É óbvio que o país começou muito cedo a receber o anúncio da Boa Nova, e que seus primeiros pregadores não só cumpriram sua missão religiosa, como fundaram nossa cultura literária. Ao próprio Padre Vieira, um dos maiores estilistas da língua, alguém lhe negará estatura de homem probo e de defensor dos índios? Todos apreciamos suas obras-primas. No entanto, nem o mais apaixonado leitor de Vieira sustentará que tais sermões eram adequados à evangelização, àquilo que modernamente se chama com certo pedantismo compreensível, o Querigma. Talvez as peças oratórias de Vieira chegassem a comover os cultos da época. Mas eram tão complexas e sutis que não se prestavam a uma catequese. Podemos supor que, em encontros não oficiais, o Padre Vieira usasse outro tom, e se servisse de formas coloquiais. Que Vieira fosse um religioso autêntico, quem o negará? De resto, os sermões do Padre Vieira eram uma sorte de shows. Duravam de duas a três horas. Havia neles qualquer coisa de um espetáculo moderno, destinado a pessoas que pretendem divertir-se.
Que Brasil existia em 1500? Um país de índios recém-saídos do Neolítico, iniciados na fé cristã com métodos sofisticados de uma Europa barroca. Tais métodos eram inadaptados à mentalidade de seres frequentemente igualados a irracionais e, para cúmulo de infelicidade, escravizados. Com o decorrer do tempo, sobrevieram novos evangelizadores, que fundaram no Nordeste conventos construídos, material e ideologicamente, à imagem e semelhança dos conventos europeus. Uma vez que a atração principal era o maravilhamento, isto é, a atitude de pasmo e deleite perante o estranho e o exótico, a decoração dos templos impunha ornamentação, iconografia e, sobretudo, ouro nos altares.
A mitologia indígena absorveu parcelas do culto cristão. De outra parte, os escravos, importados da África, que de lá traziam no bojo do inconsciente um baú de tradições tribais, difundiram no Brasil danças e máscaras. Do que resultou um pot-pourri mitológico. Pode-se até dizer: o melhor das tradições africanas mesclou-se ao melhor da liturgia católica! Eis porque o folclore afro-brasileiro é cativante. De tais encontros surgiu um sincretismo, que caracteriza quase toda a religiosidade nacional, cujos desdobramentos modernos e pós-modernos estendem sua rede capilar aos nossos fenômenos sociais.
Com a proclamação da Independência, a influência de tais culturas nativas atenuou-se, acentuando-se a cultura lusitana, e, após ela, a europeia. Talvez nos seja permitido afirmar que, a partir da Independência, se criou uma pré-identidade brasileira. É a essa “identidade” que talvez aludem os repórteres. Sim, alguma “identidade” existia no embrião de sociedade que se formou, mas faltou tempo e assimilação para o país levá-la à maturidade. A identidade religiosa, até recentemente, foi uma “identidade” de fachada, resultado de uma porosidade parcial dos três mundos: o imaginário do índio, o imaginário do africano e o imaginário do português. A esse caldo juntaram-se, posteriormente, as contribuições das imigrações alemã, italiana, judaica, sírio-libanesa e outras.
Alguém definiu-nos como “um milagre sociológico”. Dizem tais otimistas que mantivemos sem rasgões nosso tecido cultural formado nos primórdios. Um milagre que, não obstante, explodiu para fora, centrifugamente, cuja polpa interior está à procura de si, de seu ser original. Somos um povo que possui unidade de língua, e alguma unidade de hábitos sociais. A verdade é que somos brasileiros sui-generis, com uma imaginação sempre dependente do que lhe vem de fora. Mesmo no âmago do Brasil, perseguimos uma outra identidade, que se sobreponha às identidades regionais. Nortistas, nordestinos, paulistas e gente do Sul, o que nos une, de verdade, é a língua, a mãe desse milagre, reforçada por outros fatores como uma aparente religião comum.
Verificamos que a religião, abraçada pelo povo com seu instinto inclinado ao “sobrenatural” e ao maravilhoso, se mostra frágil. Temos uma religião não pensada, nem amada no que concerne à sua intimidade. Mas pensada e amada no que concerne aos seus ritos e às suas dimensões estetizantes.
Religião, mesmo? Precisamos enfrentar esse problema, ou, antes, esse mistério. Quem não via, já no passado, que era um ledo engano considerar o Brasil “o país mais católico do mundo”? Se a afirmação fosse verdadeira por culpa das estatísticas, caber-nos-ia um recorde: o de sermos os católicos mais distraídos e displicentes do planeta.
Manuel Bandeira, um dia, cansou-se de nossa tendência ao superficial: “Pegamos tudo pela rama”, dizia. Em termos religiosos, sua objeção não tem como ser refutada.
A “descatolização” começou a impor-se há muito tempo. Veio de uma semente caída num terreno onde os pássaros comiam as sementes, e os espinheiros não as deixavam crescer. Não acusemos os semeadores, que os houve excelentes, mas o terreno não estava na ocasião suficientemente preparado. O que acontece na atualidade é a desmontagem de uma máscara, uma simpática máscara: a de nossa religiosidade, que chamaríamos, com mais clareza, de maquiagem de nossa cordialidade.
Jesus, possivelmente, não só está admirado de nossa falta de fé, mas também de nossa inconsciência – e de nossa inconstância.
Ninguém nasce católico. Ser cristão não é assunto de biologia. Jesus deixou isso explícito ao conversar à noite com Nicodemos: “É preciso nascer de novo”. Nascer mediante uma adesão pessoal. Opção que supõe uma ética, inclusive política, definida in nuce pelo próprio Jesus. Ele que declarou que não viera suprimir o Decálogo, mas completá-lo. Ninguém, pois, está autorizado a modificá-lo. Quando o papa Francisco recusa como cristão o casamento entre homossexuais, não viola o mandamento do amor ao próximo; põe-lhe apenas os limites que o Evangelho trouxe à liberdade humana.
Não se trata só de algo histórico, mas também de algo sobrenatural. Eis porque o Papa chamou a atenção dos católicos para um fenômeno: o dos descasados. Há sentenças claras de Jesus sobre a vida matrimonial. O que preocupa o Papa é lembrar que uma fratura não pode distrair-nos do ideal sugerido. Ao invés de fixarmos nela nossa atenção, precisamos repará-la. Deixar os descasados privados dos sacramentos é impedir que a fratura seja reparada.
Há, sim, uma “descatolização” no Brasil! O melhor modo de dar-lhe uma resposta consiste em admiti-la. A partir daí, não caiamos no equívoco de substituí-la por uma nova “catolização”, gerada artificialmente nos laboratórios dos meios de comunicação. Não se atraem católicos identificando-os com torcedores de estádios e participantes de shows.
O Catolicismo é uma religião apaixonante, porém difícil. Ao referir-se às exigências de seu Evangelho, Jesus falava em “jugo”, embora declarando-o suave. Jugo, antigamente, tinha a ver com canga de bois, como explica o Dicionário Enciclopédico Bíblico, da Editora Vozes (1987): “É o pau da carruagem colocado na nuca dos animais de tração”. Jesus falava explicitamente em Cruz: “Quem quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz, e siga-me”.
Não se pode “ser católico” sem uma aceitação do próprio batismo e a aceitação de um código moral alicerçado no Evangelho. Noutros termos: sem assumir uma “cosmovisão” evangélica, objeto de escárnio de uma civilização permissiva. “Sereis desprezados em meu nome...”– quem se lembra?
Consta que Jesus dirigiu aos apóstolos uma pergunta insólita:
– Quereis também retirar-vos?
Pedro respondeu:
– A quem havemos de ir? Só tu tens palavras de Vida Eterna.
É a partir de tais pressupostos que o Brasil poderá reaproximar-se do Evangelho, e então tentar, pela primeira vez, a aventura de um Catolicismo de decisão pessoal.
Era previsível que a cenografia da sensibilidade nacional desabasse. O surpreendente é que tenha desabado por corrosão, tão silenciosamente e tão devagar, que o fenômeno deixou todo o mundo chateado. E decepcionado.
O leitor conhece eventualmente Ionesco e sabe que ele compôs uma curiosa peça de teatro, O Rinoceronte, sucesso nos anos 1960. É uma ficção que pode ser aplicada ao Catolicismo atual. Os católicos não podem deixar-se levar por brisas esotéricas ou ideológicas, que alimentam desejos de um rousseanismo polifacial. O Catolicismo oferece uma resposta específica. O católico, como o personagem Beranger de Ionesco, é obrigado a optar entre apresentar uma cara de católico, e um coração que quer ser católico, e uma máscara, das tantas que servem para bailes.
** Aqui no blog reportagem da descatolização do brasileiro: http://zelmar.blogspot.com.br/2016/04/ser-brasileiro-e-ser-catolico-nao-e.html
-------------
* Professor. Escritor. Teólogo. Autor de O Rosto de Cristo (A formação do imaginário e da Arte Cristã)
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a5779738.xml&template=3898.dwt&edition=28776§ion=4572
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário