domingo, 3 de abril de 2016

Meu querido

Martha Medeiros*

 

Para meu desespero, de vez em quando escapa a palavra inteira, e só me resta o autoflagelo, pois a pessoa não irá acreditar que eu a considero “querida” mesmo

Quando eu soube que o Lula, durante o célebre interrogatório do início de março, chamou o delegado de querido 30 vezes, recordei uma coluna que escrevi anos atrás sobre o tratamento que damos aos outros e suas sutilezas. O Lula, claro, devia estar querendo arrancar as tripas do querido.

Amigos íntimos tratam uns aos outros de “seu viado” e isso é uma declaração de amor. Tenho uma ex-colega do colégio que costuma entrar no meu WhatsApp perguntando “e aí, veia?” e eu não caio em prantos porque sei que ela só dedica esse afeto a quem considera muito especial. Ou seja: se quisermos respeito, melhor procurar quem nos odeia.

A maioria dos e-mails que recebo começa com “Oi, Martha”, às vezes “Oi, Martinha”, e suspiro aliviada: não há dúvida de que o desconhecido me quer bem. Mas quando a mensagem inicia com um reverente “Dona Martha”, fico lívida e com as pernas bambas. Serei detonada, e não vai ser pouco.

E se a mensagem começa com Ilustríssima, aí nem continuo a leitura. Sou muito carente.

Uma vez estava assistindo a uma palestra de uma senhora distinta e educada. Quando chegou a hora das perguntas da plateia, uma moça levantou na maior inocência e questionou a palestrante sobre um assunto incômodo. Fez-se um silêncio fúnebre durante três segundos, até que a resposta iniciou com uma voz gutural: “Minha filha, você...”

Nem quis escutar o resto. Aquele “minha filha” era uma navalha perfurando a jugular da desavisada que ousou interpelar a estrela do evento. Quem não sabe? Você só usa “minha filha” ou “meu filho” em dois casos: quando está se comunicando com alguém que tem o mesmo DNA que o seu ou quando se sente tão superior que não resiste em humilhar a criatura repugnante que se atreveu a cruzar seu caminho.

Vale o mesmo para “meu bem”.

Eu tenho um problema. Aliás, tenho vários, mas hoje vou revelar apenas este: eu costumava chamar as pessoas de querido e querida. Só que não estava nem um pouco irritada. Não estava querendo esganá-las. Não estava sendo cínica ou pedante – um pouco brega, no máximo. Era a droga de um carinho verdadeiro. Aí resolvi cortar a última sílaba e passei a chamar as pessoas de “queri” (pronuncia-se “quêri”). Um apelido para meus queridos e queridas, assim não restaria dúvida de que eu estava sendo fofa de verdade, e não de mentirinha.

Tem funcionado. Que saudade, queri! Adorei seu post, queri!

Porém, para meu desespero, de vez em quando escapa a palavra inteira, e só me resta o autoflagelo, pois a pessoa não irá acreditar que eu a considero querida mesmo. Com toda a razão.

O melhor é não deixar dúvida nenhuma sobre meu apego. Ultimamente, o que mais tenho dito é: adoro você, monstro.
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* Jornalista. Escritora
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a5710520.xml&template=3916.dwt&edition=28691&section=1026
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