Luiz Gonzaga Belluzzo*
Arendt, em resumo: Se você não é igual a mim, não tem direito de existir
O Brasil está prestes a reproduzir os processos sociais descritos em As Origens do Totalitarismo
Ao observar Donald Trump, seus símiles europeus
e os ululantes nativos, é legítimo perguntar se o Brasil e o mundo não
estariam prestes a reproduzir os processos sociais magistralmente
analisados por Hanna Arendt no clássico As Origens do Totalitarismo.
Arendt ocupa-se, sobretudo, da emergência do nazismo e do stalinismo
como fenômenos do igualitarismo totalitário que vocifera: “Se você não é
igual a mim, não tem direito a existir”.
Esse igualitarismo de manada pressupõe
paradoxalmente a superioridade de um modo de ser sobre outros e termina
nas tentativas de apagar pela força as diferenças de posição social e de
estilos de vida. É o nivelamento pelos calcanhares, como dizia meu
professor de Filosofia do Direito, Miguel Reale, um conservador que
seria expulso das passeatas dos igualitários da Avenida Paulista.
Diz Arendt: “As massas surgiram dos fragmentos da
sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão
do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe. O fato
de que o ‘pecado original’ da acumulação primitiva de capital tenha
requerido novos pecados para manter o sistema em funcionamento foi
eficaz para persuadir a burguesia alemã a abandonar as coibições da
tradição ocidental... Foi esse fato que a levou a tirar a máscara da
hipocrisia e a confessar abertamente seu parentesco com a ralé”.
A escória, na visão de Arendt, não tem a ver com a
situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os indivíduos
altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos
da ralé”.
Peter Gay incita os pensadores da
sociedade a considerar as relações estabelecidas por Freud entre
biografia e cultura na sociedade de massas: “Os estudiosos da sociedade,
sem excluir os escritores imaginativos, têm certamente sabido há
bastante tempo que em grupos os indivíduos podem retornar a estados
primitivos da mente, sujeitar a sua vontade a líderes, desconsiderar
restrições e o ceticismo sensível que a educação cultivou neles tão
dolorosamente”.
Minhas obsessões insistem em repetir que a
sociabilidade moderna se move entre a inevitável pertinência a uma
cultura produzida pela história e a pluralidade dos indivíduos “livres”.
A história dessas sociedades “produziu” o mercado, a sociedade civil,
suas liberdades e seus interesses.
O sistema de necessidades e de interesses
supõe, em seu desenvolvimento contraditório, a legitimidade das ações
individuais, sempre acomodadas nos limites impostos pela lei emanada da
soberania popular.
Essa forma de sociabilidade rejeita a autoridade da “ordem
revelada” ou transcendências, religiosas, políticas
(pseudorrevolucionárias), moralistas e midiáticas. Tais monstruosidades
pretendem se colocar “fora” da bulha e das misérias do mundo da vida e
do penoso exercício de compartilhar a razão com os demais cidadãos
livres e iguais em sua diversidade.
Na sociedade contemporânea, não há lugar para tribunais privados e
julgamentos autorreferidos do comportamento alheio, senão nas trágicas
experiências do totalitarismo.
A história registra episódios terríveis. A
lei promulgada pelo regime nazista em 1935 prescrevia que era “digno de
punição qualquer crime definido como tal pelo ‘saudável sentimento’
popular”. Naquele momento, o saudável sentimento popular – a ética
predominante na Alemanha – acolhia e insuflava a prática do genocídio de
judeus, eslavos e outros povos “inferiores”.
As forças subterrâneas do inconsciente
coletivo movem campanhas de opinião que apelam para medidas extremas.
São manifestações de insanidade gregária, travestidas de ações da
sociedade civil, em cujos becos e desvãos escuros, aliás, se acumula a
energia que alimenta a onda de violência que atinge a todos.
Nas manifestações dos moralistas transcendentais, vejo a autoconvocação dos soi-disant iluminados
para substituir a onisciência divina e, nessa condição, desferir
sentenças irrecorríveis, como as desferidas pelos juízes do Juízo Final,
em contraposição aos humanos, os pobres-diabos que se debatem para
sobreviver aos ditames da falibilidade e da incerteza.
Fico a imaginar como seria a vida dos humanos falíveis se
os jurados do Juízo Final empalmassem o poder na moderna sociedade de
massas, crivada de conflitos e contradições.
O quadro agrava-se, quando relações
promíscuas entre as autoridades e as massas, intermediadas pela
propaganda manipuladora, colocam os cidadãos diante da pior das
incertezas: a absoluta imprecisão dos limites da legalidade.
As garantias da publicidade do
procedimento legal são, na verdade, uma defesa do cidadão acusado – e
ainda inocente – contra os arcanos do poder. Pois estas conquistas da
modernidade, das quais não se pode abrir mão, têm sido pisoteadas por
quem deveria defendê-las.
Ocultam da sociedade, em cujo nome dizem
agir, o empenho com que laboram para tecer a corda em que enforcarão as
garantias individuais. Em situações como essa, o Estado se transforma
num aparato administrativo desgovernado e despótico, numa caricatura de
si mesmo, num butim a ser dilapidado por ocupantes eventuais.
A “partidarização” ou a particularização da atividade
policial e da prestação da Justiça aproxima rapidamente as sociedades
modernas das práticas totalitárias que assolaram o mundo dito civilizado
na primeira metade do século XX. É o que demonstram Herbert Marcuse e
Franz Neumann em suas obras sobre o tema.
A invasão insidiosa dos interesses partidários nos
órgãos encarregados de vigiar e punir não tem outro resultado senão
transformar essas burocracias de Estado, primeiro em instrumentos do
poder descontrolado e, depois, em poderes fora de controle.
Não são poucos aqueles que percebem o
fenômeno e o abominam, mas preferem se recolher diante da contundência e
da ousadia dos que buscam, sem qualquer escrúpulo, intimidar os
inimigos, desafetos ou simples adversários políticos.
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*Economista.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/revista/894/a-atualidade-de-hannah-arendt
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