Paulo Ghiraldelli Jr*
Um
dos sinais mais marcantes de nossa época é a nossa incapacidade de
darmos valor para o que, racionalmente, seria aquilo que deveríamos
considerar de mais valor. Negligenciamos o que, a julgar pela nossa
razão, deveria vir em primeiro lugar e nos apegamos ao que, também pela
nossa razão, teríamos de colocar em um plano subalterno. Muitos dizem
que assim fazemos porque “o mundo moderno é agitado”. Outros dizem que
agimos dessa forma por causa da “ganância de dinheiro e poder”. E há até
os que tentam alguma sociologia carcomida, falando coisas como “é o
capitalismo” etc. O senso comum se refestela nessas frases. Mas, não
creio que explique alguma coisa. Também não nos ajuda a mudar. Não
mudamos.
Nietzsche chamou os tempos modernos,
tomados de certo modo não como uma época determinada, mas como um
sintoma de nossa condição, como os tempos de desenvolvimento do
niilismo. Os valores mais supremos teriam perdido valor. Nietzsche
falava de grandes coisas. Mas ele jamais disse que sua profecia não
valia também para as pequenas coisas.
Nietzsche falava da metafísica, que ela
havia deixado de ser importante porque pesquisar o absoluto tinha se
tornado uma bobagem. Ele falava de Deus, que dizia ter morrido, já que o
absoluto não mais importava. Grandes coisas.
Outros pensadores preferiram tratar de
pequenas coisas. Ou de coisas que haviam recebido o nome de pequenas
recentemente, exatamente porque haviam caído no redemoinho do niilismo
denunciado por Nietzsche e tomado por ele como um fio de sua filosofia
da história. Eis uma pequena coisa: a amizade.
Para Aristóteles ela tinha uma
importância imensa. Para Sêneca e Cícero, então, nem se fale. Para
Montaigne, ela fazia a vida valer a pena ou não valer a pena. Mas, um
belo dia, acordamos sem amigos, embora abarrotados de colegas e
parentes. Não foi “a vida moderna” ou “o capitalismo” ou “nossa vaidade”
ou “a ganância de poder e dinheiro” que fez isso. Não! Foi simplesmente
essa nossa decisão de que colegas e familiares eram amigos. Uma decisão
que tomamos porque durante anos viemos mudando nosso vocabulário,
desconsiderando certos elementos semânticos. Fomos paulatinamente
esquecendo que ágape, philia e eros, apesar
de diferentes, tinham uma mesma dimensão, todas eram amor. Não prestamos
atenção nessa necessidade de ficarmos atentos para o igual e o
diferente nesses termos. Desse modo, a philia, o amor de amizade,
passou a ser amor, sem especificações funcionais. Esquecemos no que
implicava em amar por amizade. Não lidando de maneira acurada com a
semântica do amor, descuidamos dos pré-requisitos de cada tipo de amor
e, no caso da amizade, acabamos por esquecer o que é que deveria surgir
no mundo para se ter a amizade. Perdemos a noção do que é ser amigo. O
que se deve fazer para ser amigo? O que um amigo faz para o outro amigo
de modo que exista a amizade? Começamos a ver que não sabíamos mais
responder tais perguntas.
Os americanos caíram nisso primeiro que nós, de língua exclusivamente latina. Eles passaram a usar love
para quase tudo. A minha geração não fazia isso. Não usávamos amor para
quase tudo. Mas a geração atual que fala o português, no Brasil, diz
“eu amo tudo isso” para um hambúrguer! Os americanos usaram friendship
para namoro. Ora, a minha geração não tinha verbos como “ficar” ou
“sair” no campo do amor, ou era namoro ou era amizade. Hoje, isso se
perdeu. Falamos o “português americanizado”, eu diria, mais ou menos
para fazer graça. Ou seja, podemos fazer sexo com amigos e amigas e não
pensarmos em termos qualquer vínculo de namoro com eles. Não estou
dizendo que isso é ruim ou bom. Não estou fazendo uma avaliação
moralista, embora esteja falando de moral. Estou atentando para nossas
transformações conversacionais, para nossa alteração semântica, de modo
que possamos perceber como tais alterações nos levaram a não conseguir
pronunciar a palavra “amizade” com as especificidades semânticas que ela
implicava. Então, ao perdermos isso, ficamos sem entender a
funcionalidade da amizade. O que é ser amigo? O que faz um amigo?
Ninguém sabe.
As idéias de boa vontade, confiança e
lealdade a toda prova, que eram os três elementos nucleares pelos quais
antigos e renascentistas louvavam a amizade, veio abaixo. Chegamos mesmo
até a denegrir isso, apontando essas palavras como algo distante de
qualquer virtude ou nobreza. Palavras assim caíram na oposição da
palavra “justiça”. Ser leal, então, poderia significar ser o oposto de
justo. E deveríamos seguir a justiça cega, não a justiça com olhos. A
justiça com olhos seria amizade, lealdade, e não seria justiça. Ao
opormos a lealdade à justiça, fazendo a segunda algo bom demais e acima
de qualquer suspeita, jogamos a amizade para os piores lugares.
Por isso, deploramos a amizade. Quando
vemos a fotos de amigos, ficamos com raiva. Dizemos: “são cúmplices de
algum crime”. Vemos quadrilhas onde deveríamos ver amigos. Não
entendemos mais o sentido da amizade. Tudo deve ser limpo e, para ser
limpo, tem de ser justo, e onde impera a justiça todo laço de amizade
deve ser afastado. Criamos com isso uma sociedade formal e formalizada,
que se imagina justa, mas que carece de justiça, talvez porque a justiça
verdadeira não venha da não-amizade e, sim, da amizade, da ampliação da
lealdade para mais pessoas do que nosso grupo de amigos iniciais (uma
hipótese que compartilho com Richard Rorty).
Termino com um episódio vivido por Florestan Fernandes.
Tornando-se deputado e, não tendo nunca
sido político, Florestan não tinha outros amigos de confiança para
trabalhar com ele. Então, contratou seu filho, o jornalista Florestan
Fernandes Jr., para ir para o Congresso, trabalhar no seu gabinete. Ele
confiava em quem tinha de confiar: no amigo. O amigo dele era o filho
dele. Eis então que denunciaram Florestan Fernandes: ele estaria
promovendo o nepotismo! Florestan Fernandes Jr. teve de ser despedido e o
nosso sociólogo ficou sem nenhum amigo de verdade no seu gabinete.
Aquilo atrapalhou bem os serviços de Florestan e chegou a prejudicar a
sua atuação como deputado. Ele não sabia trabalhar com política senão
com amigos! Sua atividade como parlamentar não era uma atividade
meramente burocrática e profissional, era um projeto filosófico de vida.
Fazia parte de uma militância como pessoa, colocada a serviço da
educação brasileira no âmbito do Congresso. Por isso, era algo pelo qual
ele tinha de estar ombreado com um amigo. E seu filho era jornalista,
não podia abandonar o emprego em São Paulo sem ter outro em Brasília, no
qual realmente estava trabalhando – mais do que qualquer outro ali no
Congresso! Florestan Fernandes, afinal, não podia ter ali ao lado dele
uma profissional do tipo “secretária de recados”. Fazia-se necessário,
ali, antes de tudo, a lealdade. A lealdade ali iria promover a justiça.
Confundimos tudo isso e, hoje, quando
esperamos encontrar um amigo, nós, os da velha guarda que ainda imaginam
como possível a amizade, encontramos somente a formalidade e o ideal da
justiça cega. Vivemos então de tombos em tombos. Imaginamos que alguns
vão ser amigos, mas eles já há muito não sabem o que é a amizade e,
pior, não a tomam como importante, não mais.
A justiça que se faz contra a amizade, e
que realmente quer se tornar cega, acaba mesmo não só cega, mas surda,
muda e insensível. Termina por ser justiça injusta.
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*Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e co-apresentador do Hora da Coruja na Just TV.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/04/23/amizade-o-que-e-isso-mesmo/
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