Paulo Ghiraldelli Jr.,
O
jovem professor Bicota havia conseguido ser empregado no Colégio de sua
cidade natal. Recém empossado, botou seu avental branco e, de giz em
punho, foi para a sala de aula, logo no primeiro dia do ano letivo.
Albino Cotia era o nome da fera. Mas, dado que todo mundo por ali falava
muito rápido, ele era chamado de “bincotia” e depois “bincota” e,
enfim, “bicota”. Era professor de filosofia. Ninguém sabia o que era
filosofia – ao menos naquela turma de estudantes, chegados no primeiro
ano do ensino médio exatamente quando o Colégio tinha seu primeiro
professor de filosofia. Era ele, o professor Bicota, de giz em punho.
Bicota entrou na sala e se apresentou.
Os alunos olharam, olharam … era como se estivessem em uma excursão para
o zoológico, mas sem sair da sala. Ali estava um professor de filosofia
com um nome estranho. Bicota! E, afinal, sabe-se lá o que ele iria
falar em uma aula com um nome pouco comum: “filosofia”. Uma menina
escreveu na capa do caderno: “aula de bicofia”. Talvez não fosse
realmente a melhor aluna, mas não era das piores. A peixeinho da sala,
loira, peitos duros de menina-moça e uma mini-saia de deixar Bicota
estarrecido com a idéia de Kant ter conseguido morrer virgem, se
ofereceu para fazer a chamada. Os cílios dela eram enormes e ao escutar
sua voz, Bicota percebeu que poderia ter uma ereção ali mesmo, diante de
todos, e mais que rapidamente se refugiou para trás da mesa. Sentou-se.
Respirou e deu a caderneta para a garota, cujas mãos foram direto para
as mãos dele, e só depois para a caderneta. Bicota sentiu que a ereção
não seguiu seu curso, substituída pelo suor frio.
Cínthia fez a chamada. Enquanto isso,
Bicota colocou no quadro a palavra “Philo-sophia”. Tudo estava preparado
para dizer aos garotos de como lá na Grécia antiga Pitágoras, muito
provavelmente, havia sido o primeiro a usar a palavra “philosopho” e,
daí, se ter a origem de Philosophia, a amizade ao saber. Mas antes mesma
da chamada terminar e nem bem ele tinha posto a palavra no quadro, veio
uma pergunta lá do fundo da sala, por meio de uma voz de Pokémon.
“Professor, como é que se faz para acertar tudo nessa matéria e passar
de ano?”.
Bicota voltou-se para aquela voz. Não
era só a voz de Pokémon. Era o próprio. Um menino com cara de desenho
japonês, e completamente amarelo. Seria difícil, após às seis da tarde,
distinguir o estudante do verdadeiro Pokémon. E isso não era o pior. O
que era mesmo ruim é que a pergunta nada tinha de retórica. Não era
aquela pergunta do aluno chato que, no primeiro dia, quer mostrar que
ele é rebelde e que não está nem aí com a matéria, da qual quer só se
livrar. Não! Os olhos do aluno mostravam que ele realmente estava
preocupado. A matéria era estranha e, afinal, o que haveria de se pedir e
de se responder de modo a não errar?
Bicota começou a falar, mas da sua boca
não saiu o que ele imaginou que deveria sair. Ele simplesmente disse:
“nessa matéria, filosofia, vocês não vão fazer nada certo, se fizerem
algo certo, se acertarem alguma resposta, estarão reprovados. Aqui,
vocês deverão errar. Só errar.” E se empolgou: “a filosofia é o espaço
do erro”. E mais: “em todas as outras disciplinas, vocês devem acertar,
aqui, vocês podem errar, devem errar”. Alguns riram. Mas Bicota se
manteve sério e então o riso parou. Por uns bons três minutos a sala
ficou em silêncio. Bicota na mesa, e os alunos olhando para ele. O gelo
foi quebrado por Cínthia, que entregando a lista de volta, disse ao
mestre, fazendo charminho em estilo Sabrina Sato: “ai professor, o
senhor, já vi tudo, é muito brincalhão – a gente vai ter de errar!”.
Bicota levantou e como que possuído pelo
demônio, pediu para que todos pegassem uma folha de papel, que daria
uma prova. Não deu tempo de contestação. Alguns iam reclamar e ele ditou
a primeira e única pergunta: “Você deve abandonar um cão na estrada,
uma vez que vai se mudar de casa e, para onde vai, não é possível levar
animal?” O tom de voz de Bicota, firme, fez os alunos não falarem mais e
levarem a sério a prova. Começaram a escrever. Bicota deu-lhes poucos
minutos e recolheu tudo rapidamente, e iniciou a leitura de um por um
dos textos. Para cada texto lido, Bicota dizia “certo”, “certo”. Quando
chegou ao último, bateu com a mão na mesa e disse: “nenhum de vocês
conseguiu errar. Vocês são uns covardões. Nenhum de vocês conseguiu ter
uma idéia que não fosse aquela que todos consideram como corretas. Vocês
são o senso comum do senso comum, as pessoas mais previsíveis do mundo.
Vocês são uns alunos muito, muito, muito chatos”.
Bicota passou a cobrar o erro. Suas
perguntas não davam margem para erro. Essa era a impressão que se tinha.
Mas ele pedia um erro. Ele não pedia maldade. Ele pedia um erro. E
assim, sua fama se espalhou pela escola. E a droga toda chegou aos
ouvidos de pais e desses voltou para a escola, para cair bem na cabeça
do diretor. Eis como a coisa bateu no diretor: “Lá no Colégio há um
professor com nome de viado, que quer que os alunos falem o errado, não o
certo”.
O diretor tinha um problema para
resolver. Bicota ganharia sua cota do problema. Os alunos, por sua vez,
estavam todos atarantados, nenhum deles, ainda, havia tido a coragem de
escrever algo com sentido, porém errado – errado mesmo.
É claro que Bicota não ficou no colégio.
Foi mandado embora. A secretaria da Educação autorizou o diretor a
meter o pé nele. Ou era ele ou o diretor. Aliás, este também tomou sua
cota de punição, por meio de uma sindicância forçada pelos pais. Os
alunos ficaram sem aula de filosofia, ao menos durante um tempo.
Em três meses de aula, Bicota não
conseguiu fazer nenhum aluno errar, mas, em compensação, desencadeou no
colégio uma sucessão de erros.
Anos mais tarde, ensinando filosofia na
universidade, encontrei um aluno que queria saber como passar na minha
matéria. E eu disse para ele que a filosofia era “o espaço do erro”. E
acrescentei que eu queria vê-lo errar.
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Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e co-apresentador do Programa Hora da Coruja na JUST TV.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/04/24/a-filosofia-vai-a-escola/
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