João Pereira Coutinho*
Digo que só consulto a internet duas vezes por dia -ao acordar e ao deitar. Questão de higiene -mental
Há um novo crime na praça. E eu sou culpado aos olhos de amigos,
colegas, até leitores. Não respondo a e-mails de imediato. Só passados
alguns minutos -ou algumas horas.
Defendo-me como posso. Digo, a sério, que só consulto a internet duas
vezes por dia -ao acordar e ao deitar. Questão de higiene -mental.
Curiosamente, quase sempre estou a escovar os dentes.
Ninguém acredita. E, quem acredita, diz que isso não é desculpa: existem
uns celulares que recebem e-mails em tempo real e permitem respostas em
tempo real.
Agradeço a informação, mas não era preciso: eu próprio já recebi e-mails
do gênero, que terminam com a declaração solene "esta mensagem foi
enviada por iPhone".
Nunca sei que responder: mostrar-me abismado com a proeza e aplaudir a grande honra que o sujeito me concedeu?
Às vezes, há situações bizarras. Alguém envia um e-mail. Minutos depois,
envia outro, só para perguntar se eu recebi o primeiro. Duas ou três
horas depois, vem mais um -dessa vez, uma repetição do inicial, para o
caso de eu não ter lido.
Essa comunicação unilateral termina com um quarto ou um quinto, em que
sou acusado das maiores baixezas (indiferença, preguiça, hostilidade
etc.).
Em poucas horas, alguém iniciou e terminou uma comunicação comigo sem
que eu jamais estivesse presente para dizer "presente!". Que se passa
com o mundo?
Os especialistas no assunto, psicólogos e sociólogos que pesquisam os
paradoxos da internet, afirmam que estamos cada vez mais ligados e
exigimos respostas cada vez mais rápidas uns dos outros. Certo,
especialistas do óbvio, certíssimo.
A questão, porém, deve ser outra: que tipo de gente a internet está a produzir no século 21?
Foi precisamente essa pergunta que o escritor Stephen Marche formulou em
artigo para a revista "The Atlantic" ("Is Facebook Making Us Lonely?").
As conclusões não são otimistas: estamos todos ligados, mas essa
sensação de contato permanente não significa que o nosso isolamento (e a
nossa solidão) decresceu.
O Facebook é, inevitavelmente, um caso clássico: que significa esse
imenso continente virtual onde "existem" 845 milhões de pessoas, onde se
publicam bilhões de comentários diários e onde se postam 750 milhões de
fotos por semana?
Stephen Marche não faz parte dos luditas modernos para quem o Facebook é
a "bête noir" da civilização ocidental. A resposta dele, depois de ler
os últimos estudos sobre o fenômeno, é de uma sensatez que arrepia: a
internet é um meio, não um fim. O que somos como seres sociais depende
da forma como usamos as redes sociais.
Que o mesmo é dizer: quem usa o Facebook para substituir a realidade não
aumenta o seu "capital social". Pelo contrário, pode mesmo sentir o
isolamento típico de um peixe que contempla o mundo através do vidro do
aquário. Paralisante. Angustiante.
No artigo, o autor cita um neurocientista da Universidade de Chicago,
John Cacioppo, que oferece uma metáfora ainda melhor: podemos usar o
carro para ir ao encontro de amigos; ou podemos dirigir sozinhos pelas
ruas da cidade. O mesmo carro, duas atitudes distintas.
A internet, e as redes sociais que ela comporta, é apenas um instrumento
para, não um substituto de. O desafio, leitor, não está em quebrar o
aquário. Está em sair dele de vez em quando.
Sair. Desligar. Não estar disponível. Ou, como escreve Stephen Marche,
"termos a oportunidade de nos esquecermos de nós próprios".
Eis, no fundo, a observação mais luminosa do ensaio: a nossa constante
disponibilidade para os outros é apenas uma manifestação mais profunda
do nosso insuportável narcisismo. E o narcisismo, como sempre, nasce de
uma insegurança que procuramos preencher com o culto doentio do ego.
Pensamos que somos tão imprescindíveis que temos de estar presentes 24
horas por dia na vida alheia. E vice-versa: pensamos que somos tão
importantes que os outros têm de estar permanentemente disponíveis para
nós.
Lamento, amigos. Lamento, colegas. Lamento, leitor. Os meus silêncios
não têm nada de pessoal. Nem eu nem você somos assim tão importantes.
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* Colunista da Folha
jpcoutinho@folha.com.brFonte: Folha on line, 24/04/2012
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