domingo, 22 de abril de 2012

Os lunáticos

Imaginação
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO


 
Desenho de 1994 de Arnaldo Dias Baptista, da série "Lentes Magnéticas"

SOBRE O TEXTO Esta é uma versão editada do conto "The Moon Shiners", escrito em inglês por Arnaldo Dias Baptista (veja a íntegra em folha.com/no1078186). A ilustração fez parte da mostra "Lentes Magnéticas", a primeira individual do artista, em cartaz em São Paulo até a última sexta-feira. O ex-líder dos Mutantes será uma das atrações da Virada Cultural, com show no dia 5/5, no Theatro Municipal. Convites grátis serão distribuídos a partir de terça em vários pontos da cidade.

texto e ilustração ARNALDO DIAS BAPTISTA

tradução DANIEL PELLIZZARI
 
CAPÍTULO 1
O vento soprava baixinho, hesitando pelas frestas na madeira das cinco janelas que decoravam a torre no alto da cabana, num lugar bem longe nas colinas de Nevada.
Algumas luzes ao redor da cabana tentavam abrir caminho pela escuridão circundante. Talvez, como a cerca que delimitava o terreno, servissem para manter os animais à distância e protegê-los.
Ao lado da cabana havia tapume, impedindo que cinco discos voadores fossem vistos. Quatro árvores projetavam sua sombra, bloqueando a visão do alto e formando uma camuflagem completa.
Vemos uma garota passar correndo, cruzar a entrada e chegar a um portão de compensado perto do tapume. Atravessa o portão, entra num disco e fecha uma porta triangular no dorso de uma nave, que com um zumbido suave desaparece numa névoa esverdeada na velocidade de uma trilha de luz.
A nave alienígena encontrou a nave-mãe, longe da atmosfera terrestre. Os discos se conectaram com um corredor flexível como os dos aeroportos modernos. Uma reunião ocorria numa sala da nave-mãe. Dez criaturas de aparência humana estavam à espera da garota. Ela pede desculpas pelo atraso.
A conversa diz respeito a algo sentido na semana anterior por duas das mulheres mais jovens ali sentadas. Talvez cientistas da Terra estivessem prestes a descobrir os fundamentos da lei da antimatéria, que permite a pessoas e máquinas ficarem invisíveis e viajarem acima da velocidade da luz.
- Não devem ser cientistas comuns. É quase certo que não trabalham para nenhuma universidade ou órgão governamental. Ainda não parecem conscientes do progresso das pesquisas oficiais na Terra. A lei das probabilidades prevê que uma descoberta tão importante possa acabar acontecendo.
- Tem razão! Os especialistas não conseguem ter espaço para pensar em nível alto o suficiente.
- Será necessário o trabalho de algumas pessoas. Bem-intencionadas e não egoístas, psicologicamente falando, e adequadamente conectadas com o ambiente social do planeta - disse um homem.
Ele prosseguiu:
- O que esses homens vão fazer quando a descoberta ficar evidente? É provável que fiquem em estado lamentável. Está implícito que sua atitude é teórica. Nada farão em termos pragmáticos. Ou se distanciarão tanto do fluxo natural dos avanços do pensamento terrestre que uma introspecção os levará a crer que suas vidas, agora importantes para nosso universo, serão regidas por um vasto grau de infelicidade... Devemos ajudá-los?
- E por que não? - responderam as garotas. 


Quando Daniel e Paul foram encontrados, um trabalhava como músico num país sul-americano e o outro tentava manter um jornal sobre rock numa cidade inglesa.
Assim que houve o contato, após a descoberta quase simultânea, ambos concordaram em conversar no espaço. Foi a proposta.
Ao chegarem na grande nave foram apresentados a duas garotas, as mesmas que se manifestaram sobre a descoberta na reunião. Primeiro as roupas, depois a cultura.
Os homens tinham quase a mesma idade e sentiram algo... Emoção? Amor? Amor parece adequado. Enquanto trabalhavam separados, quase se tocavam à distância. E agora havia as garotas e o futuro.
Observaram os discos voadores, enquanto estes os levaram à nave-mãe. Agora, na máquina, conversavam com as garotas. Sentiam alívio sobre o sentido de suas vidas.
Após duas semanas, ficou evidente que a raça humana à qual pertencia o povo de quem os dois eram hóspedes não era nada desenvolvida. Em sua história, não havia um lado místico.
Sempre que iam mencionar esse campo, os rostos das garotas assumiam ar de incredulidade, junto com algo que parecia sedução. Elas se sentiam atraídas pelo lado místico dos dois, que ficavam perplexos. Para eles, o misticismo era uma ciência a ser respeitada.
Isso se tornou então uma maneira de se desconectar, pois assim como o misticismo as mentes gêmeas são amplas. Cada garota se interessava por um aspecto distinto do que interpretava como uma mentira sedutora e espantosa.
Deveriam imaginar que os convidados eram mentirosos? Ou que acreditavam no que diziam? 

CAPÍTULO 2

Havia uma diferença entre as duas raças humanas. Pequena, mas de certo modo grande. Visualmente, essa diferença se localizava nos olhos. Eram roxos nos alienígenas, que enxergavam mais.
Por outro lado, Daniel e Paul tinham melhores órgãos auditivos. No laboratório da nave, Daniel conectou osciladores de onda e fez um sintetizador musical. Mais de um alienígena foi atraído pelos sons, que "faziam sonhar".
No lado místico, Dana (a loira) contou a Daniel que via ainda mais beleza quando ouvia histórias, como romances de cavalaria. Chegou a beijá-lo quando ele mencionou adorar o satélite da Terra, a Lua.
Estavam num sofá confortável. Dana estava sem nada por baixo da camisola transparente e, com insônia, tinha ido ao quarto de Daniel para conversar. Ele contou o que sabia sobre cabala e bruxaria.
Dana disse ter ficado interessada nas mentiras e, quando ele enfim falou sobre sua fé, ela sentiu o que chamou de "entidade". Era algo forte nele, que pertencia a lendas (usou a palavra inventada em galáctico, que Daniel logo aprendeu). Ela o beijou e pressionou o seio contra o ombro dele, que chegou mais perto. Olhou para Daniel e gargalhou. Depois escondeu os olhos com a mão e se deitou.
Daniel se levantou assim que Paul adentrou o recinto e sentiu a atmosfera sorrindo, sagaz. 

CAPÍTULO 3

 viagem seguiu enquanto a relação entre os dois casais evoluiu para algo que chamamos de amor. A mistura de interesses foi um estímulo para ele se desenvolver.
Mas uma distância se criou entre as garotas e a tripulação.
Com o tempo, surgiram discussões entre as duas alienígenas e os membros do conselho que parecia governar a pequena comunidade representada por aquela nave.
Chegou-se ao consenso de que os terráqueos deviam explicações a respeito de seus novos conceitos da verdade, que tinham começado a germinar novos poderes nas garotas, Dana e Cagmen (a morena).
Era um conflito subjetivo, essa preocupação dos alienígenas, mas tinha para eles importância transcendental. Isolaram Dana e Cagmen com os terráqueos para impedir que interferissem na harmonia da tripulação. Isso, é claro, criou solidariedade entre os isolados.
Os quatro decidiram viver separados dos outros. Foram ao disco e abandonaram a nave-mãe rumo às partes desconhecidas da galáxia.
Após um período de buscas, no qual Dana engravidou, chegaram a um planetinha de atmosfera respirável, onde pousaram com tanto estardalhaço (pelo nervosismo, acho) que pareceu um acidente.
Os anos no planeta Jovian se passaram sem sobressaltos. Um tipo novo de cultura se desenvolveu, baseado na descrença das garotas quanto às tendências místicas dos homens. Juntos eles se tornaram inclinados a encarar novas realidades que, no devido momento, se conectaram a seu comportamento.
Além de crianças, ali produziram uma forte conexão entre os antigos costumes terrenos e uma inocência sofisticada acerca do "materialismo". Moradias, roupas e instrumentos, criados com aparatos largados no disco, foram produzidos com uma intenção.
Concentravam as razões da vida, tudo o que tinha a ver com felicidade, fruição. Era como se os homens tivessem sido lavados de sua culpa, o que deixou o progresso claro em suas mentes.
Após dez anos, construíram uma antena capaz de transmitir imagens, sentimentos e sons até uma extensão impressionante da galáxia. Programas foram criados para entreter até a alma dos povos atingidos pelo "transmissor".
Foi uma operação subliminar, pois a ameaça do desconhecido pairava sobre eles como uma espada de Dâmocles, mas se sentiam felizes por suas atividades.
Até que, um dia.... Chovia
A chuva forte e grossa de Jovian.
A família estava sob um telhado transparente, onde em noites como aquela tomavam chá e cozinhavam sob o céu marcado pelo contorno da antena... Quando de repente um relâmpago se abateu... Não um relâmpago comum, mas algo que veio do espaço... Um relâmpago verde, que atingiu com seu açoite a antena... E foi como se ela, dotada na base de uma unidade transmissora, tivesse se tornado um receptor (pois começaram a sentir mudanças em si mesmos).
No início, raiva, revolta e solidão. Depois perceberam que seu equipamento caíra vítima de algo transcendental, uma tecnologia baseada em energia pura, se for possível chamar energia pura de tecnologia. Daniel e Paul voltaram a se sentir culpados, e Dana, Cagmen e as crianças, sentiram culpa pela primeira vez -e compreenderam o quanto eram modernos e novos. Entenderam que as entidades que com eles se comunicavam não eram seres, mas estrelas e planetas perplexos com suas atividades e seu comportamento, inteiramente diversos do comportamento no resto da galáxia.
Após a estupefação, Daniel se dirigiu ao controle da antena. Fez com que ela focalizasse a Lua, a muitos anos-luz de distância, e acoplou um "phaser" aos amplificadores, anulando as funções de transmissão-recepção do equipamento. Como resultado, uma decantação -o carisma único da Lua- preencheu a sala de controle e brilhou. Foram banhados pela energia da Lua, seu espírito cultivado pela poesia, pela música e pelos amantes.
Foi um alívio. Uma escolha.
Uma eleição, talvez, que polarizou e forneceu uma direção, uma liderança para reclamações, dúvidas e doenças das regiões do universo que podiam alcançar. A Lua, incapaz de absorver tudo aquilo, decidiu morrer. Ou melhor, não foi uma solução.
Foi mais uma reação, e ela explodiu sem se desintegrar. Sua luz se tornou violeta e o satélite não pôde mais existir como refletor ou poder negativo -ficou mais sábio e estendeu sua energia até a antimatéria. Ali não havia mais um corpo feminino, mas uma quase estrela com brilho nos polos, que emitia uma luz confiante de pura beleza em sua independência de ceder sem tomar. 
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Fonte: Folha on line, 22/04/2012

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