segunda-feira, 16 de abril de 2012

A Maçã no Escuro (trecho)


Primeira parte: Como se faz um homem

Seis

Enquanto isso, erguendo a lamparina acima da cabeça, Martim parecia quase tão grande quanto o depósito. Lenha úmida se amontoava perto da enxerga que ele olhou com sensualidade como se não dormisse há anos.
A lucidez a que se forçara para responder às perguntas de Vitória já desaparecera, e de suas mãos sumira a habilidade de que precisara para instalar a porta. Com um abrutamento que as vacilações do clarão nas paredes faziam gaguejar e tropeçar, respirou fundo o cheiro de couro molhado do depósito, sacudiu a cabeça com força lutando por não submergir. Embora não precisasse de si para nada, uma luta elementar fazia-se nele no sentido de não soçobrar. É que a impressão ameaçadora de estar perdendo elos importantes fazia com que ele se forçasse a ter consciência de tudo: quando a luz esfumaçada da lamparina passava por cima da enxerga, ele anotou com uma nitidez inútil um cinturão imóvel no grande prego enferrujado e o quadro de papelão duro sem moldura.
Deste o homem aproximou com obediência a lamparina e o próprio rosto anestesiado que tentava se acordar: sob a gravura, em letras graúdas e femininamente desenhadas como num bordado paciente, estava inscrito “S. Crispim e S. Crispiniano”. Os olhos avermelhados do homem viram os dois santos em seu trabalho de sapateiros. Gostou muito da gravura. As mãos dos santos estavam por um instante paralisadas nas sandálias, num silêncio perfeito que o artista dera por acaso.
Acima da auréola dos santos — dentro de um círculo esfumaçado para convencionar a distância futura do acontecimento — estavam os mesmos S. Crispim e S. Crispiniano dessa vez fervendo dentro da caldeira. “Diabo”, grunhiu o homem, “qual foi o crime deles?” Mas embaixo da caldeira, enquanto o futuro não sucedia, os santos verdes, azuis e amarelos — cores que em vez de violência davam à gravura o grande espaço que cabe numa igreja — enquanto o futuro não sucedia, os santos tinham a tranqüila concentração que sandálias a consertar exigiam, como se nossa tarefa fossem as sandálias.
Na sua pesada estupidez, que se manifestou num sorriso de submissão, o homem insistiu em aproximar de novo a lamparina. É que, ainda deformado pela necessidade de atenção da fuga, pareceu-lhe que também ali havia um elo importante a lhe escapar, e ele então tocou com dedos tímidos o rosto de papelão dos mártires como quem se achega furtivamente daquilo que poderá se enfurecer. Depois, com vagares de minúcia, pôs os óculos. Mas a verdade é que o elo continuou a lhe escapar, e seus olhos aumentados pelos óculos só conseguiram obstinadamente repetir a visão sem compreendê-la: no círculo esfumaçado a caldeira borbulhando, embaixo dela instante calmo por instante calmo os sapatos se consertando. O homem não conseguiu ir um passo adiante. Embora a muda cena do quadro desse ao depósito uma perspectiva. O próprio depósito de lenha cheirava a sapateiro.
Se aquele homem ainda se lembrava de como era o mundo — naquele quadro havia alguma coisa a que ele certamente responderia se ainda fosse gente. Aquilo que o homem aprendera e não esquecera de todo, ainda o incomodava; era difícil esquecer. As coisas simbólicas sempre o haviam incomodado muito. Mas estava tão bruto quanto a comida que lhe pesava no estômago. Quando soprou a lamparina, a escuridão se fez cheia de vento pela janela. E como se trevas encontrassem outras trevas, o cansaço derrubou-o com alguma misericórdia no sono.
Até que uma aurora pálida começou a se mexer. E a brisa soprou a primeira fraca vida naquele depósito amornado por respiração, couro e entranhas. Sem saber ainda o que fazia, o homem sentou-se na enxerga. Depois, pessoa de fortes hábitos que era, ergueu-se.
Era uma madrugada muito bonita. Quando ainda não há luz, e a luz é apenas o ar, e a pessoa não sabe se está respirando ou vendo. Além do mais, do longe veio-lhe o cheiro das vacas, o que sempre nutre de enlevo uma pessoa: o cheiro de vacas amanhecidas veio misturado com a grande distância que ele enxergou. Os olhos de Martim, tornados ignorantes pela longa noite, olharam então com estranheza o terreno baldio que a meia claridade de sonho revelou pela janela atrás do depósito. Aparentemente esquecera de que dormira no campo. No terreno, através da névoa rasa, viu com curiosidade infantil uma terra suja e seca, endurecida pela madrugada. O homem não antecipou nada: viu o que viu. Como se olhos não fossem feitos para concluir mas apenas para olhar.
Até que, mais um segundo dessa própria isenção, e também sua cabeça foi atingida com graça pela incompreensão do que ele via. E num engano de que certamente precisou, um engano tão certo quanto a queda certa de uma maçã, ele teve um sentimento de encontro: pareceu-lhe que no grande silêncio ele estava sendo saudado por um terreno da era terciária, quando o mundo com suas madrugadas nada tinha a ver com uma pessoa; e quando, o que uma pessoa poderia fazer, era olhar. O que ele fez.
É verdade que seus olhos custaram a entender aquela coisa que nada mais do que: acontecia. Que mal acontecia. Apenas acontecia. O homem estava “descortinando”.
O terreno fora provavelmente uma tentativa, por fim abandonada, de jardim ou horta. Percebiam-se restos de um trabalho e de uma vontade. Certamente haviam alguma vez tentado estabelecer ali ordem inteligível. Até que a natureza, antes expulsa pelo plano de ordem, voltara sorrateiramente e lá se instalara. Mas em seus próprios termos.
Porque, qualquer que tivesse sido a sua época de glória e viço, agora o terreno tinha o silêncio do que é entregue a si mesmo. Havia algumas pedras cinzentas e duras. Um pedaço de tronco deitado. Raízes expostas de uma árvore havia muito tempo cortada, pois nenhuma umidade porejava mais no corte oblíquo. Ervas cresciam verticais. Algumas haviam atingido uma altura que já as tornava sensíveis à brisa adstringente da aurora. Outras eram rasteiras e coladas ao chão, e deste não se arrancariam sem morte. Terra grossa se esfarelava junto de um formigueiro; era uma desordem tranqüila.
O homem ficou olhando até que a vida que se instalara no terreno começou a acordar. Mosquitos brilhantes, como se transportassem para ali o primeiro carregamento de luz. O passarinho cauteloso entre folhas secas. De uma pedra para outra, se cruzaram ratos e ratas. Mas na irmanação do silêncio, como um fuso trabalhando, um movimento não se distinguia do outro. Essa foi a sossegada confusão onde Martim caíra.
Durante os incompreensíveis dias que se seguiram — todos os elos lhe escapando, recebendo atordoado as primeiras ordens de Vitória, examinado de longe por Ermelinda e ouvindo as risadas contidas da mulata — foi com um esforço atoleimado que o homem suportou a luz intensa do campo, como se não estivesse à altura de entender a claridade.
Mas, dia após dia — acabado o trabalho penoso que não saberia fazer se Vitória não o comandasse — ele descia da luz aberta e superior do campo, de onde vinha cego de incompreensão. E guiado por uma obstinação de sonâmbulo, como se o tremor incerto de uma agulha de bússola o chamasse — ia enfim ao terreno terciário de vida apenas fundamental, a par da sua. E com um suspiro de quem voltasse a si mesmo, encon¬trava a sombra vacilante, o movimento dos ratos, as grossas plantas. Naquele porão vegetal, que a luz mal nimbava, o homem se refugiava calado e bruto como se somente no princípio mais grosseiro do mundo aquela coisa que ele era coubesse: no terreno rastejante a harmonia feita de poucos elementos não o ultrapassava nem ao seu silêncio. O silêncio das plantas estava no seu próprio diapasão: ele grunhia aprovando. Ele que não tinha uma palavra a dizer. E que não queria falar nunca mais. Ele que em greve deixara de ser uma pessoa. No seu terreno, ali sentado, ficava gozando o vasto vazio de si mesmo. Esse modo de não entender era o primeiro mistério de que ele fazia parte inextricável.
É que o terreno terciário era de uma grande perfeição. Nem mesmo quando a luz se aproximava, chegava a transformar o ar do silêncio: a claridade, chegando através de etapas e etapas, de silêncio e silêncio, se reduzia ali a mera visibilidade, que é o máximo de que olhos precisam. Porque, àquele homem, sempre tinha sido dado muito mais do que ele precisara; pelo menos foi o que lhe pareceu agora, sentado no seu território que tanto lhe bastava. E se a visibilidade atingia o terreno, revelavam-se folhas mortas se decompondo, pardais que se confundiam com o chão como se fossem feitos de terra, as ratas negras e miúdas que haviam feito ninho naquele mundo rudimentar.
Como acontecia que Martim nunca entendera nem de plantas nem de animais, encontrou ali plantas e animais de novas e raras espécies. A ratazana era um ser grande de espécie rara e peluda com um longo rabo. A planta grudava uma boca no chão. O pássaro, levantando vôo baixo, era uma advertência que o homem acompanhava com a boca entreaberta. E ninguém guiava os passos de ninguém: a planta suja de poeira se compreendia assim como se enroscava. Ali era o escuro ar de que vive uma coisa. E Martim estava bem cercado pelas coisas que ele entendia: as moscas desovavam. E o sentido daquilo era o sentido mais primeiro daquele homem: estava ali como se houvesse um plano que ele ignorava mas a que uma planta se agregava com a boca e a que ele próprio correspondia sentando-se muito evidentemente na pedra — sentar-se numa pedra estava se tornando sua atitude mais inteligível e mais ativa.
E a coisa era de tal modo perfeita que até a perspectiva da distância se agregava àquele mundo sem Deus. Pois quando o homem erguia os olhos — as árvores distantes eram tão altas, tão altas como uma beleza: o homem grunhia aprovando. Quanto mais estúpido, mais em face das coisas ele estava.
Assim é que, aos poucos, a força de Martim foi se recons¬tituindo.
Apesar de ter querido da fazenda apenas pouso, comida e o uso do caminhão no momento mais favorável — os dias começaram a ser ocupados como ele não esperara. E seguiram-se em marteladas certas e ritmadas, mesmo que os dias fossem os próprios elos que lhe escapavam. As manhãs eram frescas, as árvores folhudas, os deveres se sucediam. A mulata examinava-o e ria, a criança negra vivia escondida a vigiá-lo. Mas ele se habituara. E movia-se lento como um homem que semeia. Seu grande silêncio não era apatia. Era uma profunda sonolência em guarda, e uma meditação quase metafísica sobre o próprio corpo, no que ele parecia estar atentamente imitando as plantas de seu terreno.
Lentamente sua força se reconstituía, e foi assim que se passou a primeira semana, a maior de todas as que ele passou no sítio. No fim da primeira semana, Vitória havia meses o governava arduamente, havia meses o homem suava num aprendizado penoso. E de tal modo nesta semana já havia acontecido o que quer que fosse, e de tal modo se haviam ligado os elos invisíveis que, ao fim de sete dias, sucedera essa coisa de que inesperadamente se toma consciência: um passado. E ao fim de uma semana havia inquietação e rumor indistinto no sítio como acontece quando, tudo tendo permanecido muito tempo sem evoluir, tudo quer se transformar.
Martim também se habituara sem resistência a ser constantemente mandado por Vitória que parecia ter descoberto um jogo incessante e impaciente: vigiá-lo e inventar trabalho para ele:
— Tenho um anglo-árabe que precisa ser rasquiado!
— Sim.
— Na verdade, disse ela então muito atenta, preciso menos que um engenheiro.
Mas a mulher chegou a duvidar que ele a tivesse ouvido ou compreendido.
— Eu disse, repetiu examinando-o surpreendida, que na verdade precisava de muito menos que um engenheiro!
— Se precisasse mais, é que ficava difícil, respondeu afinal o homem sem ao menos parecer importunado.
Seu rosto tranqüilo dava, no entanto, à mulher impaciente a idéia de que ele estava permanentemente divertido ou ocupado com alguma coisa que escapava aos outros:
— Isto, encerrou ela, isto é uma bobagem.
O ar do campo deixara-o cru e enrugado, com os olhos mais claros. Ele se movia devagar na grande extensão, desimpedido enfim pela ausência de pensamentos. Mas se sua compacta ausência de pensamento era um embotamento — era o embota-mento de uma planta. Pois como uma planta, ele estava alerta a si mesmo e ao mundo, com aquela mesma tensão delicada com que a grossa planta é planta até as suas últimas extremidades, com aquela delicada tensão com que a planta cega sente o ar onde suas duras folhas se engastam. O homem todo se reduzira a essa espécie de vigilância. O que estava lhe acontecendo era um desses períodos dos quais, depois que passam, se diz: nada aconteceu.
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Fonte:  http://claricelispector.blogspot.fr/2012/04/maca-no-escuro-trecho.html

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