Primeira parte: Como se faz um homem
Seis
Enquanto
isso, erguendo a lamparina acima da cabeça, Martim parecia quase tão
grande quanto o depósito. Lenha úmida se amontoava perto da enxerga que
ele olhou com sensualidade como se não dormisse há anos.
A
lucidez a que se forçara para responder às perguntas de Vitória já
desaparecera, e de suas mãos sumira a habilidade de que precisara para
instalar a porta. Com um abrutamento que as vacilações do clarão nas
paredes faziam gaguejar e tropeçar, respirou fundo o cheiro de couro
molhado do depósito, sacudiu a cabeça com força lutando por não
submergir. Embora não precisasse de si para nada, uma luta elementar
fazia-se nele no sentido de não soçobrar. É que a impressão ameaçadora
de estar perdendo elos importantes fazia com que ele se forçasse a ter
consciência de tudo: quando a luz esfumaçada da lamparina passava por
cima da enxerga, ele anotou com uma nitidez inútil um cinturão imóvel no
grande prego enferrujado e o quadro de papelão duro sem moldura.
Deste
o homem aproximou com obediência a lamparina e o próprio rosto
anestesiado que tentava se acordar: sob a gravura, em letras graúdas e
femininamente desenhadas como num bordado paciente, estava inscrito “S.
Crispim e S. Crispiniano”. Os olhos avermelhados do homem viram os dois
santos em seu trabalho de sapateiros. Gostou muito da gravura. As mãos
dos santos estavam por um instante paralisadas nas sandálias, num
silêncio perfeito que o artista dera por acaso.
Acima da auréola dos santos — dentro de um círculo esfumaçado para convencionar a distância futura do acontecimento —
estavam os mesmos S. Crispim e S. Crispiniano dessa vez fervendo
dentro da caldeira. “Diabo”, grunhiu o homem, “qual foi o crime deles?”
Mas embaixo da caldeira, enquanto o futuro não sucedia, os santos
verdes, azuis e amarelos — cores que em vez de violência davam à gravura
o grande espaço que cabe numa igreja — enquanto o futuro não sucedia,
os santos tinham a tranqüila concentração que sandálias a consertar
exigiam, como se nossa tarefa fossem as sandálias.
Na
sua pesada estupidez, que se manifestou num sorriso de submissão, o
homem insistiu em aproximar de novo a lamparina. É que, ainda deformado
pela necessidade de atenção da fuga, pareceu-lhe que também ali havia
um elo importante a lhe escapar, e ele então tocou com dedos tímidos o
rosto de papelão dos mártires como quem se achega furtivamente daquilo
que poderá se enfurecer. Depois, com vagares de minúcia, pôs os óculos.
Mas a verdade é que o elo continuou a lhe escapar, e seus olhos
aumentados pelos óculos só conseguiram obstinadamente repetir a visão
sem compreendê-la: no círculo esfumaçado a caldeira borbulhando, embaixo
dela instante calmo por instante calmo os sapatos se consertando. O
homem não conseguiu ir um passo adiante. Embora a muda cena do quadro
desse ao depósito uma perspectiva. O próprio depósito de lenha cheirava a
sapateiro.
Se aquele homem ainda se lembrava de como era o mundo —
naquele quadro havia alguma coisa a que ele certamente responderia se
ainda fosse gente. Aquilo que o homem aprendera e não esquecera de
todo, ainda o incomodava; era difícil esquecer. As coisas simbólicas
sempre o haviam incomodado muito. Mas estava tão bruto quanto a comida
que lhe pesava no estômago. Quando soprou a lamparina, a escuridão se
fez cheia de vento pela janela. E como se trevas encontrassem outras
trevas, o cansaço derrubou-o com alguma misericórdia no sono.
Até
que uma aurora pálida começou a se mexer. E a brisa soprou a primeira
fraca vida naquele depósito amornado por respiração, couro e entranhas.
Sem saber ainda o que fazia, o homem sentou-se na enxerga. Depois,
pessoa de fortes hábitos que era, ergueu-se.
Era
uma madrugada muito bonita. Quando ainda não há luz, e a luz é apenas o
ar, e a pessoa não sabe se está respirando ou vendo. Além do mais, do
longe veio-lhe o cheiro das vacas, o que sempre nutre de enlevo uma
pessoa: o cheiro de vacas amanhecidas veio misturado com a grande
distância que ele enxergou. Os olhos de Martim, tornados ignorantes pela
longa noite, olharam então com estranheza o terreno baldio que a meia
claridade de sonho revelou pela janela atrás do depósito. Aparentemente
esquecera de que dormira no campo. No terreno, através da névoa rasa,
viu com curiosidade infantil uma terra suja e seca, endurecida pela
madrugada. O homem não antecipou nada: viu o que viu. Como se olhos não
fossem feitos para concluir mas apenas para olhar.
Até
que, mais um segundo dessa própria isenção, e também sua cabeça foi
atingida com graça pela incompreensão do que ele via. E num engano de
que certamente precisou, um engano tão certo quanto a queda certa de uma
maçã, ele teve um sentimento de encontro: pareceu-lhe que no grande
silêncio ele estava sendo saudado por um terreno da era terciária,
quando o mundo com suas madrugadas nada tinha a ver com uma pessoa; e
quando, o que uma pessoa poderia fazer, era olhar. O que ele fez.
É
verdade que seus olhos custaram a entender aquela coisa que nada mais
do que: acontecia. Que mal acontecia. Apenas acontecia. O homem estava
“descortinando”.
O terreno fora
provavelmente uma tentativa, por fim abandonada, de jardim ou horta.
Percebiam-se restos de um trabalho e de uma vontade. Certamente haviam
alguma vez tentado estabelecer ali ordem inteligível. Até que a
natureza, antes expulsa pelo plano de ordem, voltara sorrateiramente e
lá se instalara. Mas em seus próprios termos.
Porque,
qualquer que tivesse sido a sua época de glória e viço, agora o terreno
tinha o silêncio do que é entregue a si mesmo. Havia algumas pedras
cinzentas e duras. Um pedaço de tronco deitado. Raízes expostas de uma
árvore havia muito tempo cortada, pois nenhuma umidade porejava mais no
corte oblíquo. Ervas cresciam verticais. Algumas haviam atingido uma
altura que já as tornava sensíveis à brisa adstringente da aurora.
Outras eram rasteiras e coladas ao chão, e deste não se arrancariam sem
morte. Terra grossa se esfarelava junto de um formigueiro; era uma
desordem tranqüila.
O homem ficou
olhando até que a vida que se instalara no terreno começou a acordar.
Mosquitos brilhantes, como se transportassem para ali o primeiro
carregamento de luz. O passarinho cauteloso entre folhas secas. De uma
pedra para outra, se cruzaram ratos e ratas. Mas na irmanação do
silêncio, como um fuso trabalhando, um movimento não se distinguia do
outro. Essa foi a sossegada confusão onde Martim caíra.
Durante
os incompreensíveis dias que se seguiram — todos os elos lhe
escapando, recebendo atordoado as primeiras ordens de Vitória, examinado
de longe por Ermelinda e ouvindo as risadas contidas da mulata — foi
com um esforço atoleimado que o homem suportou a luz intensa do campo,
como se não estivesse à altura de entender a claridade.
Mas,
dia após dia — acabado o trabalho penoso que não saberia fazer se
Vitória não o comandasse — ele descia da luz aberta e superior do campo,
de onde vinha cego de incompreensão. E guiado por uma obstinação de
sonâmbulo, como se o tremor incerto de uma agulha de bússola o chamasse —
ia enfim ao terreno terciário de vida apenas fundamental, a par da sua.
E com um suspiro de quem voltasse a si mesmo, encon¬trava a sombra
vacilante, o movimento dos ratos, as grossas plantas. Naquele porão
vegetal, que a luz mal nimbava, o homem se refugiava calado e bruto
como se somente no princípio mais grosseiro do mundo aquela coisa que
ele era coubesse: no terreno rastejante a harmonia feita de poucos
elementos não o ultrapassava nem ao seu silêncio. O silêncio das plantas
estava no seu próprio diapasão: ele grunhia aprovando. Ele que não
tinha uma palavra a dizer. E que não queria falar nunca mais. Ele que em
greve deixara de ser uma pessoa. No seu terreno, ali sentado, ficava
gozando o vasto vazio de si mesmo. Esse modo de não entender era o
primeiro mistério de que ele fazia parte inextricável.
É
que o terreno terciário era de uma grande perfeição. Nem mesmo quando a
luz se aproximava, chegava a transformar o ar do silêncio: a claridade,
chegando através de etapas e etapas, de silêncio e silêncio, se reduzia
ali a mera visibilidade, que é o máximo de que olhos precisam. Porque,
àquele homem, sempre tinha sido dado muito mais do que ele precisara;
pelo menos foi o que lhe pareceu agora, sentado no seu território que
tanto lhe bastava. E se a visibilidade atingia o terreno, revelavam-se
folhas mortas se decompondo, pardais que se confundiam com o chão como
se fossem feitos de terra, as ratas negras e miúdas que haviam feito
ninho naquele mundo rudimentar.
Como
acontecia que Martim nunca entendera nem de plantas nem de animais,
encontrou ali plantas e animais de novas e raras espécies. A ratazana
era um ser grande de espécie rara e peluda com um longo rabo. A planta
grudava uma boca no chão. O pássaro, levantando vôo baixo, era uma
advertência que o homem acompanhava com a boca entreaberta. E ninguém
guiava os passos de ninguém: a planta suja de poeira se compreendia
assim como se enroscava. Ali era o escuro ar de que vive uma coisa. E
Martim estava bem cercado pelas coisas que ele entendia: as moscas
desovavam. E o sentido daquilo era o sentido mais primeiro daquele
homem: estava ali como se houvesse um plano que ele ignorava mas a que
uma planta se agregava com a boca e a que ele próprio correspondia
sentando-se muito evidentemente na pedra — sentar-se numa pedra estava
se tornando sua atitude mais inteligível e mais ativa.
E
a coisa era de tal modo perfeita que até a perspectiva da distância se
agregava àquele mundo sem Deus. Pois quando o homem erguia os olhos — as
árvores distantes eram tão altas, tão altas como uma beleza: o homem
grunhia aprovando. Quanto mais estúpido, mais em face das coisas ele
estava.
Assim é que, aos poucos, a força de Martim foi se recons¬tituindo.
Apesar
de ter querido da fazenda apenas pouso, comida e o uso do caminhão no
momento mais favorável — os dias começaram a ser ocupados como ele não
esperara. E seguiram-se em marteladas certas e ritmadas, mesmo que os
dias fossem os próprios elos que lhe escapavam. As manhãs eram frescas,
as árvores folhudas, os deveres se sucediam. A mulata examinava-o e
ria, a criança negra vivia escondida a vigiá-lo. Mas ele se habituara. E
movia-se lento como um homem que semeia. Seu grande silêncio não era
apatia. Era uma profunda sonolência em guarda, e uma meditação quase
metafísica sobre o próprio corpo, no que ele parecia estar atentamente
imitando as plantas de seu terreno.
Lentamente
sua força se reconstituía, e foi assim que se passou a primeira semana,
a maior de todas as que ele passou no sítio. No fim da primeira semana,
Vitória havia meses o governava arduamente, havia meses o homem suava
num aprendizado penoso. E de tal modo nesta semana já havia acontecido o
que quer que fosse, e de tal modo se haviam ligado os elos invisíveis
que, ao fim de sete dias, sucedera essa coisa de que inesperadamente se
toma consciência: um passado. E ao fim de uma semana havia inquietação e
rumor indistinto no sítio como acontece quando, tudo tendo permanecido
muito tempo sem evoluir, tudo quer se transformar.
Martim
também se habituara sem resistência a ser constantemente mandado por
Vitória que parecia ter descoberto um jogo incessante e impaciente:
vigiá-lo e inventar trabalho para ele:
— Tenho um anglo-árabe que precisa ser rasquiado!
— Sim.
— Na verdade, disse ela então muito atenta, preciso menos que um engenheiro.
Mas a mulher chegou a duvidar que ele a tivesse ouvido ou compreendido.
— Eu disse, repetiu examinando-o surpreendida, que na verdade precisava de muito menos que um engenheiro!
— Se precisasse mais, é que ficava difícil, respondeu afinal o homem sem ao menos parecer importunado.
Seu
rosto tranqüilo dava, no entanto, à mulher impaciente a idéia de que
ele estava permanentemente divertido ou ocupado com alguma coisa que
escapava aos outros:
— Isto, encerrou ela, isto é uma bobagem.
O
ar do campo deixara-o cru e enrugado, com os olhos mais claros. Ele se
movia devagar na grande extensão, desimpedido enfim pela ausência de
pensamentos. Mas se sua compacta ausência de pensamento era um
embotamento — era o embota-mento de uma planta. Pois como uma planta,
ele estava alerta a si mesmo e ao mundo, com aquela mesma tensão
delicada com que a grossa planta é planta até as suas últimas
extremidades, com aquela delicada tensão com que a planta cega sente o
ar onde suas duras folhas se engastam. O homem todo se reduzira a essa
espécie de vigilância. O que estava lhe acontecendo era um desses
períodos dos quais, depois que passam, se diz: nada aconteceu.
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Fonte: http://claricelispector.blogspot.fr/2012/04/maca-no-escuro-trecho.html
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