sábado, 28 de abril de 2012

O antipoeta alcança o Cervantes

LINGUAGEM DA RUA 

RUBEN DANIEL CASTIGLIONI*

 

Para  hoje com 97 anos, em foto de 2001: o autor pediu que o neto de 19 anos o representasse na premiação pois levaria pelo menos um ano para escrever algo “medianamente plausível”

Nicanor Parra conquista a maior distinção literária para a produção em língua espanhola

Certa vez o escritor Jorge Amado viajou à Espanha e, na chegada, um ansioso repórter lhe perguntou: “Quando é que o senhor vai ganhar o Prêmio Cervantes?”. O baiano, entre surpreso e brincalhão, respondeu: “Quando escrever alguna coisa em castelhano!”.Essa distinção, cujo nome completo é Prêmio de Literatura em Língua Castelhana Miguel de Cervantes, é considerada o maior reconhecimento ao qual pode aspirar um escritor espanhol ou hispano-americano.

Só é merecedor aquele que tenha se destacado e contribuído ao enriquecimento do patrimônio literário em língua espanhola. Criado em 1975, geralmente é entregue pelo Rei da Espanha em 23 de abril (dia do falecimento do autor de Dom Quixote e Dia Internacional do Livro), na Universidade de Alcalá de Henares. Este ano foi outorgado merecidamente ao chileno Nicanor Parra. Físico e matemático, além de poeta, Nicanor pertence a uma família que se notabilizou pela dedicação às artes, principalmente à música e à literatura. Sua irmã, Violeta Parra, foi uma das mais conhecidas compositoras latino-americanas.

O poeta, hoje com 97 anos, disse que não iria à premiação porque estava preparando o discurso, e que demoraria pelo menos um ano para escrever algo “medianamente plausível”. Mandou seu neto de 19 anos para representá-lo. Sua avançada idade, seu medo de avião e certa aversão ao tumulto o impediram de viajar. Outro personagem ausente foi o Rei Juan Carlos, que se recupera de um acidente sofrido enquanto caçava elefantes na África.

Nicanor é conhecido principalmente por ser um poeta heterodoxo, por praticar a “antipoesia”, por buscar aproximar seus poemas com o dia a dia, evitando a erudição e expressando o modo de viver do homem comum. Usa a linguagem da rua, linguagem irônica, cotidiana e provocadora, e sua poesia se manifesta contra o statu quo – produção literária totalmente oposta ao estilo de outro famoso chileno, Pablo Neruda.

Sobre seus começos, em 1937, disse em entrevistas que teve a influência do espanhol Federico García Lorca, considerando-se ele mesmo um tipo de poeta espontâneo e ao alcance do público. Na época, a poesia surrealista do grupo Mandrágora se destacava no Chile; porém, enquanto os surrealistas representavam a evolução da poesia com uma imersão nas profundidades do inconsciente, Parra era o “reverso da moeda”, com suas formas poéticas coloquiais e burlescas.

Em seu poema Manifesto, escreveu: “Senhoras e senhores (...) os poetas desceram do Olimpo (...) o poeta é um homem como todos / Um operário (...)”. Para o poeta, aqueles que desperdiçaram seu tempo escrevendo sonetos à lua deveriam “ser processados e julgados”.

No discurso de entrega do Prêmio, o neto de Nicanor disse que leria alguns poemas e antipoemas de seu avô e que, possivelmente, teriam sido esses textos que mereceram a carinhosa atenção do júri que lhe deu o “Nobel das Letras Hispanas”. Leu, por exemplo:

SOMOS DOIS

ESTUDANTES

DE PEDAGOGIA

Não entendemos o professor

Tire-nos da dúvida seu Nicanor

Em que se diferencia a prosa do verso?

Diferença? Nenhuma!

Somente é questão de costume

Os poetas escrevem para baixo

Os prosistas escrevem para o lado

A maioria dos poemas de Nicanor Parra foram redigidos em uma velha máquina de escrever. Na falta do escritor, a máquina prestigiava a entrega do Prêmio em um lugar de destaque na cerimônia. Essa máquina tão importante foi presenteada pelo poeta ao Instituto Cervantes no dia seguinte à premiação, e será guardada em um cofre-forte durante exatos 52 anos, junto com um poema inédito. O presidente do Instituto Cervantes classificou esse ato como verdadeiramente antipoético, porque foi encarcerada “uma máquina do tempo”, que “marcou a história da América, das letras e da cultura com força subversiva”.

De volta ao discurso, seu neto disse:

“Neste momento, e de longe, meu avô pensa na seguinte pergunta:

– O senhor considera-se merecedor do Prêmio Cervantes?

– Claro que sim. Mereço o prêmio por um livro que estou por escrever”.

E complementou: “Aguardava por esse Prêmio? Não. Os prêmios são como Dulcineias de Toboso/ Quanto mais pensamos nelas/ mais longínquas/ mais surdas/ mais enigmáticas/ Os prêmios são para os espíritos livres / e para os amigos do júri.”

Talvez alguns estejam se perguntando se os integrantes do júri realmente leram seus poemas, e se os leram, como puderam dar o prêmio mais importante de literatura de língua espanhola a alguém que estilhaça a poesia, as convenções, e que põe em xeque a sociedade e a literatura. Nós, apreciadores de sua poesia fora da lei, e de seu pouco caso às homenagens, estamos comemorando.
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*Professor de literaturas de língua espanhola no Instituto de Letras da UFRGS
Fonte: ZH on line, 28/04/2012

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