terça-feira, 17 de abril de 2012

Religião e intolerância

Evandro Saldanha Jochims*

Depois de longas deliberações, o Superior Tribunal Federal decidiu pela descriminalização da prática de aborto para casos de fetos sem cérebro. O relator do processo, ministro Marco Aurélio Mello, entende que a decisão não fere a Constituição, pois em casos como esse, não existe possibilidade de vida fora do útero da mãe. É uma vitória importante para a ciência e para a qualidade de vida de centenas de mães, considerando o trauma e desespero causado pela certeza de uma gravidez que resultará em um filho natimorto.
Inacreditavelmente, durante o julgamento do processo, um grande grupo formado por representantes de entidades religiosas protestava em frente ao prédio do Supremo, em "defesa da vida". Já está virando rotina: toda vez que algum tema polêmico entra em discussão, ideologias religiosas tentam a todo custo interferir e mesmo impor suas convicções, por mais descabidas que sejam. Nos meses que antecederam ao julgamento deste processo, acompanhei alguns debates pela televisão. Em tais ocasiões, sempre se encontravam entre os presentes médicos, psicólogos, mães e pais, e é claro, um sacerdote. Num estado laico como o Brasil, a presença de religiosos nesse tipo de discussão é tão relevante quanto a presença de um juiz de futebol.
As convicções originadas pela crença religiosa devem orientar unicamente o sujeito na sua individualidade e na sua vida privada, jamais interferir na esfera social e coletiva, senão corre-se seriamente o risco de uma espécie de ditadura fundamentalista evangélica, como já vem ocorrendo nas esferas municipais, estaduais e federal, em que as chamadas "bancadas evangélicas" tentam monopolizar importantes decisões políticas. Por conta disso, a pluralidade de ideias e a diversidade de comportamentos e orientações sexuais não encontram espaço. Os muitos preconceitos ainda existentes, em vez de serem aos poucos eliminados, são reforçados. Os homossexuais, os ateus e outras minorias são sumariamente condenadas. Se ainda vivêssemos na Idade Média, iriam todos servir de combustível para uma grande fogueira em praça pública.
Recentemente, um estudante do Ensino Médio da cidade mineira de Miraí, Ciel Vieira, sofreu uma série de abusos morais e foi severamente hostilizado por uma de suas professoras e por sua turma de colegas, por ser ateu e ter se recusado a participar dos momentos de oração que antecediam as aulas da referida professora. Como costuma acontecer em tais casos, as opiniões, crenças e vontades de uma maioria sempre se impõem, ficando de lado o bom senso e a ética profissional. Em nome de supostas "tradições", pessoas são humilhadas, rebaixadas moralmente e muitas vezes tachadas de "esquisitas", "imorais", "pessoas sem fé" e outros termos menos agradáveis.
Nos meios de comunicação de massa, o que se vê geralmente é uma tentativa de reforçar estes posicionamentos, seja pela proliferação de emissoras evangélicas, seja pela emissão de opiniões que afirmam serem os ateus "pessoas sem limites, para as quais tudo é permitido" ou que "ser homossexual não é coisa de Deus". Me pergunto quando e onde tudo isso irá parar. Não é a toa que o Brasil é um dos países com maior incidência de assassinatos de homossexuais. Com o passar do tempo, a mentalidade das pessoas muda para melhor. O processo de globalização, acelerado pelos avanços das tecnologias da informação, traz novos ares, novas realidades, fazendo antigas ideias e crenças serem aos poucos sepultadas. No momento em que vivemos, não cabe mais querer impor ideologias que estão sendo prejudiciais ao ser humano. Em nome dos "bons costumes", estamos alimentando a intolerância e o ódio contra quem é diferente, pelo simples fato de ser diferente. É preciso acender uma luz, sair da caverna e ver a realidade com outros olhos.
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*Professor
Fonte: ZH on line, 17/04/2012
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