quarta-feira, 18 de abril de 2012

O meu ateísmo religioso

Alain De Botton*

Os ateus deveriam aprender a salvar
 tudo o que é belo, sábio 
e comovedor, ignorando o que não 
corresponde mais à verdade. 
A sabedoria das religiões pertence a toda a humanidade, 
também aos seres mais racionais, 
e merece ser reabsorvida 
de maneira seletiva, também pelos 
mais ardentes inimigos 
do sobrenatural. As religiões demonstraram 
ser muito úteis, eficazes e inteligentes para 
permanecerem como herança exclusiva dos  fiéis.

Eu cresci em uma família ateia convicta, filho de dois judeus seculares para os quais a fé religiosa equivalia quase a querer bem o Papai Noel. Lembro-me ainda quando meu pai fez com que minha irmã fosse às lágrimas na tentativa de fazê-la abandonar a sua vaga intuição de que um deus pudesse se encerrar em algum canto perdido do universo. Naquele tempo, minha irmã tinha oito anos. Se meus pais ficasse sabendo que algum membro do seu círculo de amizades nutria sentimentos clandestinos de religiosidade, eles começavam a manifestar com relação a ele aquela espécie de comiseração normalmente reservada aos que sofrem de doenças degenerativas do cérebro e, a partir daquele momento, não conseguiam mais levá-lo a sério.

Embora eu também estivesse fortemente condicionado pelas atitudes dos meus pais, entre os meus 20 e 30 anos, fui tomado por uma crise de irreligiosidade. Haviam sido as cantatas de Bach que fizeram surgir em mim as primeiras dúvidas, pouco a pouco aumentadas em seguida diante de certas Madonnas de Bellini, para depois se tornarem irrefreáveis com a descoberta da arquitetura zen. Somente muitos anos depois da morte do meu pai – que repousa sob uma lápide com inscrições em hebraico no cemitério israelita de Willesden, em Londres, porque estranhamente havia se esquecido de dar disposições mais seculares – é que eu comecei a enfrentar seriamente a minha indecisão com relação aos princípios doutrinais que haviam sido inculcados em mim desde a infância.

Mesmo sem ter vacilado jamais na certeza da não existência de Deus, descobri com grande alívio que poderia haver um modo de alimentar sentimentos religiosos sem ter que aceitar o conteúdo sobrenatural de uma fé específica – em termos mais abstratos, como chegar aos Pais sem ter que renegar a recordação respeitosa do meu pai. Eu consegui admitir finalmente que a minha rejeição obstinada a toda teorias sobre a vida ultraterrena e de residência celeste não era uma razão suficiente para me privar da música, da arquitetura, das orações, dos rituais, das festividades, dos santuários, das peregrinações, da partilha das refeições e das esplêndidas miniaturas que tantas religiões têm a nos oferecer.

A sociedade secular, infelizmente, se empobreceu com a perda de toda uma série de práticas e de temáticas que são particularmente indigestas aos ateus, porque parecem reconectar-se muito estreitamente com "os maus odores da religião", para usar a expressão de Nietzsche. A moral é uma palavra que nos assusta. Irritamo-nos com o pensamento de ouvir uma pregação. Fugimos da ideia de que a arte deve transmitir uma mensagem edificante ou encarnar um projeto ético. Já não vamos mais a peregrinações. Não sabemos mais construir templos. Não conhecemos mais os mecanismos para expressar o nosso reconhecimento. Os mais cultos acham absurda a ideia de ler um livro de conselhos práticos sobre como viver melhor. Rejeitamos todo exercício mental. Nunca vemos estranhos que se reúnem para cantar juntos. Encontramo-nos diante da escolha entre a submissão a estranhos conceitos concernentes a divindades imateriais a a renúncia a tantos rituais profundos e consoladores, ou simplesmente fascinantes, dos quais não encontramos facilmente outros equivalentes em uma sociedade secular.

Os ateus mais aguerridos permitiram que a religião se arrogasse o domínio exclusivo de áreas inteiras da experiência humana que pertencem, ao contrário, à humanidade inteira e que devemos incorporar novamente ao domínio secular, sem falsos embaraços. O cristianismo primitivo havia se revelado genial na apropriação das boas ideias das outras crenças, acolhendo uma infinidade de práticas pagãs que os ateus modernos evitam, na convicção errada de que se trata de características tipicamente cristãs.

A nova fé se apoderou das festividades de inverno e as repropôs com o Natal. Soube absorver o ideal epicurista do viver juntos em uma comunidade filosófica e o transformou na vida monástica. O desafio que hoje se coloca à moderna sociedade secular é como inverter o processo de colonização religiosa: como separar ideias e rituais das instituições religiosas que deles se apropriaram, sem ter, na realidade, nenhum direito sobre eles.

A minha estratégia, temo, irá incomodar os partidários de ambos os lados do debate. Os fiéis se ofenderão com a resenha rápida, seletiva e pouco sistemática da sua fé. As religiões não são um bufê, protestarão eles, do qual podemos escolher este ou aquele acepipe a gosto.

Mas não nos esqueçamos, todavia, que a ruína de muitas religiões foi provocada justamente pela insistência teimosa de obrigar os seguidores a comer tudo o que lhes era posto no prato. Por que não é possível apreciar o retrato da “Modéstia” nos afrescos de Giotto e ignorar a doutrina da Anunciação, ou admirar a compaixão de Buda, mesmo mantendo-se distante das suas teorias sobre a vida após a morte?

Para alguém que não nutre nenhuma crença religiosa, certamente não será um sacrilégio ir ao encontro de uma vasta gama de fés, assim como não é para um amante da literatura que identifica uma dezena de escritores preferidos entre os incluídos no cânone.

Os ateus militantes também poderiam se alarmar e se ofender diante de uma abordagem que trata a religião como se merecesse representar ainda um ponto de referência das nossas aspirações. Eles apontarão o dedo contra a furiosa intolerância institucional de muitas religiões e indicarão as ricas reservas de intuições e consolações que nos são oferecidas pela arte e pela ciência, mais lógicas e liberais do que as fés. Além disso, poderiam perguntar por que aqueles que se professam incapazes de aceitar as tantas facetas de uma religião – que justamente não consegue se convencer do nascimento de uma virgem, apenas para dar um exemplo, ou aceitar que o Buda era a reencarnação de um coelho, como defendem as histórias dos Jataka sobre as existências anteriores – ainda querem mostrar interesse por um assunto tão comprometido quanto a religião.

A resposta a tudo isso é que as religiões merecem a nossa atenção pela sua ambição conceitual e por terem mudado o mundo como pouquíssimas instituições seculares conseguiram fazer. As religiões souberam combinar teorias éticas e metafísicas com o compromisso prático na educação, na moda, na política, nas viagens, na hospitalidade, nas cerimônias de iniciação, na edição de livros, na arte e na arquitetura – um tal leque de interesses que humilha as conquistas dos maiores e mais influentes movimentos e personagens seculares da história.

Para aqueles que se interessam pela difusão e pelo impacto das ideias, é difícil não ficar maravilhado diante dos extraordinários sucessos educacionais e intelectuais recolhidos pelos movimentos religiosos, em nível mundial.

Há aspectos das religiões que oferecem apoio e consolação até às mentes contemporâneas mais céticas. Os ateus deveriam aprender a salvar tudo o que é belo, sábio e comovedor, ignorando o que não corresponde mais à verdade. A sabedoria das religiões pertence a toda a humanidade, também aos seres mais racionais, e merece ser reabsorvida de maneira seletiva, também pelos mais ardentes inimigos do sobrenatural. As religiões demonstraram ser muito úteis, eficazes e inteligentes para permanecerem como herança exclusiva dos fiéis.
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A opinião é do *filósofo e escritor suíço Alain de Botton, em artigo publicado no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 15-04-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 18/04/2012
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