Rodrigo Constantino*
“Nossa Constituição foi feita apenas
para pessoas morais e religiosas. Ela é totalmente inadequada para o
governo de qualquer outro povo”.
– John Adams
Em tempos de excessivo materialismo no
Ocidente e até mesmo de confusão entre estado laico e estado
antirreligioso, especialmente com o cristianismo e o judaísmo sendo os
alvos dos mais duros ataques da esquerda, que prefere poupar o Islã,
vale a pena ler o que Jonathan Haidt diz sobre o assunto em seu
excelente The Righteous Mind. Haidt é um cientista que segue a
psicologia moral e busca entender a sociedade com base nas teorias
evolutivas. Para ele, os ateus modernos erram no alvo quando descrevem
as religiões como “vírus”, ou só focam no lado violento de seu
subproduto.
Recentemente, tivemos uma série de
livros atacando com veemência as religiões, a ponto de se falar em um
Novo Ateísmo, bem mais militante e radical. O primeiro deles foi The End of Faith de Sam Harris, seguido de The God Delusion de Richard Dawkins, Breaking the Spell de Daniel Dennett e, com o título mais explícito de todos, God is not Great de Christopher Hitchens. Estes quatro autores são conhecidos como os quatro cavaleiros do novo ateísmo.
Para Haidt, tentar entender a
persistência e a paixão da religião ao estudar as crenças sobre Deus é
como tentar entender a persistência e a paixão do futebol ao estudar os
movimentos da bola. Você deve ampliar o escopo. Você deve olhar para as
maneiras pelas quais as crenças religiosas trabalham com as práticas
religiosas para criar uma comunidade religiosa. Elas têm implicações
claras para a mudança social.
Se a religião é um vírus ou um parasita
que explora um conjunto de subprodutos cognitivos para seu benefício,
não o nosso, então devemos nos livrar dela. Cientistas, humanistas e o
pequeno número de outros que escaparam da infecção e ainda são capazes
de raciocinar devem trabalhar juntos para quebrar o feitiço, derrubar a
ilusão e levar ao fim da fé. Essa parece ser a crença desses autores.
Mas se os deuses evoluem (culturalmente)
para condenar comportamentos egoístas e divisivos, eles podem então ser
usados para promover a cooperação e a confiança dentro do grupo. Você
não precisa de um cientista social para lhe dizer que as pessoas se
comportam menos eticamente quando pensam que ninguém pode vê-las. Esse
foi o ponto de Glauco sobre o anel de Gyges, na filosofia grega, e um
grande número de cientistas sociais provaram que ele estava certo. O
poder corrompe, como sabia Lord Acton, Tolkien com O Senhor dos Anéis e H.G. Wells com O homem invisível.
O poder da impunidade, da invisibilidade, corrói a alma, e é preciso um
esforço quase desumano de um santo para resistir às tentações e se
manter ético.
Criar deuses que podem ver tudo, e que
odeiam trapaceiros e quebradores de juramentos, é uma boa maneira de
reduzir trapaças e desvios. Os deuses irritados tornam a vergonha mais
efetiva como meio de controle social. Há, de fato, uma grande evidência
de que as religiões, na verdade, ajudam os grupos a coexistir, a
resolver problemas de “caronas grátis” e a vencer a competição pela
sobrevivência em um nível grupal, coletivo.
Quando as organizações seculares exigem
sacrifício, cada membro tem o direito de pedir uma análise de
custo-benefício, e muitos se recusam a fazer coisas que não fazem
sentido lógico. Em outras palavras, as práticas muito rituais que os
novos ateus descartam como dispendiosas, ineficientes e irracionais se
tornam uma solução para um dos problemas mais difíceis que os humanos
enfrentam: a cooperação sem parentesco.
O sagrado une as pessoas e depois as
cega para a arbitrariedade da prática. Mas a prática em questão pode ser
positiva para a comunidade, como quando jovens estão dispostos ao
sacrifício de uma guerra para lutar pela Pátria, pela liberdade, pela
comunidade. Como E.O. Wilson diz: “As religiões existem principalmente
para que as pessoas consigam juntas o que elas não conseguem por conta
própria”. Se o comportamento religioso teve consequências, para
indivíduos e para grupos, de uma forma que foi estável ao longo de
alguns milênios, então quase certamente houve algum grau de evolução da
cultura genética para “mentes justas” que acreditavam em deuses e depois
usavam esses deuses para criar comunidades morais.
Deuses e religiões, em suma, são para
Haidt adaptações em um nível de grupo para produzir coesão e confiança.
Pedir às pessoas que desistam de todas as formas de pertencimento
sacralizado e que vivam em um mundo de crenças puramente “racionais”
pode ser como pedir às pessoas que abandonem a Terra e vivam em colônias
orbitando a Lua. Isso pode ser feito, mas seria preciso uma grande
engenharia cuidadosa, e mesmo depois de dez gerações, os descendentes
desses colonos podem encontrar-se com desejos incipientes de gravidade e
vegetação.
Estudos de doações de caridade nos
Estados Unidos mostram que as pessoas na faixa menos religiosa da
população fornecem apenas 1,5% do seu dinheiro para a caridade. As
pessoas na faixa mais religiosa (com base na presença na igreja, não
crença) dão uma enorme parcela da renda para caridade: 7%. E a maioria
dessas doações é para organizações religiosas, mas também dão tanto
quanto ou mais do que pessoas seculares a instituições de caridade
seculares, como a American Cancer Society. Eles passam muito tempo em
serviço para suas igrejas e sinagogas, mas também passam mais tempo do
que os povos seculares trabalhando em associações de vizinhança e
cívicas de todos os tipos.
Putnam e Campbell fizeram vários estudos
sobre o assunto, e colocaram suas descobertas sem rodeios: por muitas
medidas diferentes, os americanos religiosos são melhores vizinhos e
melhores cidadãos do que os americanos seculares – eles são mais
generosos com seu tempo e dinheiro, especialmente em ajudar os
necessitados, e são mais ativos na vida comunitária. Do ponto de vista
estritamente social, portanto, não parece ser muito racional odiar tanto
as religiões “irracionais”.
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* É economista e colunista brasileiro. É graduado
pela PUC-RJ e possui MBA pela Ibmec. Foi articulista da revista "Voto"e
escreveu regularmente para os jornais "Valor Econômico" e "O Globo".
Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/rodrigo-constantino/artigos/funcao-social-da-religiao/?utm_medium=feed&utm_source=feedpress.me&utm_campaign=Feed%3A+rconstantino 22/07/2017
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