sexta-feira, 7 de julho de 2017

PACOTES DE SILÊNCIO


Tatiana Salem Levy*
 Resultado de imagem para "Pape Satàn Aleppe" (Ed. Record).
Umberto Eco era um dos últimos sobreviventes de uma espécie em extinção. Escritor, crítico, filósofo, semiólogo, ensaísta, historiador, bibliófilo e, ao mesmo tempo, grande analista da contemporaneidade. Morreu no ano passado, mas ainda nos deixou um derradeiro livro, "Pape Satàn Aleppe" (Ed. Record). O título é uma citação de um verso do Inferno de Dante. Embora vários comentaristas tenham tentado encontrar um sentido para ele, a maioria concluiu que não tem nenhum significado preciso. Pronunciado por Pluto, ele confunde as ideias. Por isso, Eco o escolheu como título dessa coletânea de textos publicados na revista "L'Espresso" entre 2000 e 2015 - suas famosas Bustinas -, que, assim como o nosso tempo, "é desconexa, vai do galo ao asno e reflete a natureza líquida destes quinze anos". 

É de Zygmunt Bauman - outro grande nome desaparecido recentemente - que ele toma emprestada a ideia de sociedade líquida. As crises do Estado, das ideologias, dos partidos e, em geral, "de qualquer apelo a uma comunidade de valores que permita que o indivíduo se sinta parte de algo capaz de interpretar suas necessidades" fez surgir um individualismo desenfreado, em que ninguém é mais companheiro de ninguém. Sem qualquer ponto de referência, tudo se dissolve numa espécie de liquidez. No desespero, as únicas saídas para esse novo indivíduo são o aparecer a qualquer custo e o consumismo. 

Com a bagagem de um escritor que atravessou a maior parte do século XX - quando ainda se acreditava no Estado, na comunidade, na ideologia -, Eco interpreta nosso estado líquido em divagações que tratam dos mais variados assuntos, em geral inspiradas pela atualidade, mas não só, pois não são poucas as vezes em que passeia por um livro antigo, um acontecimento passado ou até mesmo uma revistinha do "Popeye".

Os pequenos ensaios podem ter temas variados, mas há certas ideias que permeiam o livro todo. Comecemos pela do "aparecer a qualquer custo". Ao pensar no neto, que em 2002 tinha dois anos, Eco sentencia: "para este menino que cresce, parecerá natural viver num mundo onde o bem primário será a visibilidade. (...) todos farão de tudo para aparecer, na televisão ou naqueles canais que até lá terão substituído a televisão". O desespero das pessoas em quererem obter seus segundos de fama, dar um tchauzinho na tela a qualquer custo, atormenta o autor.

Há nem tanto tempo assim, existia uma diferença entre ser famoso e ser falado. "Todos queriam ser famosos como o melhor arqueiro ou a melhor bailarina, mas ninguém queria cair na boca do povo como o maior corno da cidade", lembra Eco. Hoje, essa distinção está a um fio de desaparecer: "Para serem vistas ou faladas, as pessoas estão dispostas a fazer qualquer coisa". Qualquer coisa mesmo, desde que no dia seguinte se consiga ser reconhecido pelo padeiro ou pelo banqueiro. Por um pouco de fama, as pessoas se dispõem a se declarar um falsário, um assassino, um corrupto. Tudo pelo espetáculo - confesso que aqui, e em vários outros momentos do livro, fiquei pensando no que se tornou a nossa política, um verdadeiro espetáculo de pessoas que, longe de pensar no bem comum, mais parecem palhaços desesperados por abocanhar não apenas os seus milhões, mas também seus minutos de fama. Muito pior do que um "Big Brother", que a gente sabe que é feito para isso. Já a política...

"Basta olhar o ar orgulhoso do corrupto ou do espertalhão quando aparece no telejornal, talvez no dia mesmo da prisão: aqueles minutos de notoriedade valem a cadeia, melhor ainda se tiver prescrição, e eis por que o acusado ri", comenta Eco. Poderia a atual política brasileira ser menos parecida com essa descrição, e nós agradeceríamos.

A questão do ser visto não passa apenas pela fama, mas também por uma sociedade que tem cada vez mais um controle quase absoluto de seus cidadãos. Antes, era preocupante que soubessem o que havíamos consumido, quando e onde pelo extrato do cartão de crédito. Agora, o controle é muito maior. Já sabemos há um tempo que as redes sociais (sobretudo o Facebook) são utilizadas pelos vários poderes com funções de controle, muitas vezes graças à contribuição dos seus usuários. "Pela primeira vez na história da humanidade, os espionados colaboram com os espiões", diz Eco.

Quem nunca foi pesquisar um assunto na internet e não viu chover nos dias seguintes, em suas contas de e-mail, Facebook ou Instagram, anúncios relacionados ao tema? Experimentem pesquisar acerca de um mito grego para ver se não vão receber ofertas imperdíveis de cruzeiros na Grécia? E agora basta irmos a um lugar com o celular ligado para saberem que lá estávamos e nos bombardearem com mais anúncios. Lembram do panóptico de Bentham, sobre o qual Michel Foucault tanto discorreu em "Vigiar e Punir"? Virou brincadeira de criança, perto do que se tornou a sociedade..

Outro tópico que perpassa o livro é a nova tecnologia e as conseqüências delas nas relações, seja entre professor e aluno, seja entre amigos. O interessante é perceber como, por um lado, ele defende valores pré-internet e, por outro, mostra-se aberto à nova realidade. Eco toca com freqüência no fato de que os estudantes deixaram de consultar livros didáticos e enciclopédias para buscar informações diretamente na internet. Sugere, então, que a nova e fundamental matéria que deveria ser ensinada nas escolas é "uma técnica de seleção das informações on-line". E ainda defende que o aluno que copia bem deve ganhar uma nota alta, pois a arte de copiar bem é uma tarefa difícil..

Ele tem razão. As escolas precisam se adaptar ao mundo de hoje em vez de combatê-lo como se fôssemos voltar atrás. Ensinar a encontrar as informações mais relevantes, as informações falsas, ensinar a relacionar os conteúdos, a ler e interpretar. Um bom professor e um aluno inteligente sabem que não basta copiar e colar. É preciso saber fazê-lo. Afinal, "a internet nos diz quase tudo, exceto como buscar, filtrar, selecionar, aceitar ou rejeitar as informações".

Mas às vezes voltar para trás é importante. "O progresso não consiste necessariamente em ir sempre adiante a qualquer custo", reflete Eco. E continua: "o progresso também pode significar dar dois passos atrás, como voltar à energia eólica no lugar do petróleo e coisas do gênero". Saber desligar o celular e retomar a solidão, a reflexão silenciosa sobre nós mesmos, é outro passo para trás em direção ao progresso. Umberto Eco costumava deixar o celular desligado e só o ligava quando precisava consultar a agenda ou telefonar a alguém. Seu argumento: "Quando meu pai morreu, há mais de quarenta anos, eu estava viajando e só pude ser contatado muitas horas depois. Pois bem, estas horas de atraso não mudaram nada".

Outro problema do celular: a máquina fotográfica. O presencialismo de um olho mecânico à custa do cérebro alterou o comportamento das pessoas. Fotografamos tudo o que vemos para ver depois o que acabamos por não ver na hora. Trocamos a experiência pela fotografia que, em realidade, mais tarde. Provavelmente se perderá na nuvem... A incapacidade atual de estarmos presentes faz com que deixemos de ter experiências fundamentais para o amadurecimento. Eco relata a primeira vez em que se viu diante da morte, da dor e do desespero. Tinha onze anos quando viu um caminhão bater numa carroça de um camponês e sua esposa. A mulher foi parar no asfalto, com o cérebro para fora. Se fosse hoje, os que estavam à volta tirariam o celular do bolso. Naquela época, Eco guardou a imagem na memória. Imagem que, "mesmo a setenta anos de distância, continua a atormentar-me e a educar-me, transformando-me num partícipe não indiferente da dor dos outros".

"Pape Satàn Aleppe" fala ainda de política - e a política italiana muitas vezes nos faz pensar na nossa -, de literatura, de educação, mas eu queria terminar com um tema muito caro a Eco que coloca em desespero todos aqueles que o apreciam: o silêncio. "Compraremos pacotes de silêncio?" pergunta o título de uma bustina. O silêncio é um bem em via de desaparecimento. Há músicas (quase sempre ruins) nos elevadores, nos aeroportos, nos táxis, nos restaurantes. Televisões ligadas em todo lado. Todo mundo com seus fones de ouvidos. O rumor do trânsito está cada vez pior. Pessoas, aterrorizadas pelo silêncio e pela solidão, buscam "rumores amigos no celular".

"O silêncio está prestes a se tornar um bem caríssimo e, de fato, só está à disposição de pessoas abastadas que podem pagar mansões em meio ao verde ou místicos da montanha com mochilas nas costas", diz Eco. Pode ser que gerações futuras estejam mais adaptadas ao barulho, mas, para um percentual de indivíduos que se adaptam, milhares morrem pelo caminho. Eu, com certeza, serei um deles. A não ser que me torne rica o suficiente para comprar pacotes diários de silêncio. "Ainda vamos chegar ao momento em que aqueles que não aguentam mais o barulho poderão comprar pacotes de silêncio, uma hora num quarto forrado como o de Proust ao preço de uma poltrona no Scala de Milão", ironiza - ou profetiza - Umberto Eco.
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Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente 
E-mail: tatianalevy@gmail.com

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