Em artigo para a revista Época, o curador do Fronteiras do Pensamento
Fernando Schuler questiona a lógica de combate à desigualdade, propondo
um foco maior na erradicação da pobreza. Trazendo dados, relatórios e
argumentos, o cientista político propõe uma reflexão: até que ponto a
acumulação de capital é responsável pelos níveis de miséria em que uma
parcela da população mundial se encontra?
Partindo deste questionamento, o professor do Insper discute
estratégias e ações objetivas para um direcionamento da economia num
sentido que melhore a vida de todos. Schuler entende que sempre haverá
diferenças entre a renda das pessoas, na medida em que existem muitos
fatores que não se pode eliminar, como o esforço ou mesmo a sorte, que
causam essas variações.
Confira o artigo na íntegra!
O que é mais importante: eliminar a pobreza
ou combater os mais ricos?
| FERNANDO SCHULER
Alguém aí está preocupado com o tamanho da conta bancária de Jeff
Bezos? Bezos é o criador e principal acionista da Amazon. De vez em
quando eu adquiro um livro por lá. Leio um trecho grande que eles
disponibilizam no site e, se achar bacana, vou lá e compro. Não dou a
mínima para a posição de Bezos no ranking de bilionários globais.
Suspeito que ele também não. Eu leio meu livro e ele ganha alguma coisa
com isso. Estamos quites.
O mesmo vale para um espanhol discreto chamado Amâncio Ortega. Filho
de um ferroviário de Valladolid, Ortega começou trabalhando como office
boy em La Coruña, aos 14 anos. Nos anos 1970, criou a Zara e fez uma
pequena revolução no varejo, não isenta de altos e baixos. De vez em
quando compro uma camisa por lá. Sorte de quem comprou ações da Zara,
tempos atrás. A valorização foi de 580% entre 2008 e 2016. Para uns, a
Zara trabalhou bem. Muita gente investiu na empresa para ganhar algum
dinheiro. Para outros, o capitalismo “concentrou” riqueza.
Ortega e Bezos fazem parte da lista de oito bilionários que a ONG
global Oxfam, em relatório recente, afirma possuírem uma riqueza
equivalente à metade mais pobre dos seres humanos. Segundo a Oxfam,
trata-se de uma aberração. Talvez seja mesmo. Talvez o mundo fosse
melhor sem essa turma de bilionários abrindo lojas reais e virtuais,
vendendo livros, roupas e oferecendo ações no mercado. Talvez não. Vai
que o problema esteja do outro lado da pirâmide. Na falta. É o que vamos
discutir rapidamente a seguir.
O relatório afirma que o rendimento dos mais ricos, mundo afora, não é
proporcional ao valor efetivamente adicionado à atividade econômica.
Inútil perguntar como os técnicos da Oxfam fizeram essa conta. Não há,
por óbvio, cálculo nenhum. Apenas uma colagem de notícias dispersas e
narradas de uma certa maneira. Elas vão desde a existência de paraísos
fiscais, passando pela esperteza dos contadores que fazem planejamento
tributário, privatizações russas, subsídios e isenções fiscais,
políticas de austeridade, pela destruição de terras indígenas no Brasil
até o lobby da indústria farmacêutica contra a Tailândia e a crise na
indústria têxtil de Bangladesh. A colagem produz uma narrativa trágica
do mundo atual. Um “sistema” ordenado para beneficiar o 1% mais rico e
liderado por gente que sabe o que faz.
A colagem também funciona para a estatística. O relatório diz que a
riqueza dos 62 seres humanos mais ricos cresceu 45% entre 2010 e 2015,
enquanto a metade mais pobre perdeu 38%. O mesmo gráfico, porém, mostra
que, nos dez anos anteriores, a riqueza da metade mais pobre cresceu 3,5
vezes mais que a conta bancária dos 62 felizardos. O que isso
significa? O capitalismo era bacana até o Natal de 2010 e se tornou
“obsceno” a partir de 2011? Perfeita falácia estatística. Padrões de
renda e crescimento econômico apresentam enormes variações de curto
prazo, mas é possível perceber uma tendência ao longo do tempo.
O relatório da Oxfam traz à tona, mais uma vez, uma das perguntas
fundamentais de nossa época: devemos, como sociedade, priorizar a
eliminação da pobreza ou o combate aos mais ricos? Alguém sempre poderá
dizer que as duas respostas estão erradas. Que a prioridade deve ser bem
mais modesta: preservar a liberdade, a igualdade diante da lei e não
ficar imaginando coisas. É possível. Mas por ora deixo de lado essa
alternativa e concedo que tenhamos de decidir sobre um conceito de
“justiça social”. E há duas opções: a guerra aos ricos ou a guerra à
pobreza.
Os que optam pela guerra aos mais ricos não chegam a dizer, em regra,
que os 50% da base da pirâmide está mais pobre porque um punhado de
bilionários enriquece demais. Mas essa é sua mensagem. Trata-se de um
exercício de correlação com uma vaga causalidade. Também não se explica
em que consistiria uma “desigualdade razoável”. Vamos imaginar que a
riqueza da metade mais pobre correspondesse à fortuna dos 800 mais
ricos, ao invés de oito. Faria alguma diferença? Quem acha que a
desigualdade é importante deveria definir essas coisas, dizer qual é,
afinal de contas, a linha vermelha de assimetria de renda que não
devemos cruzar. Ou quem sabe bastem apenas as impressões e intuições de
quem escreve um relatório? Não sei. Fui em frente.
Meu ponto: concentrar o foco de uma visão sobre a justiça social no
combate à desigualdade ou aos mais ricos é simplesmente um erro. Entre
1990 e 2010 (o próprio relatório da Oxfam reconhece isto), a proporção
de pessoas vivendo na extrema pobreza caiu de 36% para 16%. Houve um
incremento da igualdade entre os países, ainda que um aumento da
desigualdade de renda em países avançados como os Estados Unidos, França
e Inglaterra, assim como na China e na Índia. A revolução tecnológica
produziu ganhos assimétricos. Os muito ricos ganharam, mas ganhou também
uma enorme e multiforme camada de trabalhadores pobres do mundo em
desenvolvimento. É o caso da ascensão da chamada “classe C”, no Brasil.
Nada muito diferente do que ocorreu na maioria dos países
latino-americanos.
A própria ONU identificou o equívoco da “narrativa da desigualdade”.
Eliminar a pobreza extrema do planeta até 2030 é a primeira de suas
“metas para o desenvolvimento sustentável”, lançadas em 2015. A ONU
acertou o foco. Ninguém daria a mínima para a desigualdade se não fosse a
existência da pobreza. Esse é o ponto enfatizado pelo filósofo Harry
Frankfurt, professor em Princeton e autor de On Inequality. Não há um
problema ético na distância que separa a renda da classe média bem
estabelecida e dos mais ricos. Se todos tivessem o suficiente, ninguém
daria atenção ao valor das ações de Amâncio Ortega no pregão de
segunda-feira.
O ponto é que errar o foco em um tema delicado como este acaba
produzindo imensos equívocos na formulação de políticas públicas. No
Brasil, a carga tributária alcançou 32,7% do PIB em 2015. Será mesmo que
nosso problema é aumentar impostos? Nosso investimento em educação,
como proporção do PIB, é maior do que a média da OCDE, enquanto nossos
alunos de escolas públicas tiram último lugar no Pisa. O problema é
dinheiro? É a “desigualdade” a causa da péssima qualidade de nosso
sistema estatal de ensino básico? Gastamos mais para cobrir o déficit da
Previdência do setor público (cuja média de vencimentos é de R$ 7.500)
do que em programas de transferência de renda aos muito pobres.
Precisamos de mais impostos ou corrigir nosso sistema previdenciário?
Vai aí um dos mistérios da “narrativa da desigualdade”. Sua receita
quase única é aumentar a arrecadação fiscal, por óbvio sobre os “mais
ricos”. Na prática, a receita é transferir recursos do mercado para o
governo. Governos são administrados por políticos e respondem à lógica
do mercado político. Isso implica acreditar que os políticos serão mais
eficientes que o mercado para alocar recursos, seja qual for o conceito
de justiça em jogo. E explica por que a narrativa da desigualdade se
coloque sempre como irmã siamesa da crença no governo. Venha daí, quem
sabe, o discurso do relatório da Oxfam combatendo as “reformas de
mercado” na educação e na saúde e pedindo, contra todas a evidências
disponíveis, mais “setor público” nessas áreas.
Há um elemento moral na “narrativa da desigualdade”: a visão turva da
riqueza como um “problema”. O relatório da Oxfam afirma que, do jeito
que as coisas estão indo, “poderemos ter o primeiro trilionário nos
próximos 25 anos”. Quando li isso achei bacana. Não apenas um. Quem sabe
dezenas de trilionários. De preferência, pensei, fazendo como Bill
Gates, Warren Buffet, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Larry Ellison e
Michael Bloomberg, que já se comprometeram a doar a maior parte de sua
fortuna para a filantropia. Na retórica da desigualdade, o virtual
surgimento de um trilionário soa como ameaça. Não importa como ele ganhe
sua fortuna ou o que faça com ela.
Há certa coerência aí. Nas alegorias da narrativa da desigualdade,
empresários e altos executivos são tipos malandros que convidam uns aos
outros para os conselhos das empresas e trocam gentilezas na
distribuição de bônus e dividendos. O relatório sugere mesmo que os
espertos concentram a divulgação de boas notícias na hora de retirar
pacotes de ações, concluindo que um modelo alternativo poderia se
inspirar na gestão coletiva de cooperativas do setor de vegetais na
Tanzânia. Lendo isso, me lembrei de minhas primeiras aulas de
sociologia, nos anos 1980. O raciocínio era o mesmo, e um dia arrisquei
perguntar: mas o pessoal não fica rico também porque trabalha? A
professora sorriu, irônica. Havia me esquecido daquele sorriso, mas
agora me lembrei dele, lendo o relatório da Oxfam.
O ódio aos mais ricos tem uma longa biografia. Suspeito que ela se
ponha, em nossa época, no lugar um dia ocupado pela retórica do
socialismo. O socialismo ainda tinha a vantagem de representar uma
“utopia positiva”. O ódio aos ricos soa como um resmungo. Nietzsche,
mais que ninguém, identificou esse traço da cultura ocidental que
consiste na condenação moral “dos espíritos mais fortes”. Aqueles que
“reacenderam várias vezes as paixões adormecidas, despertaram o senso de
comparação, de contradição, o encanto pelo novo, pelo arriscado, pelo
inusitado”. Não importava que fosse o poeta ou o condottieri. Também não
importaria que fosse o herói da inovação da economia global. O
bilionário self-made man, capaz de romper paradigmas e construir um
mundo próprio, em regra ligado à revolução tecnológica. Eles são os
“bons”. Servem de exemplo e definem um modelo. E precisamente por isso
devem ser “julgados”. Sua riqueza é obscena. Não importa que doem 99%
para a filantropia. Seu pecado é de um tipo que não pode ser perdoado.
A retórica da desigualdade e sua fixação nos mais ricos é um discurso
de combate político. Daí seu charme e interesse. Trata-se de uma
retórica mobilizadora, ao contrário do tema complexo e “morno” como o
enfrentamento da pobreza. É mais fácil mobilizar uma passeata “contra o
1%” que arranjar pessoas dispostas a ir a uma comunidade periférica e
pôr a mão na massa para apoiar projetos emancipadores.
Estimular movimentos sociais e comunidades a ocupar seu tempo
“combatendo os mais ricos” é induzir pessoas pobres a empregar sua
melhor energia em um universo retórico que conduz a lugar nenhum. Focar
naquilo que faz falta, ao invés de apostar nas melhores possibilidades
de cada um. Espécie de “armadilha da escassez”, na expressão do
professor de Harvard Sendhil Mullainathan. Intuo que fariam melhor
seguindo a trilha de outro indiano, o Prêmio Nobel Amartya Sen e sua
concentração de foco na expansão das capacidades humanas. De sua
“liberdade” para exercitar talentos e inventar novos mundos. É uma
agenda menos excitante que erguer um cartaz em Wall Street ou em frente a
Fiespcontra um grande culpado por tudo. Mas talvez seja a que de fato
possa produzir algum resultado.
Por certo, há um tipo de desigualdade “obscena”: a que surge da
fraude e do “capitalismo de compadres”, fruto da pressão de corporações
públicas ou privadas no mercado político. Também a igualdade que surge
desse modo é obscena. O erro é confundir as coisas. Imaginar que toda
assimetria de renda e riqueza surge da fraude e deva ser em si mesma
condenada. A desigualdade é o resultado natural do uso que cada pessoa
faz de seus talentos e circunstâncias. Ou simplesmente da sorte. Ela é
também uma fonte de aprendizado. Eu posso aprender com os acertos de
Jeff Bezos e com os erros de Eike Batista.
O que parece não deixar dúvidas é que todos têm direito. Que a
pobreza extrema é a vergonha de nossa época, assim como foi a escravidão
até quase o final do século XIX. É aí que deve residir o foco de
qualquer visão sensata da justiça social. O resto funciona como uma
espécie de luxo. Luxo de brincar com a estatística, de fazer de conta
que não foi exatamente a globalização capitalista e suas “assimetrias”
que produziram o recuo monumental da pobreza nas últimas décadas. Luxo
de produzir espuma ideológica com o sofrimento humano e arrumar boas
manchetes no “mercado” global de informação.
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Fonte: http://www.fronteiras.com/artigos/o-que-e-mais-importante-eliminar-a-pobreza-ou-combater-os-mais-ricos - Acesso 10/07/2017
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