Anne Hathaway interpreta Jane Austen em 'Becoming Jane'
Passados 200 anos de sua morte, autora de 'Orgulho e Preconceito' e outros clássicos figura na nota de 10 libras
The Economist,
O Estado de S.Paulo
22 Julho 2017 | 16h00
22 Julho 2017 | 16h00
Com seus traços abreviados e indistintos, ela olha com expressão
vazia para o nada. Uma touca de renda mantém presos os cabelos escuros,
com exceção de algumas mechas que emolduram o rosto. Às suas costas,
vê-se um palacete rural e uma ilustração de Elizabeth Bennet, sua mais
célebre criação. Esse é o retrato de Jane Austen que aparece na nova
cédula de 10 libras, divulgada pelo governo britânico na terça-feira,
18, data do bicentenário da morte da escritora. É só mais um exemplo do
processo de reconfiguração e reinterpretação a que ela foi submetida, e
que resultou em sua ascensão à condição de sensação literária mundial.
Austen nasceu em 16 de dezembro de 1775. Foi à escola por algum
tempo, mas a despesa se mostrou excessiva e acabou se educando na
biblioteca de seu pai. Passou a adolescência escrevendo histórias de uma
alegria anárquica e espalhafatosa, em que personagens femininas se
envolviam em episódios de embriaguez e violência. Acredita-se que tenha
recebido uma proposta de casamento, mas acabou optando pela condição
financeiramente precária de solteira. Escreveu seis romances, dois dos
quais publicados postumamente; a renda que obteve com eles foi ínfima.
Morreu aos 41 anos, tendo sido sepultada no cemitério da Catedral de
Winchester.
Depois de sua morte,
apesar de Austen ter demonstrado tino comercial ao optar por permanecer
como detentora dos direitos autorais de suas obras mais maduras, a
família passou a retratá-la como uma mulher tímida e recatada, que
escrevia por prazer, não para auferir lucros. Sua irmã Cassandra tornou
ilegíveis trechos de muitas de suas cartas e destruiu outras tantas. O
epitáfio de Austen, escrito por seu irmão James, não faz menção a sua
carreira literária, registrando apenas sua “bondade, devoção, fé e
pureza”. Naquela que é considerada a primeira biografia da escritora,
seu sobrinho James Edward Austen-Leigh afirma que a “boa vida cristã” de
Austen foi “singularmente desprovida” de grandes acontecimentos.
O
que fez com que essa mulher aparentemente tão sem graça viesse a se
tornar uma das mais bem conhecidas escritoras britânicas? Num primeiro
momento, foi o fato de ela ter sido a precursora de um novo tipo de
romance: uma narrativa realista inteiramente derivada do cotidiano. O
editor John Murray recusava obras como Frankenstein, de Mary Shelley, mas aceitou publicar Emma porque
não encontrou em suas páginas “nenhum corredor sombrio, nenhuma câmara
secreta, nenhuma galeria varrida por ventos uivantes, nenhuma gota de
sangue brilhando na lâmina de uma adaga enferrujada”. Mas o que há de
excepcional em Austen é o modo como ela combina esse realismo com um
novo estilo narrativo, em que a voz do narrador se alterna
habilidosamente com os pensamentos mais íntimos dos personagens. Esse
“discurso livre indireto” permite ao leitor ver, pensar e sentir
exatamente como o personagem, ao mesmo tempo em que mantém um
distanciamento crítico e viabiliza a alternância entre diversos pontos
de vista. Trata-se de recurso original e inventivo.
Em princípios do século 20, o movimento sufragista incluiu Austen
em seu panteão de heroínas, exibindo nas passeatas faixas com seu nome,
como símbolo e prova da excelência intelectual das mulheres. Como diz a
professora da Universidade Estadual do Arizona, Devoney Looser, em The Making of Jane Austen (“A
Construção de Jane Austen”), publicado em maio, algumas ativistas a
reinventaram, transformando-a numa “rebelde discreta”, que desferia seus
ataques com sutileza e discrição. “É impossível imaginar Austen se
manifestando numa assembleia, e muito menos interrompendo um orador”,
escreveu a sufragista Bertha Brewster, “mas é perfeitamente possível
imaginá-la ironizando os discursos do (jornalista e deputado
conservador) Arnold Ward.” Ao invocar o nome de Austen — que era
admirada por homens e mulheres de todas as inclinações políticas —, as
sufragistas não apenas ganhavam um reforço de peso para seu movimento —,
como também reafirmavam o gênio singular da escritora. Se as mulheres
tiveram historicamente de lutar para se fazerem ouvidas, Austen se
impunha por seu talento inegável. Leitores de ambos os lados do debate
debruçaram-se mais uma vez sobre seus livros.
Fizeram isso de novo durante a 1.ª e a 2.ª Guerras Mundiais, como
observa a professora Kathryn Sutherland, da Universidade de Oxford. Os
romances de Austen, com suas narrativas delicadas, aparentemente
marcadas pela insularidade, eram recomendados para soldados
traumatizados pela guerra. Numa das fases mais sombrias da 2.ª Guerra,
Winston Churchill encontrou consolo na releitura de Pride and Prejudice (“Orgulho
e Preconceito”). O mundo ficcional de Austen era tido como um refúgio,
um anteparo contra a realidade; os leitores encontravam ali um retrato
da Inglaterra antes da queda.
No entanto, foi na década de 1990 que a Austenmania alcançou
dimensões inauditas, graças a uma série de adaptações para a TV e o
cinema. Algumas delas — como Metropolitan (1990) e Clueless (“As
Patricinhas de Beverly Hills”, 1995) — reencontravam os temas da
prosperidade econômica e do status social, tão caros a Austen, nos EUA
do século 20. As adaptações de Pride and Prejudice, Sense and Sensibility (“Razão e Sensibilidade”), Persuasion(“Persuasão”) e Emma, que chegaram aos cinemas entre 1995 e 1996, não mediam esforços no trabalho de reconstituição de época.
É comum que roteiristas e diretores abram mão da narração irônica
— amortecendo o poder de Austen — e apimentem sexualmente o enredo. A
cena em que o Darcy interpretado por Colin Firth sai de um lago com a
camisa branca encharcada não está em nenhuma das páginas escritas por
Austen. A festejada série Pride and Prejudice, de Andrew
Davies, teve audiência semanal de mais de 11 milhões de espectadores no
Reino Unido. Quase 4 milhões assistiram à estreia da série nos EUA.
De Chawton House a Chongqing. Embora seja vista
como quintessencialmente britânica, a obra de Austen ressoa pelo mundo
afora. Na Europa inteira realizaram-se eventos para celebrar o
bicentenário da morte da escritora. A Sociedade Jane Austen da América
do Norte diz contar com mais de 5 mil sócios; há clubes de leitura em
diversos países latino-americanos.
Em 2006, foi criada a Sociedade Jane Austen do Japão. Pride and Prejudice, Emma e Sense and Sensibility tiveram versões em mangá publicadas entre 2015 e 2016. Omangwa Pyungyeon, adaptação em 21 episódios de Pride and Prejudice,
ambientada no sistema judiciário da Coreia do Sul, bateu recordes de
audiência para o horário em que foi exibida, entre 2014 e 2015. Muitos
críticos apontam a influência de Darcy nos protagonistas do teatro
coreano.
Em The Genius of Jane Austen (“O Gênio de Jane Austen”),
publicado no mês passado, Paula Byrne diz que os chineses veem grande
afinidade entre Austen e sua cultura, onde a etiqueta ainda é tão
importante quanto era na Inglaterra georgiana. Pride e Prejudice já
teve mais de 50 edições na China. Isso talvez reflita o fato de que, no
país asiático, a expressão “mercado matrimonial” não é mera figura de
linguagem. Em Xangai, os pais de jovens solteiros afluem semanalmente a
um evento — descrito como “cruzamento de match.com com
feira livre” — onde buscam candidatos a genros e noras. Para as
mulheres chinesas, um considerável patrimônio imobiliário e um elevado
nível educacional ainda são atributos que fazem um “bom partido”. Byrne
observa que o diretor taiwanês Ang Lee foi considerado perfeito para
conduzir a adaptação de Sense and Sensibility (1995), uma vez que seus filmes anteriores exploravam “conflitos familiares num contexto de valores chineses tradicionais”.
Mas é na Índia e no Paquistão que o entusiasmo pelos romances de
Austen chega a causar assombro. Em ambos os países há sociedades
dedicadas ao estudo de sua obra. Adaptações para o cinema acrescentam à
atmosfera regencial dos livros de Austen a verve de Bollywood. Bride and Prejudice (“Noiva
e Preconceito”, 2004), que se passa na cidade de Amritsar, substitui
Elizabeth Bennet por Lalita Bakshi e as danças típicas do campo inglês
por casamentos indianos. Kandukondain Kandukondain (2000), produção romântica tâmil, e Kumkum Bhagya (2014), novela da TV indiana, são ambas baseadas em Sense and Sensibility; Aisha (2010) é uma adaptação de Emmaambientada entre a alta classe de Délhi.
A posição econômica e social das mulheres e sua reputação são
temas facilmente adaptáveis a diferentes contextos culturais, mas há
também especificidades que ressoam de forma particularmente aguda na
sociedade paquistanesa, como a importância dos laços familiares, a
preferência concedida aos herdeiros masculinos, o sistema de dotes
nupciais e a atividade casamenteira de mães e tias zelosas.
E é isso que explica a transformação da pouco conhecida escritora
solteirona em superstar literária. Para os leitores ocidentais talvez
já não faça muito sentido a urgência atribuída ao casamento ou a ideia
de que um relacionamento amoroso pode ser subitamente interrompido por
questões pecuniárias. Mas todo mundo um dia conheceu uma namoradeira
como Isabella Thorpe ou um sujeito tão encantador quanto sórdido como
Henry Crawford. Passados 200 anos, as argutas observações de Austen
sobre a vaidade e a insensatez humanas continuam acertar o alvo.
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Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,como-jane-austen-passou-de-uma-anonima-para-um-mito-da-literatura,70001899746
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