Eugénia de Vasconcellos*
"Estou convencida de que a ideia de eu, este ser que trazemos
para
fazer a vida, começa quando o corpo não
está separado do pensamento e é
mais do
que o intermediário entre nós e mundo."
No colégio católico e exclusivamente feminino onde andei até ao
secundário, ninguém era expulso. Era-se convidado a sair em situações de
excepção com carácter de extrema gravidade: ser-se apanhada a fumar um
cigarro. Foi, portanto, pasmoso ter sido convidada a sair logo aos três
anos acabados de fazer, mês e meio depois de ter entrado – o regresso
foi outra aventura. O colégio era publicidade enganosa: tinham-me
prometido alfabeto, ler e escrever… e o que recebi? Irmãs em preto asa de corvo dos pés à cabeça,
canções de põe, põe, põe galinhita o ovo com coreografia infeliz e
pintar com as mãos. Pior, queriam que dormisse a sesta. Odiei tudo,
chorei muito, e como era um bicho nervoso, não aguentava a comida no estômago. Sentia-me triste e condenada – assim mesmo, era
dramática. Em desespero, fugi – fui rapidamente encontrada. E convidaram
a minha mãe a retirar-me. Lá fui recambiada para casa da minha avó.
Céus! Que alegria, maravilha do mundo, felicidade!
A casa da minha avó era grande, velha, e com três lugares proibidos. A varanda no alto. No pátio ladrilhado, uma casinha que parecia de bonecas, mas não, guardavam-se lá ferramentas alinhadas numa bancada. Era proibido entrar – havia até uma serra perfeitamente igual à que o senhor ilusionista do circo usava para cortar a sua mulher em duas e com que o palhaço tocava uma espécie de violino aflito.
Entre o proibido que já disse e o proibido que vou dizer, um imenso
alpendre, onde o meu avô, meu grande aliado, pendurou um baloiço para os
dias de chuva – amor é assim, leva-nos a tocar o céu seja lá em que
tempo for.
Do outro lado, fechado à indiscrição, a todo o comprimento da parede,
o outro lugar proibido: o antigo tanque de lavar a roupa em pedra de
sabão. Ai quem me dera poder ir nadar lá para dentro, mas aposto que me
penduram pelas orelhas, no estendal, com as molas da roupa – a minha avó
havia de ter sido a filha dilecta de Drácon, se Drácon fosse seu pai.
Em pequenina tinha duas devoções. Uma era a minha avó. A outra era a
água. Começava a ladainha: oh como as minhas bonecas precisam de banho.
Vou dar-lhes um belo banho.
Molhei-me, é melhor tirar este vestido que as mangas estão encharcadas… Oh não, agora molhei a barriga e estou cheia de champô. É melhor que eu tome banho com as bonecas. Pode desfazer o nó dos cordões das minhas botas? Não é preciso avisar a avó, foi só um pequenino acidente.
Sem botas ortopédicas, despida, na água fresquinha rodeada de bonecas
muito bem lavadas… que vida boa! Cereja em cima do bolo, tinha um
quadro negro emoldurado a madeira e pintado um lindo alfabeto, e giz
para fazer letras.
Estou convencida de que a ideia de eu, este ser que trazemos para
fazer a vida, começa quando o corpo não está separado do pensamento e é
mais do que o intermediário entre nós e mundo. Nem pensamos nele, ele é
eu. É o prazer antes do prazer. É o verbo Ser.
Publicado na edição Inverno 2016
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* Poeta por condição, com o vício da crónica, a paixão
pelo ensaio e o amor pelo romance.
Fonte: http://epicur.pt/ser-e-nem-saber-que-se-sabe-quem-se-e/ -Acesso 24/07/2017
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