Ruy Fausto, 82, que lançará o livro 'Caminhos da Esquerda'
Iniciativas independentes e pequenos novos grupos apontam para uma forma
positiva de reorganização da esquerda, afirma Ruy Fausto, professor
emérito da USP e doutor em filosofia pela Universidade Paris I.
À Folha, Fausto critica a idealização do PT e fala sobre sua
perspectiva eleitoral. "Não creio que o melhor candidato seja o Lula,
embora espere que ele não seja condenado e que possa concorrer."
Nesta segunda (3), ele lança o livro "Caminhos da Esquerda", uma
extensão de artigo publicado na revista "Piauí" em 2016, em que analisa
os erros e propõe um novo trajeto da esquerda no país.
*
Folha - Qual caminho a esquerda precisa seguir?
Ruy Fausto - Um dos pontos principais é a exigência democrática. A
gente precisa de democracia. Mesmo uma democracia deformada é um ponto
de partida e é preciso preservar. Eu tenho algum medo de uma ruptura do
processo democrático, não sei o que a extrema-direita trama. A esquerda
se acostumou com a ideia de que quanto mais democrático, menos
anticapitalista você é. Queria uma outra junção: ser muito democrata e
muito crítico do capitalismo.
A mesma coisa com o populismo. Se supõe que fazer a crítica do
populismo, da desonestidade administrativa, implica esquecer a crítica
do capitalismo. Dizem que quem faz a crítica da corrupção é a direita
–isso é um engano. Somos nós que temos o maior interesse possível em um
Estado que funcione 100%.
O que estou propondo é redefinir esquerda e direita. Se organizar esse
discurso e tiver clareza a respeito disso, a gente ganha setores
importantes. Sem essa clareza, não conseguimos fazer o trabalho com a
massa. Se tivermos a massa e contarmos que é uma beleza a Venezuela,
Cuba, isso só atrapalha.
A reconstrução da esquerda que o senhor fala exclui o ex-presidente Lula?
Não exclui de jeito nenhum, mas deixa de pôr o Lula no centro do
universo. Não há por que idealizar o PT, essa espécie de fetichização
dos dirigentes partidários é um absurdo. Os partidos podem ser alavancas
e podem ser freios. Não creio que devemos pôr as fichas nesse partido e
nem que o melhor candidato seja o Lula, embora espere que ele não seja
condenado e que possa ser candidato.
Não é para jogar fora [o PT], eles fizeram muitas coisas importantes,
uma política de redistribuição... Houve uma espécie de aliança de
classes que, conforme a condição, poderia até ser aceitado. Não houve
autoritarismo do tipo chavista, peronista.
O pior ali foi a corrupção. Eles se recusam a reconhecer isso tudo. O
que existe de fetichização de partidos e dirigentes nos meios
intelectuais me assusta. O pessoal se recusa a pensar por conta própria
porque acha que quem pensa são os dirigentes do partido.
O sr. propõe dissociar a esquerda dos governos que se disseram
representativos dela, mas que não teriam seguido sua ideologia. Uma
teoria que nunca foi posta em prática não entra no terreno da fé?
Não é uma questão de fé. Toda opção política implica uma decisão, que
não vem simplesmente da leitura do que se passa –é muito pensada. Houve
grandes deformações da esquerda, algumas notórias, como o stalinismo e o
leninismo. Isso custou milhões de mortos, não foi brincadeira. É
evidente que a esquerda tem que se dissociar disso, é preciso levar até o
final essa crítica.
Por outro lado tem a questão do populismo, que é mais complicada. Há
muita ilusão a respeito do chavismo, que levou a uma catástrofe na
Venezuela. Vemos gente qualificada fazendo elogios, ouvimos enormidades
do tipo "o PT poderia ter ido pelo menos até onde foi o Chávez [Hugo,
ex-presidente da Venezuela]". Isso seria um desastre.
Para os pós-modernos, a queda do Muro de Berlim representou o fim da
história. A esquerda mundial conseguiu recuperar o otimismo em algum
momento nas décadas posteriores?
A queda do muro foi uma boa coisa. Aquilo era um peso para a esquerda,
um governo despótico, antidemocrático, uma regressão histórica. O certo é
não reivindicar aquilo. Se a direita ataca tanto, é porque a esquerda
não foi capaz de definir bem o que foi a queda do muro. Tem todos os
viúvos, mas foi ótimo o que aconteceu. O que veio depois é difícil,
complicado, mas pelo menos agora temos condições para lutar.
O senhor escreveu o artigo [que baseou o livro] em outubro do ano
passado. Oito meses depois, a esquerda ganhou alguma perspectiva ou está
tão perdida quanto antes?
Houve bastante mobilização da esquerda, apesar de tudo. Tem muita
confusão, mas existe gente buscando uma saída. Muitos jovens pensando,
gente de boa vontade. Não estou muito pessimista, não. Às vezes faço
lista das pessoas de esquerda que poderiam ajudar, é gente muito
qualificada.
Eles [a direita] ganharam o impeachment [da ex-presidente Dilma
Rousseff], mas ganharam mal porque houve resistência. O impeachment foi
um desastre, quaisquer que tenham sido os erros da Dilma. A direita e a
extrema direita levantaram a cabeça. Houve um momento de muita pressão
deles, hoje está um pouco mais controlado. Em parte porque a esquerda se
movimentou, em parte porque eles se desmoralizaram quando apareceu a
corrupção como uma coisa geral.
Como a esquerda pode trazer para si a massa que despertou para a política em 2013?
Não vou dar fórmulas gerais, mas a primeira coisa é não perder de vista o
trabalho da classe média. É preciso encontrar a linguagem para se
dirigir a eles. A campanha do Freixo [Marcelo, segundo lugar nas
eleições para a Prefeitura do Rio de Janeiro em 2016], por exemplo, me
contaram que teve muita qualidade, não teve demagogia, mas que não
atingiu o eleitorado do Crivella [Marcelo, prefeito do Rio], não se
dirigiu a essa gente. É preciso conversar.
Depois, que relação ter com essa base. Não podemos idealizar a massa,
achar que a solução é essa. A massa tem de tudo, tem muita confusão, às
vezes muita violência. Ao mesmo tempo, não se pode incutir doutrinas. Às
vezes a base é que tem razão.
A esquerda consegue se reconstruir a tempo de disputar 2018?
A esquerda está se mexendo. Vai se organizar até lá? Não posso dizer,
mas teríamos que fazer o melhor possível, pôr clareza o quanto a gente
puder. Vejo o meu livro como uma pedrinha nisso, uma contribuição. É a
minha tentativa de situar o problema num plano mais geral.
Haverá um problema de encontrar candidatos, é difícil prever. O que
espero é que haja essa eleição e que se chegue a alguma solução, mesmo
que a esquerda perca. A direita joga muito com a história do não
político, com o Doria [João, prefeito de São Paulo], o Macron [Emmanuel,
presidente da França]. Não vai ser muito fácil.
Há um dado muito sério que é o crescimento do Bolsonaro [Jair, deputado
federal, com 16% das intenções de voto para presidente]. Tem que
denunciar essa história, estudar o fenômeno e como vamos enfrentar.
Temos pelo menos dois novos partidos liberais no cenário nacional: o
Novo e o Livres. O que falta para a esquerda se organizar dentro da
política?
Vai surgir um novo partido? Acho difícil. Por hora é se mobilizar,
discutir com o pessoal. De imediato penso em estruturas em que entra
muita gente independente e gente do PT e do PSOL. Pegar os melhores do
PSOL, o Freixo, por exemplo, e os melhores do PT, o Fernando Haddad, o
Tarso Genro... tipos condenados pelo PT atualmente. Fazer reuniões,
explorar os contatos... É o que se pode fazer agora. Vai ter que se
chegar à ideia de um candidato, mas não dá para prever. Esses pequenos
grupos se organizando já acho muito positivo.
Pensando na forma que a política é organizada hoje, com as campanhas
milionárias, o fisiologismo, o clientelismo, é provável que um partido
governe o Brasil de forma ética?
Há uma ideia que domina muito hoje que chamei de a miragem do negativo. É
a necessidade de usar de métodos ilegítimos de governar. O papo que vem
do PT é muito esse. No fundo é o "rouba, mas faz". Não quero dizer que a
política é toda racional, que não vai haver retórica, alianças. Precisa
apelar para os afetos, é verdade, mas a partir de um discurso que é
justo. Minta o menos que você puder, jogue o jogo mais limpo e isso vai
muito longe. Pode fazer alianças, mas definir o tipo, com a exigência de
não-corrupção e de democracia.
É possível ter um partido de esquerda e que seja ético. Isso significa
que não vai ter nenhum pilantra? Não, vai aparecer, mas a perspectiva
tem que ser reprimir esse tipo de coisa. Você muda a política, faz outra
política. Ou somos capazes de enfrentar isso ou é melhor não pensar em
partido e coisa nenhuma.
A Lava Jato pode servir como um freio à corrupção a partir de agora?
Não sou contra a Lava Jato, a princípio sou favorável. Era corrupção em
um nível que não sabíamos. Só serei contra se acabar dando numa ditadura
militar. Há três perigos grandes. A extrema-direita, que utiliza a Lava
Jato pensando em golpe, a direita que também usa, sem que a Lava Jato
seja da direita, e a húbris dos próprios juízes, que vão, prendem, pegam
o Lula para depor...
Tenho um pouco de medo do que possa acontecer, há muita confusão, uma
espécie de vazio. Tenho receio da extrema direita nessa história, mas é
absolutamente errada a perspectiva daqueles que recusam a luta contra a
corrupção, achando que é coisa da direita. Temos que apoiar todas as
iniciativas contra a corrupção. Levou muito tempo, mas o Aécio [Neves,
senador] e o Serra [José, senador] apareceram também.
O senhor diz que a esquerda precisa construir um projeto de bem-estar
social, o que pressupõe investimentos do Estado, no caminho contrário
da PEC do teto. Como recuperar a arrecadação e viabilizar esses gastos
em um cenário de desaceleração econômica?
Precisaria muito da ajuda dos economistas críticos. Primeira coisa é
rever a legislação fiscal brasileira. Eles inventam essa história de que
o imposto é muito alto. É alto para quem? O imposto sobre a herança é
baixíssimo. E tem um trabalho contra a corrupção que se for simétrico
deve ajudar também.
É possível que seja preciso fazer reformas, mas que não sejam
contrarreformas. A situação do povo é muito ruim, não há como limitar os
gastos de saúde, educação, e as garantias todas. Tem que mexer em
outras coisas. Evidente que isso tem que ser feito no lápis. A ortodoxia
econômica passa por cima disso tudo, não considera os fatos sociais e a
desigualdade brutal do Brasil. É importante formar muita gente de
esquerda em economia para fazer a crítica. A economia oficial está aí,
fala alto e tenta se impor.
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Reportagem por
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