Gilles Lapouge*
Tela do pintor surrealista francês André Martins de Barros
De Maquiavel e Montaigne a Jane Austen e Walt Whitman, muitos personagens históricos tinham o hábito de anotar seus livros
Não leio. Rabisco os livros. Eu os danifico. Coloco pontos de
exclamação à margem. Sublinho palavras, risco os parágrafos. Acrescento
“minha contribuição” à poesia que me deixa inebriado. Faço com que minha
voz seja ouvida. Escrevo “bravo”, “exagerado” ou mesmo “magnífico”. Nos
silêncios da narrativa engendro aventuras que o escritor não imaginou,
mas seus heróis amariam viver. Às vezes critico o autor. Quando empresto
um dos meus livros a um amigo, ele fica horrorizado: arruinei o “objeto
sagrado”.
Sacrilégio! Desnaturei o poema. Mereço passar meu
inferno fechado em uma biblioteca, vigiado por um diabo especializado em
literatura que irá me repreender toda vez que aponto meu lápis para
macular a beleza imarcescível de uma página. Onde estou com a cabeça?
Ousarei acrescentar um grafite na Capela Sistina de Michelangelo? Irei
ao Museu Rodin levando comigo um pequeno martelo para extrair alguns
fragmentos de mármore com o fim de “melhorar” O Beijo, ou a estátua de Balzac?
Mas hoje me sinto mais confiante. Soube pelo jornal The New York Times que
a New Library de Chicago publicou um livro reproduzindo comentários e
anotações feitas a lápis em seus livros por leitores como o presidente
Lincoln, Alexander Pope, Jane Austen, Walt Whitman ou David Thoreau.
Um
dos mais brilhares escritores políticos, o italiano Maquiavel,
compartilhava comigo esse “vício”. Cobria seus livros de comentários
marginais, apogiaturas, parênteses ou sinais incompreensíveis.
Também fiz uma pequena pesquisa e encontrei muitos “rabiscadores”
de livros. O francês Montaigne, na Renascença, escreveu em seu próprio
livro, Ensaios, inúmeros comentários ou objeções a ponto de no
final compor um novo livro. O grande Petrarca escreveu no seu livro
Confissões de Santo Agostinho tantas notas e comentários que serviram
para um curso de filosofia, O Livre Arbítrio.
Meus “rabiscadores” preferidos são os mais tímidos. Aqueles que
se contentam em acrescentar uma interjeição à margem, um comentário
breve, ou simplesmente sinais de pontuação: pontos de exclamação, ou de
interrogação. Eles não querem acrescentar ao texto original um novo
texto. Sua ambição é outra: eles tatuam o livro, como algumas pessoas
tatuam sua pele. Eles o esfolam, o dramatizam. Eles se apropriam do
livro.
Do mesmo modo que os poetas brasileiros “antropofágicos”, eles
comem as letras, as mastigam, as digerem, e é um romance desconhecido
que surge no final das suas obscuras fermentações. Outros, mais
ingênuos, se satisfazem em “fazer amor” com o livro.
Por mais
minúsculas, modestas ou misteriosas que sejam essas impressões furtivas
deixadas por um desconhecido em seu livro de cabeceira, essas anotações,
esses escólios, esses riscos ou essas interjeições acrescentam uma
frase ao discurso original e essa frase é bela: “Para o melhor ou pior, é
o comentarista que tem a última palavra”, disse Nabokov.
Mesmo traços simples, verticais, horizontais ou em diagonal,
podem falar. Há uma dezena de anos, minha irmã mais velha que eu amava
muito faleceu. E eu me encarreguei de ordenar algumas centenas de livros
que ela possuía. Passava rapidamente os olhos neles. Ouvia o silêncio, a
morte.
Abri um cujo título era L’Echelle de Soie, de um autor
conhecido nos anos 1960, mas um pouco esquecido nos dias de hoje, Jean-
Louis Curtis. À medida que repassava aquelas páginas, percebi que não
lia o romance de Curtis, mas os traços feitos por minha irmã nos brancos
da página, sobre um adjetivo ou num trecho de uma frase, ou mesmo à
margem. Vi assim se produzir diante dos meus olhos, com fragmentos de
textos assinalados por minha irmã, do outro lado da morte, outro
romance.
Guiado pelos traços feitos a lápis, nas margens do livro, eu lia:
“Cada pessoa é um enigma para todos e para ela própria. E ela morre sem
ter revelado nem compreendido seu próprio segredo”. E mais longe,
“talvez nada seja preferível a essa tentativa incansável e sempre
frustrada pela qual se busca fundir em um núcleo de vida as duas
solidões de um casal”. Algumas passagens mais: “Eu me perguntei por qual
encadeamento de encantos e malefícios pude amar Anne e sofrer por causa
dela”.
Eu perguntei a mim mesmo então porque minha irmã havia extraído aquelas frases, aqueles pequenos fragmentos de texto.
Ligando aqueles fragmentos, interjeições, palavras sublinhadas, aqueles
pontos de exclamação, reconstitui, me parece, uma história de amor
infeliz que eu sabia que minha irmã tinha vivido quando era jovem e
sobre a qual jamais contou a ninguém. E eis que nesse momento ela me
fazia um relato desses anos dolorosos.
Senti-me indiscreto. E me dizia que os segredos jamais devem ser
arrancados à força, mesmo se a morte permite que eles se façam ouvir. A
morte em suma me propiciou abrir as gavetas de um armário proibido.
Recusei-me a ir mais longe e ver outras confidências. E ao mesmo
tempo me perguntei por que foi preciso que a morte chegasse para que
paisagens proibidas fossem exibidas? Por que foi necessário se fazer o
silêncio da morte para o silêncio fazer um pouco de ruído?
/ Tradução de Terezinha Martino
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* Escritor e jornalista francês.
Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,uma-defesa-do-crime-de-rabiscar-em-livros,70001911329
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