Ana Cecília
Marques, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp):
"Nós quebramos o tabu da aids. Temos de quebrar o tabu das drogas"
"Uma política
completa de drogas inclui prevenção,
tratamento e repressão."
A Cracolândia de São Paulo é um problema que envolve toda a sociedade civil e
será resolvido apenas com a perda do estigma do tema do crack e uma política
integrada que inclua a prevenção, tratamento dos dependentes e controle do
tráfico de drogas na região. A opinião é da psiquiatra Ana Cecília Marques, de
64 anos, doutora em neurociência e professora da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp). "Dói para o ser humano lidar com questões que são
tabu", diz a coordenadora da comissão de drogas da Associação Brasileira
de Psiquiatria. A seguir, a entrevista ao Valor.
Valor: A Cracolândia é um problema da prefeitura, do Estado ou de todos nós?
Valor: A Cracolândia é um problema da prefeitura, do Estado ou de todos nós?
Ana Cecília Marques: De todos nós. Medidas isoladas não
resolvem a questão. O problema é muito complexo e só quando tivermos um
levantamento muito bem feito da Cracolândia é que saberemos quais medidas que
devem ser aplicadas. Essas medidas, integradas, é que formarão uma política
eficiente de combate às drogas.
Valor: Qual o
primeiro passo?
Ana Cecília: Um levantamento detalhado da situação naquela
região. Em São Paulo já temos alguns estudos feitos por órgãos como o Centro de
Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas [Cratod], o Departamento de
Narcóticos da Polícia Civil [Denarc] e outros. Esses estudos devem ser
colocados na mesa, discutidos por todos os agentes envolvidos e, a partir daí,
ser preparada uma ação efetiva, que deve ser múltipla e não isolada.
Valor: O que é
importante nesses levantamentos?
Ana Cecília: No estudo feito pelo Cratod, dos 800 analisados
metade deles têm família. Por que preciso entrar na Cracolândia pensando só
numa internação compulsória, se esses 50% têm família? Eles não perderam todos
os vínculos. A função do agente social, nesse grupo interdisciplinar, é buscar
essa família e prestar todo o apoio necessário.
Valor: A senhora defende a internação compulsória em
determinados casos. Quais?
Ana Cecília: A dependência de drogas, quando não é tratada,
deteriora o cérebro. É uma minoria que está nesse estágio avançado, mas que
pode evoluir até à morte. A maioria pode ser tratada e a doença estabilizada
sem a necessidade de internação compulsória, que necessita de critérios para
ser aplicada, tais como: perda de todos os vínculos sociais, risco para a
própria vida e doenças crônicas complexas.
Valor: Qual o papel da família e como ela deve agir para recuperar o dependente de crack?
Ana Cecília: O dependente perde motivação, juízo crítico da realidade
e a capacidade de resolver problemas. Ele não consegue se tratar sozinho. A
droga atinge a área mais nobre do cérebro. Como a pessoa vai se proteger, perceber
a doença que ela adquiriu? Como ela vai
perceber tudo isso se ele não tem um espelho, que é o seu entorno, a família e
os amigos?
"Com a família
tratando junto, e é preciso mostrar
isso para ela, todos os resultados são
melhores.
Infelizmente ainda não temos isso
nos nossos serviços."
Valor: Mas em muitos casos para a família é difícil cuidar
do dependente. Ela também tem de ser ajudada?
Ana Cecília: Sem a menor
dúvida. É aí que deve entrar o Estado, para oferecer um serviço com equipes
multidisciplinares com objetivo de atender inclusive a família. Com a família
tratando junto, e é preciso mostrar isso para ela, todos os resultados são
melhores. Infelizmente ainda não temos isso nos nossos serviços.
Valor: Há tendência de comparações da questão das drogas com
o que foi feito em outros países, como a Alemanha e Holanda. Isso é um erro?
Ana Cecília: É um erro se imaginarmos de maneira pragmática: pegar lá e colocar aqui. São realidades diferentes, inclusive de recursos. Não adianta pegar uma medida em prática na Holanda, que cabe dentro do Rio de Janeiro, e achar que vai servir para o Brasil. Não vai. Mas é lógico que temos de olhar para tudo, aprender com eles.
Ana Cecília: É um erro se imaginarmos de maneira pragmática: pegar lá e colocar aqui. São realidades diferentes, inclusive de recursos. Não adianta pegar uma medida em prática na Holanda, que cabe dentro do Rio de Janeiro, e achar que vai servir para o Brasil. Não vai. Mas é lógico que temos de olhar para tudo, aprender com eles.
Valor: A Cracolândia é um problema que se arrasta há cerca de três décadas. Desde então, todos os prefeitos e governadores apontaram soluções, elaboraram ações e o problema só cresceu. O que deu errado?
Ana Cecília: Deu errado essa visão cega, como se eu tivesse
um olho que só enxerga um pedacinho do fenômeno. Se eu só ofereço trabalho e tratamento, mas não ofereço condições dignas
do dependente sair dessa situação de rua, ele não vai conseguir superar. O
mesmo ocorre quando eu ofereço um trabalho e um quarto, mas não obrigo ele a se
tratar de uma doença crônica que é fatal. E como ele vai trabalhar se eu não controlo
a entrada da droga no lugar onde ele vive? A droga é vendida ali como batata.
Por isso que também tem de ter o agente policial na ação. Porque nem todo mundo
lá é dependente, tem gente que está traficando e sabe muito bem o que faz. Por
isso o problema da Cracolândia é de todos nós.
Valor: Qual o papel da sociedade civil neste contexto?
Valor: Qual o papel da sociedade civil neste contexto?
Ana Cecília: É importantíssimo participar pressionando seus
representantes políticos e cobrando experiências mais efetivas. Uma política
completa de drogas inclui prevenção, tratamento e repressão. Sempre que eu for
lá só para reprimir o efeito será zero. Se for só para tratar, o efeito também
será zero. Se for só para aconselhar e não oferecer tratamento, zero novamente.
Sem esse tripé, não conseguiremos avançar.
Valor: Como a senhora analisa as ações mais recentes da
Prefeitura de São Paulo?
Ana Cecília: O erro persiste. Não o erro, mas o
desconhecimento sobre o tema. Eu não culpo os gestores públicos. Temos uma
política nacional de combate às drogas que inclui um capítulo maior, o da
prevenção. Esse trabalho passa por capacitação e informação para os gestores.
Tem de haver repressão, mas tem de haver saúde e toda essa parte social de
prevenção. E é preciso integrar tudo isso. Senão não vai funcionar. Antes de entrar
de novo na Cracolândia, reúna os atores envolvidos, traga todos os
levantamentos para a mesa para que possamos enxergar o fenômeno como ele é. A
partir daí monte uma retaguarda com tudo que será necessário e, aí sim, vamos
para a ação. Não é o que está acontecendo, mais uma vez. O risco de não dar
certo e o problema aumentar é grande.
Valor: O crack é um caminho sem volta?
Ana Cecília: De jeito nenhum. Tenho pacientes que estão há
dez anos sem usar crack, estáveis, trabalhando e cuidando das suas famílias. É
uma dependência como outra qualquer, com suas características específicas. E
temos de estudar uma coisa muito importante: como os jovens se iniciam nas
drogas. O crack não é a primeira droga de experimentação. Hoje no Brasil nós
temos três drogas de entrada no Brasil: álcool, tabaco e maconha. O crack vem
depois.
Valor: As pessoas também precisam perder o estigma da
Cracolândia?
Ana Cecília: Isso é fundamental. Nossa principal barreira é
o estigma da questão das drogas em geral. A discussão começa por aí. Inclusive
a discussão entre o técnico e o gestor, que tem de tirar a ideologia e a
religião da discussão. É uma doença do cérebro e mata se não cuidarmos. E como
a gente cuida? Só com tratamento? Não. Temos de tratar como uma política
complexa e começar a baixar o preconceito, o estigma. Como vamos cuidar disso?
Prevenção, tratamento e controle da oferta, que é a repressão. Dói para o ser
humano lidar com questões que são tabu. Não pode ser tabu. Nós quebramos o tabu
da aids. Temos de quebrar o tabu das drogas.
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Reportagem por Marcus Lopes de São Paulo
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5021546/maior-problema-do-crack-e-o-estigma 30/06/2017