Os primeiros contos de Rilke, até agora por cá inéditos, revelam o
seu olhar sobre o trágico que se esconde por
detrás da banalidade das
vidas.
Esta colectânea de contos, que estavam até agora inéditos em
português, é a primeira de Rainer Maria Rilke (1875-1926) – um dos
grandes nomes da literatura europeia – e foi originalmente publicada em
1898 (um ano depois de ter conhecido Lou Andreas-Salomé). O livro
apresenta como subtítulo Novelas e Esboços; e de facto, ao
lerem-se muitos destes contos fica o leitor com a sensação, não de que
estejam inacabados ou que sejam escritos menores, mas que têm um enorme
potencial para se tornarem em histórias mais longas – mas essa não foi a
vontade do seu autor. Apenas o conto Kismet – esboço da vida dos ciganos parece assumir-se como o que de facto poderia ter sido, uma história muito mais longa.
Logo a abrir a colectânea, Festa em Família parece querer
dar o tom para o que se segue. Nesta história, depois da missa por alma
de Herr Anton von Wick, falecido havia oito anos, os familiares próximos
reunem-se para jantar na casa da família, e aos poucos o leitor
apercebe-se de que cada cadeira (ou cadeirão) da sala só tinha dignidade
se guardasse na sua história a memória de alguém que lá morrera
sentado. Por entre os acontecimentos e as vidas banais dos membros da
família von Wick, começa a assomar o trágico quando um dos irmãos do
falecido vai percorrendo com o olhar os cadeirões, e acaba por escolher
um que ainda não tem uma história de que alguém nele tenha morrido.
O conto que vem a seguir, O Segredo, é mais cómico e irónico
do que o primeiro, ao contar-nos a história de duas velhas mulheres,
Klothilde e Rosine, uma com “cabelo ralo e branco” e a outra com a
“cabeça severa, tensa e estranhamente negra”, que vivem juntas na mesma
casa há mais de trinta anos, e que fora dela apenas eram vistas “no
mercado e na igreja”; o motivo para a sua união tinha sido a vontade e
curiosidade de uma delas, Rosine, em desvendar que segredo a outra
guardaria numa caixa preta, numa espécie de cofre. Rosine estava
convencida que “quando estivessem juntas, a revelação não tardaria e que
depois de um ano se tanto poderia despedir-se e, nesse momento, lançar
um olhar vencedor para o Wertheim [o cofre] aberto e para a pobre Klothilde”. Foi a sua razão de vida. Mas esse olhar demorou metade da vida. Até ao trágico.
Em quase todos os contos, à semelhança do
que acontece nestes dois, a maioria das personagens centrais das
histórias estão num qualquer limiar da vida, seja isto pela idade e
proximidade da morte (vários são os contos cujas personagens são
idosos), seja pela doença, ou seja por um outro qualquer limite a
transpor com o fim de iniciar uma qualquer busca. A escrita do trágico
por detrás do quotidiano, nestes primeiros contos de Rilke, revela
sempre uma experiência poética da realidade. O autor, que foi um
inveterado solitário, consegue dosear nestas histórias curtas a
melancolia, que alterna com uma ironia sábia e um humor por vezes
desarmante (porque inesperado), como o faz ao referir-se à personagem
Pepi, (na história de título Velhos): “Bebera muito a vida inteira e parecia condenado a pagar pouco a pouco à terra pelo menos os juros do líquido consumido.”
Um dos contos mais irónicos deste livro é A Fuga,
um piscar de olho às histórias do Romantismo, com os elementos
necessários ao ambiente e à situação criada. Dois jovens apaixonados
estão numa igreja vazia, a família dela é contra a relação, o pai é
violento, ele é um estudante do liceu… “Ele estava feliz e sonhava: eles
vão fechar a igreja sem reparar em nós e ficaremos os dois sozinhos. De
certeza que por aqui andam espíritos à noite.” Mas o final da história,
para além de inesperado, é sábio e sobejamente irónico, desvelando o
sentido.
Como acontece na poesia de Rilke, também a sua prosa
(embora de maneira não tão evidente e assumida) procura revelar algo que
está para além das margens das existências quotidianas, surgindo assim o
trágico como uma expressão irónica da transcendência. Estes contos são
um bom exemplo disso.
-------------
Fonte: https://www.publico.pt/2017/06/18/culturaipsilon/noticia/a-busca-do-tragico-1775424
Nenhum comentário:
Postar um comentário