sexta-feira, 30 de junho de 2017

MAIOR PROBLEMA DO CRACK É O ESTIGMA



Silvia Zamboni/Valor

                                                                 Ana Cecília Marques, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp): 
                                                                               "Nós quebramos o tabu da aids. Temos de quebrar o tabu das drogas"
 

"Uma política completa de drogas inclui prevenção, 
tratamento e repressão."


A Cracolândia de São Paulo é um problema que envolve toda a sociedade civil e será resolvido apenas com a perda do estigma do tema do crack e uma política integrada que inclua a prevenção, tratamento dos dependentes e controle do tráfico de drogas na região. A opinião é da psiquiatra Ana Cecília Marques, de 64 anos, doutora em neurociência e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "Dói para o ser humano lidar com questões que são tabu", diz a coordenadora da comissão de drogas da Associação Brasileira de Psiquiatria. A seguir, a entrevista ao Valor.

Valor: A Cracolândia é um problema da prefeitura, do Estado ou de todos nós?
Ana Cecília Marques: De todos nós. Medidas isoladas não resolvem a questão. O problema é muito complexo e só quando tivermos um levantamento muito bem feito da Cracolândia é que saberemos quais medidas que devem ser aplicadas. Essas medidas, integradas, é que formarão uma política eficiente de combate às drogas.

Valor: Qual o primeiro passo?
Ana Cecília: Um levantamento detalhado da situação naquela região. Em São Paulo já temos alguns estudos feitos por órgãos como o Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas [Cratod], o Departamento de Narcóticos da Polícia Civil [Denarc] e outros. Esses estudos devem ser colocados na mesa, discutidos por todos os agentes envolvidos e, a partir daí, ser preparada uma ação efetiva, que deve ser múltipla e não isolada.

Valor: O que é importante nesses levantamentos?
Ana Cecília: No estudo feito pelo Cratod, dos 800 analisados metade deles têm família. Por que preciso entrar na Cracolândia pensando só numa internação compulsória, se esses 50% têm família? Eles não perderam todos os vínculos. A função do agente social, nesse grupo interdisciplinar, é buscar essa família e prestar todo o apoio necessário. 

Valor: A senhora defende a internação compulsória em determinados casos. Quais?
Ana Cecília: A dependência de drogas, quando não é tratada, deteriora o cérebro. É uma minoria que está nesse estágio avançado, mas que pode evoluir até à morte. A maioria pode ser tratada e a doença estabilizada sem a necessidade de internação compulsória, que necessita de critérios para ser aplicada, tais como: perda de todos os vínculos sociais, risco para a própria vida e doenças crônicas complexas.

Valor: Qual o papel da família e como ela deve agir para recuperar o dependente de crack? 
Ana Cecília: O dependente perde motivação, juízo crítico da realidade e a capacidade de resolver problemas. Ele não consegue se tratar sozinho. A droga atinge a área mais nobre do cérebro. Como a pessoa vai se proteger, perceber a doença que ela adquiriu?  Como ela vai perceber tudo isso se ele não tem um espelho, que é o seu entorno, a família e os amigos?

 "Com a família tratando junto, e é preciso mostrar 
isso para ela, todos os resultados são melhores. 
Infelizmente ainda não temos isso 
nos nossos serviços."

Valor: Mas em muitos casos para a família é difícil cuidar do dependente. Ela também tem de ser ajudada?
Ana Cecília: Sem a menor dúvida. É aí que deve entrar o Estado, para oferecer um serviço com equipes multidisciplinares com objetivo de  atender inclusive a família. Com a família tratando junto, e é preciso mostrar isso para ela, todos os resultados são melhores. Infelizmente ainda não temos isso nos nossos serviços. 

Valor: Há tendência de comparações da questão das drogas com o que foi feito em outros países, como a Alemanha e Holanda. Isso é um erro?
Ana Cecília:
É um erro se imaginarmos de maneira pragmática: pegar lá e colocar aqui. São realidades diferentes, inclusive de recursos. Não adianta pegar uma medida em prática na Holanda, que cabe dentro do Rio de Janeiro, e achar que vai servir para o Brasil. Não vai. Mas é lógico que temos de olhar para tudo, aprender com eles.

Valor: A Cracolândia é um problema que se arrasta há cerca de três décadas. Desde então, todos os prefeitos e governadores apontaram soluções, elaboraram ações e o problema só cresceu. O que deu errado?
Ana Cecília: Deu errado essa visão cega, como se eu tivesse um olho que só enxerga um pedacinho do fenômeno. Se eu só ofereço trabalho e  tratamento, mas não ofereço condições dignas do dependente sair dessa situação de rua, ele não vai conseguir superar. O mesmo ocorre quando eu ofereço um trabalho e um quarto, mas não obrigo ele a se tratar de uma doença crônica que é fatal. E como ele vai trabalhar se eu não controlo a entrada da droga no lugar onde ele vive? A droga é vendida ali como batata. Por isso que também tem de ter o agente policial na ação. Porque nem todo mundo lá é dependente, tem gente que está traficando e sabe muito bem o que faz. Por isso o problema da Cracolândia é de todos nós.

Valor: Qual o papel da sociedade civil neste contexto?
Ana Cecília: É importantíssimo participar pressionando seus representantes políticos e cobrando experiências mais efetivas. Uma política completa de drogas inclui prevenção, tratamento e repressão. Sempre que eu for lá só para reprimir o efeito será zero. Se for só para tratar, o efeito também será zero. Se for só para aconselhar e não oferecer tratamento, zero novamente. Sem esse tripé, não conseguiremos avançar. 

Valor: Como a senhora analisa as ações mais recentes da Prefeitura de São Paulo?
Ana Cecília: O erro persiste. Não o erro, mas o desconhecimento sobre o tema. Eu não culpo os gestores públicos. Temos uma política nacional de combate às drogas que inclui um capítulo maior, o da prevenção. Esse trabalho passa por capacitação e informação para os gestores. Tem de haver repressão, mas tem de haver saúde e toda essa parte social de prevenção. E é preciso integrar tudo isso. Senão não vai funcionar. Antes de entrar de novo na Cracolândia, reúna os atores envolvidos, traga todos os levantamentos para a mesa para que possamos enxergar o fenômeno como ele é. A partir daí monte uma retaguarda com tudo que será necessário e, aí sim, vamos para a ação. Não é o que está acontecendo, mais uma vez. O risco de não dar certo e o problema aumentar é grande. 

Valor: O crack é um caminho sem volta?
Ana Cecília: De jeito nenhum. Tenho pacientes que estão há dez anos sem usar crack, estáveis, trabalhando e cuidando das suas famílias. É uma dependência como outra qualquer, com suas características específicas. E temos de estudar uma coisa muito importante: como os jovens se iniciam nas drogas. O crack não é a primeira droga de experimentação. Hoje no Brasil nós temos três drogas de entrada no Brasil: álcool, tabaco e maconha. O crack vem depois. 

Valor: As pessoas também precisam perder o estigma da Cracolândia?
Ana Cecília: Isso é fundamental. Nossa principal barreira é o estigma da questão das drogas em geral. A discussão começa por aí. Inclusive a discussão entre o técnico e o gestor, que tem de tirar a ideologia e a religião da discussão. É uma doença do cérebro e mata se não cuidarmos. E como a gente cuida? Só com tratamento? Não. Temos de tratar como uma política complexa e começar a baixar o preconceito, o estigma. Como vamos cuidar disso? Prevenção, tratamento e controle da oferta, que é a repressão. Dói para o ser humano lidar com questões que são tabu. Não pode ser tabu. Nós quebramos o tabu da aids. Temos de quebrar o tabu das drogas.
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Reportagem por Marcus Lopes de São Paulo
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5021546/maior-problema-do-crack-e-o-estigma 30/06/2017


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