Lya Luft*
''Talvez o ser humano tenha
desde sempre necessidade
de sair do seu registro dito normal
para algo
mais intenso.''
Não acho graça nenhuma em drogas. Tenho, eu sei, pouca
tolerância com isso. É tremendo, terrível, trágico o assunto adição,
seja de drogas que incluem o álcool, droga estimulada em propagandas e
marketing. Falo em adição, não em experimentar de vez em quando, como
acontece em certas turmas e festinhas, ou mesmo a sós, para quem julga
que alterado fica mais inteligente, mais sensual, mais engraçado e mais
interessante. Muitas vezes criticada, digo e escrevo o que qualquer bobo
sabe: existe o traficante porque existe o consumidor. Pior: cada vez
que um de nós fuma seu cigarrinho de maconha, cheira sua fileirinha de
coca ou injeta em suas veias seja lá que veneno for, está fazendo
continência a um traficante – que um dia pode mandar meter uma bala em
seu filho ou em outra pessoa amada.
A Cracolândia de São Paulo existe não só por aqueles, quase lixo humano, deitados no chão entre urina, fezes e vômito, alienados, atordoados e doentes – mas os que ali compram uns gramas de sua loucura e sua morte talvez para fazer uso dela em qualquer outro lugar, que pode até ser caro e chique, por que não? Sei de grandes festas em que papelotes de cocaína são oferecidos em bandejas junto com champanha francês.
Talvez o ser humano tenha desde sempre necessidade de sair do seu registro dito normal para algo mais intenso. Uma bela taça de vinho pode ter essa motivação: relaxar, ficar mais alegrinho, menos tenso. Uma taça, não várias garrafas, e regularmente. Comidas, bebidas, substâncias, remédios, em si, são inocentes: seu uso pode ser mortal. Visitei, anos atrás, várias vezes, uma chiquésima carésima clínica de recuperação de drogados, em outro Estado. Lá estava a filha de conhecidos meus, que me pediam que fosse junto, a menina chamava por mim. Eram quase todos jovens, quase todos com olhar vazio, muitos com curativos nos pulsos, muitos tendo saído e voltado muitas, muitas vezes: sem esperança, parecia estar tatuado em sua testa.
Alguns conseguiam lá dentro a droga que quisessem, transando com um funcionário, jardineiro ou operário que consertava telhados; muitos, voltando para casa, eram assediados por traficantes que chegavam a jogar papelotes de coca pela janela do quarto da vítima. Há quem possa usar droga aqui e ali, sem se viciar. Muitos, muitíssimos, não conseguem. E para esses, começar, ainda que de brincadeira, ainda que com a dita inocente maconha, é assinar seu atestado de morte prematura e horrenda.
Não é possível vigiar alguém constantemente. Sem ter receitas nem conselhos, talvez o exemplo, o afeto, a alegria, a confiança, certo conhecimento da turma, dos locais frequentados, se for um jovenzinho, umas boas conversas nada moralistas, mas amigas, podem ajudar. Porém, não há garantias: famílias amorosas e atentas podem ter drogados graves. Famílias doentes podem ter filhos saudáveis.
E se, apesar do amoroso cuidado, tudo der errado, então sofrem todos, então fortalecem-se as cracolândias pelo país, enriquecem os traficantes, multiplica-se o crime, e passeia com suas longas vestes a Senhora Morte recolhendo as vítimas de uma sociedade fútil e incompetente – ou da própria incurável condição humana.
A Cracolândia de São Paulo existe não só por aqueles, quase lixo humano, deitados no chão entre urina, fezes e vômito, alienados, atordoados e doentes – mas os que ali compram uns gramas de sua loucura e sua morte talvez para fazer uso dela em qualquer outro lugar, que pode até ser caro e chique, por que não? Sei de grandes festas em que papelotes de cocaína são oferecidos em bandejas junto com champanha francês.
Talvez o ser humano tenha desde sempre necessidade de sair do seu registro dito normal para algo mais intenso. Uma bela taça de vinho pode ter essa motivação: relaxar, ficar mais alegrinho, menos tenso. Uma taça, não várias garrafas, e regularmente. Comidas, bebidas, substâncias, remédios, em si, são inocentes: seu uso pode ser mortal. Visitei, anos atrás, várias vezes, uma chiquésima carésima clínica de recuperação de drogados, em outro Estado. Lá estava a filha de conhecidos meus, que me pediam que fosse junto, a menina chamava por mim. Eram quase todos jovens, quase todos com olhar vazio, muitos com curativos nos pulsos, muitos tendo saído e voltado muitas, muitas vezes: sem esperança, parecia estar tatuado em sua testa.
Alguns conseguiam lá dentro a droga que quisessem, transando com um funcionário, jardineiro ou operário que consertava telhados; muitos, voltando para casa, eram assediados por traficantes que chegavam a jogar papelotes de coca pela janela do quarto da vítima. Há quem possa usar droga aqui e ali, sem se viciar. Muitos, muitíssimos, não conseguem. E para esses, começar, ainda que de brincadeira, ainda que com a dita inocente maconha, é assinar seu atestado de morte prematura e horrenda.
Não é possível vigiar alguém constantemente. Sem ter receitas nem conselhos, talvez o exemplo, o afeto, a alegria, a confiança, certo conhecimento da turma, dos locais frequentados, se for um jovenzinho, umas boas conversas nada moralistas, mas amigas, podem ajudar. Porém, não há garantias: famílias amorosas e atentas podem ter drogados graves. Famílias doentes podem ter filhos saudáveis.
E se, apesar do amoroso cuidado, tudo der errado, então sofrem todos, então fortalecem-se as cracolândias pelo país, enriquecem os traficantes, multiplica-se o crime, e passeia com suas longas vestes a Senhora Morte recolhendo as vítimas de uma sociedade fútil e incompetente – ou da própria incurável condição humana.
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* Escritora.
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a9824242.xml&template=3916.dwt&edition=31392§ion=70 24/06/2017
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