Damián Tabarovsky confronta autores do cânone literário para investigar se existe uma literatura de esquerda
Foto: Bárbara Scotto
Livro do autor argentino Damián Tabarovsky questiona a existência de uma literatura marginal e como ela se dá
Ronaldo Bressane *,
Colaboração para o Estado
03 Junho 2017
03 Junho 2017
“Esquerda anda, direita para”, eu avisei na escada rolante do metrô, e
o dinossauro encastelado no degrau à frente virou para mim já com o
punho erguido. Entendo: é que falar em esquerda e direita anda deixando
todo mundo à beira de um ataque de pelanca. Dependendo do ângulo em que
se esteja, chamar alguém de esquerdista ou direitista pode ser mais
ofensivo que xingar a mãe. Deve ser por isso que, dos 20 escritores que
procurei para perguntar, candidamente, “existe literatura de esquerda?”,
só quatro se dignaram a me responder – os outros 16 vieram com
desculpinhas tipo “Estou sem tempo para pensar nisso”, “Está tudo muito
confuso”, “Me inclua fora dessa” etc. Notório isentão, O(A) Escritor(a)
Brasileiro(a) mantém-se com um pé em cada ponta da escada rolante – e
num passo em falso vai acabar se estabacando.
Por essas e outras faz falta ao Brasil um escritor como o
argentino Damián Tabarovsky. Ficcionista, ensaísta, editor e tradutor,
Tabarovsky publicou em 2004 o ensaio Literatura de Esquerda, atraindo,
na mesma proporção, palmas entusiasmadas e narizes torcidos (crítica
comum foi “Não se mistura literatura e política”). O texto forma um
livro homônimo que contém outros ensaios provocativos – e só 13 anos
depois é lançado no Brasil, em edição charmosa, pela valente Relicário.
De cara, previno o leitor de que “literatura de esquerda” não significa
submissão às velhuscas categorias nascidas na Revolução Francesa muito
menos ao limitado Fla-Flu PT versus PSDB que tem separado os dois
neurônios pátrios. O buraco é mais embaixo.
Tabarovsky divide os
escritores entre os que ficam parados do lado direito e os que sobem
ligeiros pelo lado esquerdo da escada rolante. Sua preocupação não é a
estática, é a estética: “A literatura de esquerda suspeita de toda
convenção, inclusive as próprias (...) Não busca inaugurar um novo
paradigma, mas pôr em xeque a própria ideia de paradigma, a própria
ideia de ordem literária.” O ensaísta usa “esquerda” como sinônimo de
transgressão, de ousadia, de tesão suicida pela vanguarda, de desfaçatez
tanto para com o mercado quanto para a academia; de negativismo, de
corrosão; de um amor desmesurado pela inventividade e pela linguagem. “A
literatura de esquerda é escrita pelo escritor sem público, pelo
escritor que escreve para ninguém, em nome de ninguém, sem outra rede
além do desejo louco de novidade.”
O
texto de Tabarovsky tem a paixão pela frase brilhante de um Mencken e
pela citação bem-sacada de um Benjamin (autores de polos ideológicos
opostos). Ele exalta quem “escolhe a própria linguagem para perfurá-la,
para buscar esse lado de fora – o lado de fora da linguagem – que nunca
chega, que sempre se posterga, se desagrega (a literatura como forma de
digressão), esse fora, ou talvez esse dentro inalcançável: a metáfora do
mergulho (a invenção de uma língua dentro da língua); não mais o
mergulho como busca da palavra justa, bela, precisa (o coral iluminado
submerso), mas como o momento em que a caça submarina se extravia e se
converte em lataria, ácido, vidro moído, coral de vidro moído (a
exploração de um navio afundado)”.
Em pouco mais de cem páginas, o argentino passeia entre 143
autores diversos, movido a parênteses dentro de parênteses, frases que
se alongam até o paradoxo ou até redundarem em epifanias como “a
literatura é uma tumba sem sossego”. O bicho é bom de briga. Chama para o
octógono de Borges a Aira, passando por Cortázar, Pizarnik, Piglia e
Saer: não sobra monstro sobre monstro sagrado. Se entrou para o cânone,
Tabarovsky já calça as luvas – ele dá a preferência a lutadores gauches
como Lamborghini e Copi. Exibe igual desprezo tanto por autores
performáticos que valorizam o estrelato pop quanto soturnos nefelibatas
que cabalam os votos da glória universitária. Irrita-o a percepção de
que o pragmatismo, a mistificação e o fetiche de mercadoria na busca por
uma “literatura café com leite” (“esses romances ‘bem escritos’,
‘inteligentes’, com insípidas gotas de experimentação, sem que por causa
disso deixem de ser ‘emocionantes’, ‘arrebatadores’ e ‘profundos’,
esses romances medianos como os de Kundera, Tabucchi, Saramago, Auster
ou os novos novelões americanos como os de Franzen (...) são romances
belos, agradáveis: não incomodam ninguém”) façam com que o escritor se
contente em ser um mero “publicador de livros”. Tabarovsky propõe o
risco e o abismo.
“A graça da literatura está em derrubar: estava surfando quando
uma onda me engoliu.” Para cortar o complexo de vira-latas, é a coisa
mais parecida com o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade ou os Problemas Inculturais Brasileiros de
Osman Lins que os hermanos já entregaram. Num momento em que a
acomodação literária quase não ecoa a guerra polarizada das redes e das
ruas do Brasil, Literatura de Esquerda é uma bem-vinda bofetada na cara de todo escritor: um golpe de ar, desses que nos fazem cair do conforto da escada rolante.
A opinião dos autores brasileiros. Existe literatura de esquerda? E de direita? Quatro autores elegem três livros de cada espectro político:
Angélica Freitas (Um Útero É do Tamanho de Um Punho): “Me ocorreram três que consideraria ‘de esquerda’, pelo que têm de preocupação com o outro: Habitante Irreal, do Paulo Scott, Treme Ainda, do Fábio Weintraub, e Coquetel Motolove, da Luiza Romão. Deve haver mais. Mas de direita por enquanto não me ocorre nenhum.”
Joca Reiners Terron (Noite Dentro da Noite): “Toda
a literatura brasileira é de esquerda, inclusive a de direita.
Escrevemos em português, língua praticamente só falada aqui, país onde
ninguém lê. Por esse descompromisso – com o mercado, que não a vende;
com a academia, que não a interpreta –, a literatura brasileira está
vinculada com a vanguarda. Nossos grandes referentes são vanguarda: Brás Cubas, Grande Sertão: Veredas. Comparada
com Silvina Ocampo, Clarice é pura vanguarda. Diferentemente da
Argentina, que desde os anos 1940 produziu ficção comercial, só agora
começamos essa experiência: nossas chaves de leitura simbólica estão em
campos contrários. Somos experimentais desde Pero Vaz de Caminha,
enquanto eles produziram westerns desde o Martín Fierro.”
Noemi Jaffe (Írizs: As Orquídeas): “Penso
que ‘literatura de esquerda’ é a literatura que perturba os poderes
estabelecidos: literários, políticos, sociais, culturais. No Brasil,
talvez a coisa venha se agravando porque, como os poderes instituídos
atuais são ilegítimos, creio que, se houver alguma literatura que os
confirme, será não só de direita, mas de extrema direita, ou até burra.
Literatura de direita, portanto, seria uma literatura burocrática,
fática, enfim, um livrinho do Temer. Três livros de esquerda: Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, da Clarice Lispector; Os Ratos, do Dyonélio Machado; Formas do Nada, do
Paulo Henriques Britto. De direita: putz, complicado. Sem citar Sarney,
Temer, quem seriam? Algum do Paulo Coelho. Literatura só para efeito
embelezador, essas moças que vendem que nem água, sabe? Zibia
Gasparetto...”
Marcelino Freire (Nossos Ossos): “Literatura
de esquerda é de resistência, está sendo feita pelos saraus da
periferia de São Paulo; a literatura das pequenas editoras; os livros
lançados por selos independentes; o livro livre, solto pelos botecos,
esquinas, feiras alternativas. De direita? Qualquer livro de autoajuda;
qualquer um que pregue a alienação; as biografias chapas-brancas; os
parágrafos escritos por padres festivos; os poemas reunidos do
presidente golpista; Os Marimbondos de Fogo, do Sarney. De esquerda, citaria o Meio Intelectual, Meio de Esquerda, embora
o autor, Antônio Prata, diga que é só metade de esquerda (rararará!);
qualquer um do João Antônio; tudo o que estiver à margem. De direita:
perdão, dá preguiça listar. Rarararará! Coloca aí os do Lobão. Credo!”
*Ronaldo Bressane é de esquerda, mas escreve com a mão
direita. É autor de 'Mnemonáquina' (Romance, ed. Demônio Negro) e
'Metafísica Prática' (poesia, Oito e Meio)
Literatura de Esquerda
Autor: Damián Tabarovsky
Tradução: Ciro Lubliner e Tiago Cfer
Editora: Relicário
112 páginas
R$ 35
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Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,existe-literatura-de-esquerda-escritores-brasileiros-opinam,70001823969
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